Querida Clarice

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Existe uma coisa especial em começo de namoro. Tem descoberta, conquista, aquele flerte interminável e a vontade de passar todo o tempo juntos. E passa a ser mais divertido quando é em São Paulo porque São Paulo tem um número interminável de programas para aproveitar.

Deixamos nossas bicicletas alugadas apoiadas na mesma árvore da qual estávamos aproveitando a sobra. Eu estava coberta de suor, assim como ele. Apenas uma corrida e estávamos acabados, deitados na grama.

- Nanda. - Ele me chamou puxando o ar. Não respondi, só virei o rosto para ele. - Eu vou voltar para a faculdade.

- Jura?

- Sim. Acertei tudo ontem, mas quis te contar aqui. Eu precisava fazer alguma coisa com a minha vida.

Ele falava mais para si, que para mim. Falava olhando para as folhas das árvores sobre nossas cabeças, pensava profundo, ele.

- Dan.

Ele não respondeu, só virou o rosto para mim. Estava exausto e ofegante como eu, o peito subindo e descendo sob a regata branca que sempre ficava muito sexy nele. Os olhos atentos em mim, esperando o que quer que eu fosse falar e eu percebi uma coisa. Tem cor no escuro dos olhos dele, e é verde. Bem clarinho, em volta da pupila, tinha um anel verde que só dava para ver naquela luz gostosa do sol.

- Eu ganhei. - Falei depois de passar segundos preciosos percebendo o verde.

Ele riu um pouco, balançando a cabeça de um lado para o outro, os fios castanhos com pedaços de grama. Um vendedor ambulante se aproximou de nós e depois de dizer vários nãos, aceitei um sorvete no palito.

- E agora? - Perguntei assim que ele abriu a porta de seu apartamento.

- Vamos almoçar e depois te deixo em casa. Vou na casa do Sam, ajeitar umas coisas para, você sabe, o casamento.

Faltava só uma semana para o grande dia e eu tinha acesso a contagem regressiva pelo Facebook, já que Lívia postava sobre isso... sempre. Sugeri ir embora antes do almoço, para que Dan não se atrasasse para a prova do terno, mas ele me prendeu com a promessa carne assada com um molho secreto que eu não pude negar.

Separei os ingredientes, como ele pediu, e até cortei alguns temperos enquanto ele tomava banho. Comecei a me preocupar com a hora e invadi seu quarto. Ele berrou que estava fazendo a barba e dei meia volta na direção da porta, mas acabei chutando alguma coisa embaixo da cama de casal sempre bagunçada. Era uma grande caixa de sapatos, mas não tinha marca ou identificação, só o papelão cru.

Peguei a caixa na intenção de arrumar, colocar junto com as outras caixas. O peso era menor do que eu supus, a caixa desequilibrou na minha mão e caiu. Caiu com centenas de envelopes junto. Centenas.

Ajoelheie comecei a recolher tudo e enfiar de volta na caixa. Eu lutei muito, mas acuriosidade venceu e passei os olhos pela letra negra no envelope. "Para:Clarice". Não havia endereço, o único destino era ela, Clarice. Eu soubeque iria me arrepender, mas abri o primeiro envelope. 

"São Paulo, 26 de fevereiro de 2014.

Querida Clarice,

Eu não posso continuar no meio deles. Não posso viver onde todos me olham com dó, ressentimento ou medo. Não posso olhar para eles e carregar essa culpa.

Não posso conviver comigo hoje e não posso obriga-los a isso.

Alémdo mais, não sinto vontade de viver minha rotina sem você. Não sinto vontade deviver sem você. Sam me impediu de cancelar a matrícula na faculdade, mastranquei porque..."

"São Paulo, 11 de março de 2014.

Querida Clarice,

Não tive chance de me despedir, ainda não parece que você se foi. Fico aguardando, olho pela janela, encaro as portas, procuro seu cheiro no travesseiro na esperança de ter você de volta. Não sei o que fazer, nada parece certo, não consigo mais me sentir vivo, você levou contigo toda a minha energia e vontade de continuar. Seus pais não me dizem onde você está, passo noites em claro ao tentar imaginar ter você de volta, idealizo o dia de nosso reencontro.

