Striptease para...4

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   Quando cheguei da escola, minha mãe estava deitada no tapete da sala, com os pés em cima do sofá, equilibrando o telefone entre o queixo e o ombro e enrolando os dedos no fio. Não pude ouvir todos os detalhes, porque ela não parava de rir e cochichar. O papo não tinha ponto final: então tchau, um beijinho, eu vou desligar, hein, outro beijo,  até logo, não demora, ah, desliga você. E depois dizem que a adolescência é uma doença da puberdade!

   A pele da minha mãe estava livre de espinhas, mas os hormônios não lhe davam um minuto de sossego. Depois de repetir "te amo" três vezes e encher de beijos o local do telefone, ela finalmente desligou e disse que meu pai nem parecia o mesmo. Tão atencioso, só vendo! Capaz de gentilezas que deixariam qualquer mulher arrepiada. Por exemplo: ele é tinha acabado de descer até a portaria, pra buscar a correspondência, e ligou lá de baixo só pra dizer que estava morrendo de saudade, cada minuto longe dela durava um milênio.

   Além da correspondência, meu pai trouxe um buquê de flores do campo colhidas no jardim do prédio! O presente foi recebido como uma prova de amor eterno, mas pra mim aquele gesto não passava de uma agressão à ecologia. E também uma falta de respeito com os outros condôminos: se a epidemia de romantismo contagiasse os vizinhos, o jardim iria virar um deserto!

   Falando assim, até parece ciúme. Mas eu tinha razão de me sentir rejeitada: meu pai entrou em casa sem me dar um mísero bom dia! Na verdade, acho que nem me viu . Foi logo pensando minha mãe no colo e atravessou a sala a cantando um bolero. O sofá é comprido o bastante para abrigar toda a família, mas eles dividiram a mesma almofada e trocaram um beijo que só não entrou para o livro dos recordes porque eu comecei a repetir rã-rã feito uma louca engasgada.

   Minha garganta já estava irritada quando o casal fez a gentileza de abrir os olhos. Meu pai ajeitou o cabelo e gaguejou uma pergunta brilhante: "Ô, filhota, você já chegou?". Seria uma ótima oportunidade de responder que não, eu ainda estava na rua, aquela garota ali na frente dele era minha sósia, clone, irmã gêmea, miragem, fantasma, sombra, reflexo do espelho, holograma. Mas me limitei a suspirar de tédio. Minha mãe estranhou o meu silêncio: "Tá sentindo alguma coisa, Joana?". Eu disse que não, nada. Quer dizer, só um pouco de fome. E um cheirinho de queimado...

   Minha mãe saltou do sofá e saiu correndo em direção à cozinha. Tarde demais: o arroz estava mãos escuro que o feijão, o bife de frango parecia de boi e o suflair de batata tinha virado mingau. E agora, ligar pra um restaurante? Para o corpo de bombeiros? Meu pai declarou que aquilo não era o fim do mundo; na verdade, ele até preferia o filé bem passado.

   Pensei que fosse uma piada, mas ninguém estava achando graça. Quando me atrevi a dizer que o almoço tinha pegado fogo, meu pai mandou que eu deixasse de frescura e ajudasse a servir a mesa.

   Abri a geladeira e, lá no fundo, garimpei um pote de plástico com o resto da pizza da véspera. Ou da antevéspera? Da semana anterior? Não importava. Melhor uma pizza antiga que um filé de carvão! Levei o pote para a mesa e fiquei tentada a botar a fatia inteira no meu prato. Mas a consciência pesou: eu tinha que dividir com a vó Nina, ela não merecia comer aquela eca esturricada. Aliás, ninguém merecia. Nem mesmo o Xandi.

   Meu irmão é  sempre o primeiro que correr para que mesa, mas dessa vez estava interessado emm continuar se divertindo no quarto. Pelo volume das gargalhadas, que brincadeira parecia animada. Minha mãe teve de chamar duas ou três vezes pra que ele finalmente aparecesse na sala... montado na garupa da minha avó!

   Quase tive um ataque quando vi a coitada de quatro, arriscando-se a quebrar a coluna pra fazer Xandi se sentir um peão. Se fosse meu filho, ele ficaria no mínimo um mês sem televisão, computador, cinema, futebol, chocolate e pudim de leite condensado! Mas parece que a paixão deixou meu pai e minha mãe completamente cegos: eles só tinham olhos um para o outro e se distraíam em esvaziar o paliteiro pra formar corações sobre a toalha da mesa.

   Pra atravessar a sala mais depressa, Xandi cutucou as costelas da vó Nina  com a ponta dos calcanhares. Foi o bastante pra que eu empurrasse o prato e protestasse contra aquele  absurdo; a minha avó estava, sim, velha e gagá, mas não podia ser tratada como um cavalinho de circo!

   Meu irmão pulou da garupa da vó Nina, que se levantou sem ajuda e espetou as mãos na cintura: "Quem te disse, Joana Dalva, que estou gagá?".

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