O cão que só rosnava, latindo alto

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Centenas. Centenas de "Querida Clarice". A última carta tinha a data recente, eu sabia qual era a data. O dia que Daniel me mostrou seu lugar secreto em Guararema. A luz... eu.

Daniel saiu do banheiro e eu continuava ajoelhada no chão, a carta na mão e lágrimas que rolavam no rosto. Tanta dor, tanto sofrimento em papel. Eu sofria por ele. Seus olhos escuros estavam arregalados, chocados e muito, mas muito bravos. Ele travou a mandíbula.

- Dan, eu...

- Solta isso! - Ele berrou. O cão que só rosnava, latindo alto. - Sai daqui! - Ele avançou e eu me levantei, assustada.

- Dan... - Chorei.

- SAI! - Ele berrou alto, para cima de mim.

Corri para fora do quarto, para longe daquele apartamento. Na rua, olhei para os lados e corri na direção de qualquer ponto de ônibus, eu não queria deixar qualquer chance de Daniel me alcançar, mas ele não foi atrás de mim.

Abri a porta do meu apartamento e alcancei o banheiro. O apartamento estava vazio, mas me tranquei no banheiro mesmo assim. Eu nunca havia visto Daniel daquele jeito, nem quando brigou no estacionamento shopping, nunca.

Eu devia ter chorado alguns litros no banheiro, mas não saí com o rosto tão inchado. Ou, pelo menos, Rafa não percebeu quando entrou em casa. Trazia uma sacola da padaria, mas não a padaria de sempre, uma padaria longe e cara.

- Nanda! Como você está? Eu trouxe pão doce, olha!

Falava rápido, andando pelo apartamento como se estivesse com pressa. Oh, eu já sabia que não era bom sinal. Esperei que ela falasse muito mais que o necessário sobre os ingredientes do pão doce - não tinha glúten! - e ela finalmente se sentou no sofá, ao meu lado.

- O que aconteceu?

- O quê? Mas por quê? - Ela perguntou e eu levantei uma sobrancelha. Rafa suspirou, jogou a cabeça no encosto do sofá, suspirou de novo e começou a falar: - Sam esteve aqui. Ele disse um monte de coisa, aí eu fiquei nervosa e saí, deixei ele aqui sozinho. Aí eu me senti muito estúpida de sair da minha própria casa, então eu passei quarenta minutos naquela padaria chique, comprei vários tipos de pães e voltei.

Suprimi a ligeira vontade de rir da situação - Rafaela tagarelando com o pobre vendedor da padaria por quarenta minutos só para não ter que pensar, pobre homem! - e perguntei:

- O que ele disse?

Subitamente, veio o pensamento de que, se Sam visitou meu apartamento, então ele e Dan não se encontraram. Fiquei ligeiramente preocupada, mas ignorei o pensamento. Ela suspirou profundamente e tinha bico de choro.

- Sam falou que quer ficar comigo. Se eu disser, ele cancela o casamento. Ele só pode estar louco! Isso é loucura! Não vai acontecer, eu pedi para ele ir embora, mas ele continuava falando e, Nanda, ele fica tão lindo daquele jeito! Aí eu tive que sair. - Jogou a cabeça no encosto do sofá de novo, enquanto eu digeria aquelas palavras.

- Rafaela! Por que fez isso? Ele vai cometer o maior erro da vida dele e você só precisava dizer "sim" para acabar com tudo.

- Ele estaria cometendo outro erro. Desistir da noivinha dele por mim seria um erro. Ele que tome as decisões por si próprio, não vou fazer a cabeça dele pra depois ser a culpada da felicidade ou da tristeza daquele homem pelo resto da minha vida. - Ela falava com firmeza e me fez pensar por alguns segundos.

- É, você tem razão. Tem toda razão.

- Eu sei. O Matheus da padaria me ajudou com isso, ele só tem dezesseis anos, mas é muito sábio, né.

Para: ClariceOnde histórias criam vida. Descubra agora