Não preciso mais

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Acordei mais cedo naquela manhã, mesmo que não tivesse aula na faculdade, tudo o que eu tinha era uma reunião com o grupo de TCC, mas só à tarde. Mesmo assim, meu relógio biológico teima em não aproveitar as chances que a vida nos dá. Aproveitei para isentar Rafa de ir buscar os pães na padaria que ficava no fim da rua. Pluguei os fones de ouvido no celular e desci para a rua.

Logo que botei os olhos na calçada, senti um aperto no peito. Daniel estava sentado na calçada, parecia surrado e mantinha a cabeça escondida entre os joelhos, reconheci primeiro pela jaqueta, e depois que fui prestar atenção. Era ele mesmo, de cabelo bagunçado e com uma garrafa de whisky na mão, poderia ser a mesma de ontem, mas para estar daquele jeito, ele deve ter bebido mais de uma.

Atravessei a rua e ajoelhei na frente dele.

- Daniel? - Chamei baixinho e ele resmungou. - Vem, Dani. - Ele resmungou mais alguma coisa que eu não entendi, dessa vez um pouco mais alto - O quê?

Ele levantou a cabeça. Estava acabado, parecia ter levado uns socos e mais ranzinza que o normal.

- Não me chama de "Dani". - Reclamou e soube que ele não estava tão mal assim.

- Tá, vem logo. - Puxei-o pelo braço e seus olhos mal abriam.

Praticamente tive de arrastar aquele homem com o dobro do meu peso para dentro do prédio, com o olhar atento do novo porteiro sobre nós, e depois para o elevador e lembrei de agradecer mentalmente por estar funcionando. Meu apartamento ficava no terceiro andar, era muito raro que eu usasse o elevador, mas ir com ele pelas escadas... sem chance.


Abri a porta do apartamento e Rafa estava de pé na cozinha, com uma garrafa de iogurte numa mão e um copo na outra.

- Pensei que fosse buscar pão.

- Ajuda aqui. - Resmunguei.

Antes de ir para a porta e dividir o peso de Daniel comigo, revirou os olhos e largou o iogurte na mesa.

- O que aconteceu? - Perguntou enquanto o empurrava para o sofá.

- Não sei, ele estava na calçada.

- Tá, eu vou buscar pão e você fica me devendo uma. - Não questionou muito, mas não estava feliz.

- Valeu, Rafa.


Eu já passava o café, quando ele levantou, os pães na mesa e uma Rafaela no banho.

- Fernanda? - Resmungou e eu não respondi. Ele passou alguns segundos olhando em volta antes de jogar a cabeça na almofada do sofá com um gemido escapando dos lábios.

- Deixei umas roupas separadas em cima da minha cama, pode tomar banho no meu banheiro.

- Não. - Sentou no sofá, com os cotovelos apoiados nas pernas e a cabeça nas mãos. - Vou pra casa.

- Vai logo, Daniel. Porra. - Reclamei.

Ele ficou em pé e eu quase tive certeza de que sairia porta à fora, mas ele foi na direção das portas dos quartos. Ficou parado entre duas portas e me encarou.

- Esquerda.

Ele entrou e fechou a porta.

Ele só saiu daquele quarto 20 minutos depois, usando uma camisa de Bruno que ficava mais justa no seu corpo e uma calça jeans. Ainda estava descalço e tinha o cabelo preso num pequeno coque, deixando uns fios escaparem sem querer. Rafa estava sentada à mesa, tomando mais um copo de café e passou uns segundos olhando para ele. Não pareceria tão acabado se não fosse pela maçã do rosto inchada.

- Valeu, Fernanda. - Agradeceu de cabeça baixa e eu apontei para a cadeira na mesa, ao lado da minha. Ele sentou e pensou por um segundo. - Desculpa por aquilo ontem, Rafaela. E, Fernanda, também.

- Agora só faltam seis pessoas pra se desculpar. - Comentei e ganhei um olhar ameaçador do meu convidado para o café da manhã.

