Jess estava sozinha em casa. O local estava mergulhado na escuridão. Se não fossem pelos relâmpagos dançando no céu, a menina não enxergaria nem a própria sombra. Ela se sentia desorientada e tinha a sensação de que estava sendo observada. Com medo de ficar no próprio quarto, ela abriu a porta.
A jovem se controlou para não gritar de medo. Não só tinha visto um vulto passando por ela, como sentiu alguma coisa a encostando – no mesmo instante todos os pelos do corpo de Jess se arrepiaram. O coração estava tão acelerado que era possível escutar cada batida. Andou pela casa e escutou passos no quarto da mãe.
– Mãe? – perguntou Jess, embora soubesse que Amanda estava trabalhando. Se sentiu estúpida, mas o medo causava aquele efeito nas pessoas, pensou. – Você está aí?
Não ouviu nenhuma resposta.
Quando era mais nova e ficava sozinha em casa, Jess costumava cantar para relaxar. Amanda havia lhe ensinado que desta forma Jess não precisaria sentir medo. Desejou cantar qualquer música, mas estava tão assustada que não conseguia pensar em nada. Nenhuma canção veio à cabeça. Tudo o que ela ouvia era o seu coração intercalado com a respiração.
Jess ouviu de novo os barulhos, desta vez com mais intensidade. Odiava quando aconteciam aquelas coisas. Fechou os olhos e desejou para que seja lá quem estivesse fazendo aquilo a deixasse em paz.
De repente, se viu indo em direção à biblioteca que costumava ser do pai. Não sabia dizer o que estava procurando, era como se estivesse sendo guiada. Jess passou a mão pelos livros de um lado para o outro até que segurou com as duas mãos um livro grande sem nenhum título. A imagem na capa do livro preto era a de uma estrela de cinco pontas.
Antes de abrir o livro, Jess acendeu uma vela e se sentou a mesa. Ela abriu em uma página onde estava escrito à mão: Vocação. O texto trazia orientações sobre como era importante aceitar a magia. Jess nunca tinha gostado de ir à igreja e odiava quando sua mãe a obrigava a ir. A menina nunca tinha considerado praticar magia, achava que se tratava de mais uma mentira. Surpresa com o conteúdo e curiosa para saber de quem era, ela descobriu que tinha sido escrito pela sua falecida avó.
Uma vez que começou a ler, a garota não conseguiu mais parar, queria saber tudo o que estava no misterioso livro. Jess leu um texto sobre sonhos e viagem astral e ficou impressionada com o quanto a sua avó Hortênsia sabia sobre o assunto. Jess nunca tinha ouvido falar em pessoas que conseguiam viajar com suas almas, somente em casos de experiências de quase-morte. Perguntou-se se o pai também praticava bruxaria, mas não o imaginava fazendo aquilo. Amanda e Otávio iam todos os domingos pela manhã na igreja. Após a morte dele, a mãe de Jess parou de frequentar as missas. Com tanto trabalho, ela usava a manhã para descansar. Procurou por alguma cena na memória que desse algum indício sobre o pai ter seguido os mesmos caminhos da avó e nada. O pai estava sempre com um sorriso no rosto, era carinhoso com Amanda e Jess, mesmo carregando o sofrimento de ter perdido a mãe.
Foi assim que Jess decidiu praticar pela primeira vez um exercício encontrado no livro das sombras de Hortênsia. Jess apagou a vela e foi com o livro até o seu quarto. A menina se deitou na cama e fechou os olhos. O livro dizia que ela tinha que relaxar o corpo inteiro para obter sucesso em sua primeira viagem astral consciente. Ainda de acordo com o que avó tinha escrito, muitas pessoas viajavam pelos sonhos, mas de forma inconsciente. O diferencial da viagem astral era a lucidez. Algumas pessoas tinham controle sobre o próprio sonho, mas não é a mesma coisa que projeção astral, alertava a avó.
Jess se imaginou deitada sobre umas pedras perto de uma cachoeira. Ela ouviu o barulho da água caindo e logo sentiu a respiração se acalmar. A luz do sol refletia na água, tão cristalina que Jess podia enxergar os minúsculos peixes sendo arrastados pelo fluxo. Segundo o livro de magia, Jess deveria relaxar cada parte do corpo. Começou pelos pés. Imaginou-os soltos e deixou a energia fluir por eles, viajando pelo seu corpo. Fez isto com cada parte do corpo até chegar a mais complicada, a cabeça. Embora estivesse morrendo de vontade de praticar a viagem astral, sua mente deveria estar relaxada ou Jess fracassaria. Controlar os pensamentos não era tão fácil na prática quanto parecia na teoria. Hortênsia dizia que a melhor forma de acalmar a mente macaca era através da meditação.
A menina fez um exercício proposto pela avó no livro, chamado Exercício das Nuvens. Segundo o texto, os pensamentos bons ou ruins deveriam ser comparados às nuvens e ela não poderia deixar nenhum deles ficar. Jess deveria se focar no céu limpo e sempre que ficasse com vontade de pensar em alguma coisa, a jovem deveria relaxar, ter paciência, se concentrar na própria respiração, deixar o pensamento passar. Aquele exercício, segundo o livro, ajudava a obter equilíbrio.
