Capítulo 1-A Criança(Pt. 1)

869 37 2
                                    

Meu turno na loja havia acabado mais tarde naquela noite. Eram dez e meia e as ruas próximas à minha casa provavelmente já estariam desertas. Peguei meu casaco e minha mochila com minhas coisas, xingando minha chefe por me dar hora extra e me pagar uma mísera quantia a mais pela duas horas de trabalho que eu não deveria ter, e saí da loja, esbarrando sem querer em alguns manequins no caminho.

Assim que saí da loja o ar frio da noite me atingiu. Aquela parte do bairro estava movimentada, pois ali só havia comércio. Sempre tinha muita gente andando por aí, comprando coisas como nossa sociedade capitalista e meramente material mandava. Sorri levemente com meu próprio pensamento, continuando minha caminhada.

Assim que saí da parte movimentada do bairro, comecei a prestar mais atenção ao meu redor. As ruas naquela parte estavam desertas e silenciosas. As únicas fontes de luz na rua eram os postes de iluminação, que eram dispostos muito longe uns dos outros — fazendo com o que boa parte da rua ainda estivesse escura — e as luzes vindas das janelas de algumas poucas casas.

Segurei as alças da minha mochila com força, apressando o passo, com ouvidos e olhos atentos a qualquer movimentação. Foi então que eu senti a presença.

Era forte e maligna, e parecia estar me seguindo. Diminuí a velocidade dos passos, tentando não entrar em pânico com a presença. Eu já deveria estar acostumada a sentir essas coisas, sendo quem eu sou, mas aquela aura em especial era mais forte do que as outras que eu já sentira.

Olhei para trás rapidamente e vi uma criança, parada na parte escura entre as luzes dos postes, como se na leve escuridão ele estivesse escondido. Era um garoto, talvez 11 anos de idade, magro demais, usando roupas largas demais. Seus cabelos eram negros como piche, mas eu não conseguia ver seus olhos. A escuridão da rua os escondia.

Voltei a olhar para frente e andei mais rápido. Estava quase em casa, não podia parar para interrogar o garoto e saber por quê ele tinha uma presença tão forte. Nenhum espírito que eu já havia visto tinha uma aura tão perigosa quando a daquela criança, nem mesmo os espíritos vingativos.

Olhei para trás novamente e o garoto havia sumido. Onde ele estava antes, só havia escuridão.

—Merda... 

Comecei a correr, agora entrando em desespero. Se aquela coisa resolvesse atacar eu provavelmente estaria ferrada. Não tinha força o suficiente pra expulsar aquele garoto. A criança ainda estava lá, eu podia senti-la, mas pelo visto ela decidiu que não queria mais ser vista, e era aí que as coisas ficavam feias.

Virei a esquina correndo, e pude ver minha casa no fim da rua. As luzes da sala estavam acesas, e pude notar que a luz do porão também. Meu pai deveria estar falando com minha mãe.

Senti a presença ficar ainda mais forte, como se estivesse se aproximando, mas nunca me tocando e ainda sem se deixar ser vista. Cheguei até a varanda de casa, abri a porta correndo e a fechei assim que entrei, trancando-a.

Me encostei na porta, respirando fundo, tentando recuperar o ar da corrida, e ouvi duas batidas fracas na porta. Meu coração parou de bater por um segundo, mas, quando eu olhei pelo olho mágico, não havia ninguém lá. A presença então sumiu, e eu pude sentir o alívio atingir meu corpo, antes tenso.

Ouvi passos se aproximando e meu pai apareceu correndo na sala com os olhos arregalados e respiração forte.

—Que presença foi essa? Você está bem?

Respirei fundo e parei de me apoiar na porta, olhando para meu pai. Ele era um homem alto, cabelos pretos meio longos e os olhos eram de um azul tão claro que chegavam a parecer cinzentos em algumas ocasiões. Ele estava com uma expressão preocupada no rosto mas eram óbvias as rugas de expressão por sorrir tanto.

—Eu... Estou. Estou bem. Seja lá o que me seguiu aqui sumiu.

—Liz, essa presença foi muito forte. Por que você chegou tão tarde? Sabe que os espíritos perigosos geralmente se manifestam ao anoitecer ou de madrugada.

—A culpa não é minha, a minha chefe vive me colocando para fazer hora extra. Infelizmente eu não posso dizer "ei, se você não me liberar agora eu posso acabar sendo morta por um espírito de um psicopata do bairro", ou eu posso?

—Não há psicopatas no bairro, Liz.—meu pai disse, como se eu fosse uma criança aprendendo um fato novo. —Talvez um pedófilo ou um homicida, mas não tem psicopatas.

—Obrigada, pai, isso me conforta muito.—falei, jogando minhas coisas no sofá e logo depois me jogando junto.

—Só... Tome cuidado. Você sabe o que acontece quando um espírito forte e maldoso resolve tentar matar ou se apossar de um de nós...

—Presos no limbo pra sempre com aquele espírito e blá-blá-blá... É, eu sei...

Meu pai bufou e sentou perto de mim, me encarando.

—O que importa é que você está bem.—ele falou e passou a mão no meu cabelo, me fazendo sorrir —Vá pro seu quarto, descanse. Você tem prova amanhã.

—Você vive falando que espíritos são muito perigosos para nós mas sabe o que eu acho? Provas são piores. Elas controlam sua mente deixam você louco. —gesticulei exageradamente, vendo meu pai sorrir.

—É verdade. Mas você vai ter que fazê-las do mesmo jeito.

—A minha triste realidade...

Meu pai riu e se levantou, seguindo o caminho que daria para o porão. Sentei no sofá, e peguei minhas coisas, me preparando pra ir para o quarto.

—Pai? —chamei, fazendo-o se virar em minha direção —Diz à mamãe que eu sinto falta dela...

O sorriso melancólico que surgiu nos lábios do meu pai só confirmou o que eu já sabia, minha mãe ainda estava presa no limbo, ainda não conseguindo ver a nossa realidade ou escutar o que as pessoas da nossa dimensão diziam. Por mais que meu pai fizesse de tudo para tentar trazê-la para a nossa realidade, nada parecia funcionar.

Ele se virou novamente e continuou seu caminho para o porão, onde eu podia ouvir a voz da minha mãe, ainda repetindo as mesmas palavras da noite em que ela foi tirada de nós.

Medium (Concluído)Onde histórias criam vida. Descubra agora