Tudo à minha volta parece opaco, desfocado e silencioso, como se nada mais fizesse sentido. Cada detalhe dos meus dias me lembra você, meu cabelo crescendo, que você sempre me pedia para não cortar; o cheiro de pão fresco que você amava; sua escova de dentes azul ainda ao lado da minha; o seu lugar favorito do ônibus; seu restaurante preferido no fim da rua; o banco no parque em baixo de um ipê amarelo. Por onde quer que eu vá, sua lembrança continua lá.

Todos os dias acordo em pânico à noite, pensando que te perdi para sempre, te procuro ao meu lado na cama e você não está lá, e o medo invade minha alma. Tento me convencer de que não é real, não iria demorar muito para nos encontrarmos. Não consigo fazer o que tenho que fazer, uma sensação de impotência me toma por inteiro, como se eu não pudesse fazer mais nada, como se sentimentos bons fossem utópicos, tudo o que vejo é uma sombra de tempos melhores que nunca voltarão.

Raiva e ódio me dominam, de todos, por insistirem em tentar me ajudar, de andarem que sou um pobre coitado; de tudo que me faz lembrar você; de mim mesmo, por ser um idiota que não sabe mais o que fazer e que está a ponto de fazer uma grande besteira; de você, por desaparecer desse jeito da minha vida. Tenho tanta raiva de te amar tanto a ponto de fazer meu peito doer.

Nós poderíamos ficar juntos para sempre, você me prometeu que iríamos envelhecer juntos, veríamos nossos netos crescendo. Agora nada parece real, não sei o que fazer a seguir, é uma sensação de estar caindo e não há nada em que se possa segurar. Meu corpo parece ser só um peso, onde tenho que carregar por aí, passo pelos bares e o álcool me ajuda a deixar os pensamentos longe e de manhã esqueço mais uma noite.

Olho no espelho e já não me reconheço mais, não sou mais uma pessoa em que os pais se orgulham, ou que um dia viu como é ser feliz, meus olhos dizem ao espelho o que não sou capaz de admitir em voz alta, mas é o que todos pensam ao me observar.

Com o tempo, as pessoas param de tentar interagir, de tentar animar e começam a ver a pessoa amarga que me tornei. Tudo o que há no apartamento é silêncio, escuridão, vestígios de um amor, algumas cartas e uma navalha afiada na pia do banheiro.

Dou me um tempo, mesmo sem vontade ou motivação, tento resistir um pouco, como se eu não fosse um fracassado, só mais um dia, só mais um. Tudo perde o sentido, estou perdido. Não entendo porquê não tivemos a chance de ter nosso final feliz.

Com amor,

Daniel"

"São Paulo, 08 de agosto de 2015

Querida Clarice,

Fiz aniversário há dois dias atrás e a lembrança de você aqui, nessa mesma casa, me enlouquece. Há dois anos, você estava bem aqui. Encheu minha sala de estar de gente que eu mal conhecia, fez uma festa surpresa da qual eu já sabia porque você não foi nada discreta. Naquele ano, você passou dias e dias pensando sobre o presente que devia comprar. Se devia ser um relógio ou um perfume, um livro ou uma camisa. Você ficou tão indecisa que não escolheu nada, e nem percebeu que foi o melhor aniversário da minha vida..."

"São Paulo, 14 de setembro de 2016.

Querida Clarice,

Algo em mim está enlouquecendo. Estou perdendo você, meu amor. Estou perdendo suas lembranças, antes, tão frescas em minha memória. Seu rosto, Clarice, passei horas tentando me lembrar do seu rosto. Estou perdendo você e isso está me matando.

Estar com ela me afasta da dor, me afasta desse poço no qual me encontro desde que perdi você. Sinto como se, depois de tantos anos no escuro, o sol estivesse nascendo. Ela me afasta da dor, mas é a dor que mantem você em mim, é a dor que me mantem vivo..."

Para: ClariceOnde histórias criam vida. Descubra agora