Ainda deitada, Jess se sentia leve, como se um simples vento poderia fazê-la flutuar. Não se lembrava de quando foi a última vez que sentiu tanta paz. Tentou esquecer o passado e não pensar no futuro. Hortênsia escreveu que um bom relaxamento do corpo e mente estavam ligados à experiência de viver o presente. Seu corpo emanava energia e era como se luzes brancas e azuladas brilhassem ao seu redor, algo que Jess nunca havia visto antes. A visão lhe dava bem-estar. Jess se concentrou e imaginou a alma rolando para fora do corpo e caindo no chão.
Se não desse certo, ao menos o exercício serviria para relaxar. Ela estava precisando daquilo, de um momento de paz. Estava se sentindo incrivelmente bem, como se não carregasse mais nenhum peso nas costas e o peito não estivesse apertado de tanta dor e tristeza pela perda do pai e da avó e o fim do namoro com Tomás. Quando abriu os olhos, Jess viu que estava no chão e observou o corpo de uma menina na cama. Demorou a perceber que ela era mesma deitada. Era a primeira vez em que Jess observava a si mesma. A experiência causava certo desconforto no início, como se tudo aquilo não passasse de uma ilusão provocada pela mente.
Jess pensou em Babi. Quando se deu conta, Jess estava na casa de Babi vendo ela e Belinda discutindo por causa da comida do jantar. Não sabia dizer se era só sua imaginação, mas parecia real demais para ser inventado, pensou Jess.
– Será que você nunca dá a mínima para mim? – gritou Babi. – Quantas vezes eu preciso te falar que odeio essas comidas congeladas. Elas são cheias de conservantes e têm poucos nutrientes. São um veneno para o organismo. Se eu der uma colherada nisto, no outro dia acordo inchada como um sapo e com o rosto parecendo um asfalto de tanta espinha. Você sabe disso...
– Bárbara, se você quer comida feita na hora, pode começar a aprender a cozinhar. Sou sua mãe, não sua cozinheira. Você não é uma criancinha para eu ter que ficar me preocupando com o que você come ou não.
Babi ficou vermelha com o comentário de Belinda.
– Me dá dinheiro. Eu vou comer sushi em algum lugar.
– Também não sou um banco para você ficar me pedindo dinheiro toda hora.
– Tudo bem, eu peço para o papai. Ao menos ele se preocupa comigo. Não vejo a hora de ter o meu próprio cartão de crédito.
– Se você quer tanto um, deveria trabalhar.
– Como você? – bufou a menina. – Ter um marido rico agora é um emprego?
Belinda deu um tapa forte no rosto da filha e logo se arrependeu. Deveria ter se controlado, não queria gastar uma fortuna pagando um psicólogo para Babi.
Babi colocou a mão no rosto que ainda latejava de dor.
– Eu preferia ter sido abortada a ter uma mãe como você! – gritou.
Lágrimas de raiva escorreram pelos olhos de Babi, ela odiava quando a mãe se comportava como uma vaca. Sentia vontade de xingá-la de todos os nomes possíveis. Era como se Belinda e a Babi não tivessem nada em comum. Babi preferia passar o tempo ao lado do pai, mas Jonathan estava sempre trabalhando. Ao menos ele não a atormentava, como a mãe. Babi, às vezes, sentia vontade de morrer, mas logo esquecia e os sentimentos autodestrutivos se transformavam em raiva.
Jess olhou para a amiga triste e desejou poder ajudá-la de alguma forma.
– Vai ficar tudo bem – Jess sussurrou no ouvido de Babi.
Babi sentiu saudade de Jess e de como a mãe dela era bem mais legal, mesmo tendo perdido o marido e precisando trabalhar o dia inteiro para sustentar a filha. Amanda aceitava Jess do que jeito que ela era.
Não queria morrer de fome. Colocou a calça moletom cinza, o par de tênis esportivo, uma camiseta preta que Babi ganhou de alguma banda que nem se lembrava se gostava ou não e saiu de casa. Babi foi pedalando até a casa de Jess. Precisava estar ao lado de alguém que a fizesse se sentir bem. Babi se sentia egoísta. Nem se lembrou de perguntar se Jess estava melhor e mesmo assim queria visitá-la. Qualquer coisa era melhor do que aguentar a mãe. Belinda era insuportável quando queria.
– Bárbara? Aonde você está indo? – Belinda foi para frente da casa e ficou gritando até a filha estar tão longe que não era mais possível escutá-la.
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O Círculo - Os Bruxos de São Cipriano Livro 1
FantasiLivro 1 da série Os Bruxos de São Cipriano Os adolescentes Babi, Jess, Léo e Manu estão cansados de viver em São Cipriano, uma cidade minúscula, onde as coisas nunca acontecem. As férias acabaram e mais um ano letivo está prestes a começar. Manu pa...