Piercing...3

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Não sei por que perco tempo falando da Dany. Ela não merece mais que um parágrafo curto, talvez apenas um comentário sem adjetivos, mas é difícil engolir calada a arrogância dessa garota. Acho que eu me sentiria melhor se pudesse conversar com uma amiga. Mas quem? Leninha só sabe aconselhar as suas bonecas e minha mãe já tem problemas de sobra pra me emprestar o ombro. Só me resta, portanto, a companhia da vó Nina, que não entende o que digo mas pelo menos é uma boa ouvinte. Quanto sinto o coração apertado, sento na beira da sua cama e pergunto se ela acha que algum dia o Guto vai notar a minha existência e me namorar e me fazer feliz, apesar do provável ciúme da Dany e de todas as outras garotas da escola. Seguro forte na mão da minha avó e fico esperando um palpite, uma dica, uma palavra qualquer... Mas ela se limita a olhar para o teto ou a esburacar a parede com as unhas.
No criado-mudo da vó Nina, tem um retrato dela com o vô Plínio, os dois andando de pedalinho em plena lua-de-mel. Será que foram felizes? O Paulo, professor de História, falou que a guerra conjugal é um fenômeno recente, uma espécie de efeito colateral do movimento feminista. Não que os casamentos de antigamente fossem mais felizes, nada disso. Mas como era o homem quem botava feijão e arroz dentro de casa, ele tinha o direito à última palavra. Para a mulher só havia duas saídas: ou afundar o rosto no travesseiro e chorar baixinho para o marido não ouvir, ou preparar um jantar-surpresa à luz de velas e salpicar uma pitada de vidro moído no prato predileto do dono da casa.
Paulo explicou que a entrada da mulher no mercado de trabalho foi fundamental pra que ela conquistasse a igualdade: (semelhança) de direitos. Quer dizer: o sexo tido com frágil só ficou forte depois que começou a ganhar dinheiro.
Não sou muito ligada em História, meu negócio é inventar histórias. Ainda sim, levantei o braço e dei minha opinião sobre a evolução do ser humano: as mulheres mudaram muito, os homens continuam os mesmos. Lá em casa, por exemplo, tanto meu pai quanto minha mãe trabalham fora, mas enquanto ele chega do consultório e vai direto para o sofá, brincar com o controle remoto, é ela quem tem de preparar o lanche, servir a mesa, arrumar as camas e ajudar o meu irmão nas tarefas da escola. Não era mais ou menos isso o que acontecia no passado? A gente estava estudando a Idade Média, por isso citei a Guerra dos Cem Anos. Depois de passar tanto tempo nos campos de batalha, nenhum soldado teria paciência de ajudar a mulher a lavar louça ou pendurar a roupa no varal. E muito menos descutir a relação.
É claro que nem todos os maridos continuam na Idade Média. Eu ia comentar que alguns raríssimos homens (o pai de Leninha, eu aposto!) dividem as tarefas de casa com as companheiras, mas fui brutalmente interrompida por uma gargalhada de deboche. Danyelle colocou o cabelo atrás da orelha, como tem mania de fazer quando vai soltar alguma gracinha, e me disse que, em primeiro lugar, o conflito entre Inglaterra e França havia se arrastado de 1337 a 1453, portanto tinha durado 116 anos, não 100. Também falou que nenhum soldado lutou a guerra inteira, porque neste caso precisaria ter entrado para o exército ainda bebê e, no fim do conflito, já estaria esclerosado e sem forças pra segurar uma mísera bengala, que dirá uma espada. E pra complementar, disse que a guerra teve muitos períodos de trégua.
Pode parecer que a Danyelle soltou tudo isso de improviso, mas eu sento na carteira do lado e vi perfeitamente que ela estava lendo a apostila. Só o professor não percebeu o golpe e ficou surpreso com a brilhante explicação.
Antes de encerrar a aula, Paulo encomendou um trabalho para a semana seguinte; o tema era a vida de uma personagem que tivesse marcado a Idade Média. Eu não tive dúvida: nenhuma vida, nesse período, foi tão fascinante quanto de Joana d'Arc. Mas como escolher a equipe? O trabalho deveria ser feito em grupos pequenos, de três alunos, por isso pensei em chamar Leninha e o Guto.
Havia umas dez ou doze colegas brigando pelo passe do garoto. Paulo se irritou com a gritaria e resolveu formar as equipes sem pedir a opinião de ninguém. Leninha e eu ficamos juntas, mas tivemos de suportar a companhia desprezível de Danyelle.
Na hora me deu vontade de levantar a mão, subir na carteira e lembrar que vivemos num país livre, portanto não podia concordar com aquela imposição arbitrária e, em nome da democracia, reivindicava o sagrado direito de escolher o meu grupo.
Mas eu não disse nada disso: só achei a boca porque o queixo caiu.
O professor de História é tão lindo (mais ainda que o Guto, sou obrigada a admitir!) que meu protesto não passou de um suspiro. Lindo é pouco! Na verdade, não sei se há uma palavra pra traduzir aquele rosto. E corpo, então! A combinação de músculos espartanos e inteligência ateniense faz a gente imaginar que está literalmente diante de um deus grego. E, cá entre nós,alguns só chamamos o Paulo de Apolo. A dona Nélia, diretora da escola, costuma a reclamar que os alunos vão bem nas provas História, enquanto a maior parte das alunas não chega sequer a atingir a média. Acho que ela não entende nada de Mitologia. E muito menos de psicologia feminina. Quando o Apolo abre a boca, a sua voz de veludo vermelho provoca um arrepio hipnótico, e simplesmente não dá pra postar atenção na aula.
O professor de História lembra um deus não apenas por causa do físico: a solidão também é a mesma. Apesar da piada de grisalho, ele não aparenta mais que quarenta. Muita gente acha que nessa todo homem tem a obrigação de estar casado ou, pelo menos, separado - se o coitado ainda for solteiro, logo surge a suspeita de que é boiola.
O que se comenta do Apolo é justamente o contrário. Segundo as fofocas de corredor, o professor foi um amante irresistível e cruel, desses que deixam as mulheres apaixonadas e logo em seguida somem do mapa, com medo do compromisso, antes que elas cumpram a ameaça abandonar a família ou pular do vigésimo andar. Eu disse foi: pretérito perfeito. Um dia, ele se encantou por uma aluna particular, achou que tinha encontrado a mulher ideal e pediu a suposta cinderela em casamento. Ela topou sem pensar, quem é que não toparia? Mas na última hora se arrependeu e, ainda vestida de noiva, mandou o chofer tocar para o aeroporto e desapareceu sem dar notícia. De acordo com outra versão, mais venenosa, a gatota mandou um cartão-postal de Paris, confessando que, pensando bem, preferia um marido mais...como direi? Milionário!
Apolo nunca mais foi o mesmo. Da escola, segue para o Olimpo suburbano onde mora: um quarto-e-sala entupido de livros, mas sem telefone, fax ou Internet (um Olimpo que se preze não pode abrigar essa tecnologia). Não tem amigo nem patente e muito menos namorada. Por causa do trauma, cortou os laços com o mundo lá fora e não quer intimidade com ninguém - principalmente se for um ninguém do sexo feminino. Dizem que, pra se manter longe das mulheres chega ao absurdo de não permitir que nenhuma autora faça parte da sua biblioteca.

PoderosaOnde histórias criam vida. Descubra agora