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No outro dia Rafael estava desolado. Já tinha chorado tanto que suas lágrimas pareciam terem se esgotado. Ele estava agora voltando do enterro e voltava para casa no banco do carona, levado por seu pai. Kai, por outro lado, ainda estava na incubadora, pois ele havia nascido antes do tempo e ainda ia precisar ficar mais uns dias no hospital.

Quanto ao enterro de Julia, muitas pessoas compareceram; mais até do que o esperado. Isso deu um pouco mais de conforto a Rafael, pois percebeu o quanto sua esposa era querida.

Aquária, que era o projeto mais sustentável já criado em todos os tempos, logo após começar a funcionar já aderiu ao novo método funerário daquela época que era tão ecologicamente correto quanto o próprio projeto Aquária.

Ao invés de enterrar as pessoas em meras caixas de madeira, os caixões, as pessoas eram colocadas em cápsulas orgânicas especiais, que com um tempo, se transformavam em belas árvores.

Foi assim que Julia foi enterrada. Em alguns anos ela seria um lindo ypê rosa, uma de suas árvores favoritas e foi essa que Rafael escolheu para representá-la.

Saber que Julia, de certa forma ainda estaria ali, na forma de uma linda árvore, dava a Rafael um certo conforto, pois ele sempre iria lembrar dela como uma coisa linda e benéfica a todos, isso, volta e meia, fazia Rafael sorrir, pois ele lembrava que Julia sempre gostou de ajudar as pessoas ao seu redor, e agora, mesmo já tendo partido, ela iria continuar contribuindo para o bem das pessoas.

Chega o dia de Kai ganhar alta. Rafael e Felício então seguem para o hospital para buscá-lo, felizes por finalmente poderem ter o pequeno garotinho em seus braços.

Rafael era engenheiro e trabalhava na cúpula do Norte. Ele havia conseguido uma licença de 3 meses para cuidar do filho, mas breve teria que contratar uma babá, pois seu pai, Felício, já era um tanto velho para cuidar da criança sozinho.

A babá já tinha sido contatada, mas só poderia começar seu trabalho em uma semana. Enquanto isso, Rafael teria que contar apenas com a ajuda de seu pai, que não achou a idéia nem um pouco ruim.

Logo que pegaram Kai, eles voltaram para casa. Não demorou muito até que Rafael precisasse trocar a frauda do bebê, e foi então que ele percebeu algo de incomum.

- Pai – chamou ele. -, você já tinha visto essa marquinha no bebê?

- Que marca, filho? – perguntou Felício de longe. Sua voz indicando que ele já estava a caminho.

Quando ele chegou ao quarto, se dirigiu até onde estava seu netinho para ver a tal marca citada por Rafael.

- Nossa! É uma marca bem diferente para ser natural. – disse ele, observando intrigado o pequeno sinal na pele do bebê.

A marca estava no lado esquerdo da criança, e lembrava uma pequena concha com pequenas linhas curvas ao redor, como se fosse pequenos ramos ou algum outro tipo de desenho floral.

- Você acha que isso é natural? –Rafael perguntou enquanto esfregava a área do sinal.

Felício observou a marca mais uma vez e a tocou, friccionando o dedo polegar contra ela e esfregando para ver se conseguia apagá-la.

Sem sucesso.

- Pelo que parece, sim. Mas o estranho é que a pele no local do sinal é fria, quase gelada. Que coisa estranha!

- Acha que devo levá-lo ao médico? Esse não é um tipo de sinal de nascença comum de se ver.

- E desde quando morar em cúpulas de vidro embaixo d'água é algo normal, filho? – Felício perguntou com um sorriso enquanto olhava para o pequeno Kai. Tão indefeso e frágil. – Não tem nada de normal morar em Aquária, então não vejo porque trazer mais agitação para nosso pequeno guerreiro.

- Tem razão, pai. No fim isso não é nada. Vai dar um charme a mais ao meu filho.

- Isso só vai fazer dele mais especial do que já é.

- É verdade, pai. Com certeza.

Os anos foram se passando e a cada ano, Kai crescia e se transformava em um lindo garoto. Seu cabelo era ruivo e tinha lindos olhos azuis. Sua pele era incrivelmente branca, o que era muito comum em Aquária, devido à baixa exposição dos habitante à luz solar forte.

Kai então se tornou um garotinho cheio de energia e incrivelmente curioso.

- Conta mais vovô. – pediu ele para o avô, que sempre lhe contava histórias da época em que viveu na superfície. – Como eram os animais que você falou outro dia, os rinocerontes?

- Ah filho, eles eram muito grandes e incrivelmente fortes. – dizia Felício, já no auge da sua velhice, mas que com essas histórias, parecia rejuvenescer de tão empolgado que ficava ao contá-las para o neto. – Eles tinham um par de chifres no nariz, um maior que o outro, e eram muito afiados.

- Eles eram perigosos?

- Só quando provocados. Só tive a chance de vê-los no período em que estive na África.

- África?

- Sim, África. – repetiu Felício. – Era o continente onde eles existiam em maior número. Naquela época existia safares onde pessoas do mundo todo pagavam para ver de perto animais com o rinoceronte.

- Que incrível!

- Isso não era tudo. Tinham vários outros animais incríveis e lugares impressionantes para se ver. Montanhas que davam ao nascer do sol uma beleza inimaginável, que apenas os que tiveram o prazer de vislumbrar poderiam descrever um pouco de seu esplendor.

- O que eram essas montanhas?

- Vamos deixar isso para nosso próximo encontro. Tudo bem? – dizia o Felício sempre que o neto perguntava sobre outra coisa.

O que Felício realmente queria era contar tudo sobre sua vida na superfície da Terra de uma vez para o neto, mas ao mesmo tempo, ele queria fazer isso aos poucos para tentar fazer com que Kai ficasse ainda mais curioso e encantado com todas as belezas que existiram na superfície, e ele estava conseguindo, mas tanta curiosidade estava deixando Rafael um tanto preocupado, pois ele temia que o filho um dia tentasse ir até lá, o que, para ele, poderia ser muito perigoso.

Apesar disso, Felício sempre continuou contando tudo que pode para o neto, mas um dia, suas histórias chegaram ao fim.

Felício faleceu, com seus 103 anos de idade. Ele teve uma morte tranqüila e morreu dormindo.

Kai sofreu muito, da mesma forma que Rafael, mas Felício tinha deixado muito mais do que apenas saudades para o neto, ele deixou uma forte sede pelo desconhecido, uma sede de aventura que Kai mal via a hora de saciar.

AquáriaOnde histórias criam vida. Descubra agora