Sustentei seu olhar até que ele desistiu e mastigou o próprio pão. Rafaela trocava o olhar de um para o outro, analisando.

- Tá. Eu vou pra faculdade, já avisei que esse cara é problema e não quero ficar vendo isso desenrolar. - Levantou com a caneca de café na mão - Você vem?

- Agora não.

- Vou de carro, então. Até mais tarde, Nanda. E eu desculpo, Daniel.

***

Ela disse que eu estava na calçada, em frente ao seu prédio. Depois me chamou de idiota, mas não me lembrei de responder, estava concentrado em entender o motivo de estar logo na frente da casa dela. Seria mentira se dissesse que não me lembrava. Eu estava embriagado, mas não era só o álcool, eram lembranças. Andei até o endereço mais próximo do bar onde estava, e era o endereço dela. Não expliquei, apenas comi o pão e tomei o café que ela me empurrou. E ela parecia incrivelmente brava.

A campainha tocou e ela foi atender, aproveitei a deixa para pegar minhas roupas no quarto dela. No quarto, ela tinha uma grande prateleira abarrotada de livros, álbuns, câmeras e uma centena de objetos aleatórios que eu tive vontade de analisar. Eu não sabia nada sobre ela e quis conhecer um pouco. Passei os olhos sobre o quarto mais uma vez, até parar num porta retrato com uma foto sua com o namorado. Agrupei minhas coisas no braço e voltei para a sala, encontrando o cara da foto sentado na mesa. Ele levantou logo que me viu.

- O que esse cara está fazendo aqui?

Ignorei-o e sentei no sofá para colocar a bota que estava quando cheguei.

- Calma, Bruno. É o Daniel.

- Eu sei quem é, quero saber o que ele está fazendo aqui. Ele está com as minhas roupas? Fernanda, o que é isso?

- Ele estava precisando, Bruno, ele...

- Ele precisava das minhas roupas, é isso?

- Não preciso mais. - Tirei a camisa de marca dele, depois a calça.

- Mas que... - Ele resmungou, ficando vermelho de raiva.

Ela ficou vermelha e pregou os olhos num lugar que não fosse... eu. Coloquei minhas próprias roupas e dobrei as dele. Voltei a colocar minhas botas enquanto Fernanda explicava tudo do jeito mais simples que podia, tentava não gaguejar e ainda estava vermelha.

- Olha, eu volto depois.

- Não, amor. Fica.

- Vou buscar nosso almoço enquanto esse bêbado sai daqui. - Ele saiu e ela resmungou algo como "mas acabamos de tomar café".

Ela respirou fundo e se jogou no sofá, ao meu lado. Foram dois segundos de silêncio reflexivo antes que ela começasse a rir. Riu até perder o ar, até me fazer rir um pouco junto.

- Que ideia idiota foi essa de tirar a roupa na frente dele? - Riu mais - Pensei que ele fosse explodir!

Ri também, mas era mais dela do que o que fiz. Ela respirou fundo e limpou os cantinhos dos olhos das lágrimas que não caíram. Tinha o riso bonito, de um jeito bom de ouvir.

- Acho melhor eu ir agora, daqui a pouco ele volta.

- Meu Deus, ele deve estar tão bravo!

- Quer que eu fale com ele? - Afinal, ela só me ajudou e eu fiz uma cena que pode ter criado problemas.

- Não, ele só está com ciúme. - Sorria como se ainda se divertisse pelo ocorrido e eu sorri junto.

- Então, eu já vou. - Levantei do sofá e ela permaneceu da mesma maneira. - Já que a Rafaela levou o carro, eu passo aqui antes de ir pro bar e te dou uma carona.

- E eu ajudo você a se livrar da Ju.

- É, isso. - A intenção era mais ou menos agradecer por ter me tirado da rua, mas assim também funcionava. - Tchau.

-Até. - Ela não se mexeu enquanto eu saía, eu mesmo fechei a porta e acabeipassando pelo namorado babaca no corredor.

Para: ClariceOnde histórias criam vida. Descubra agora