Pesadelo

69 10 0
                                    

Ps:. Neste conto haverá demônios de determinadas culturas, tentei deixar claro o que cada um deles significa, mas se não entenderem, é importante pesquisar (obs: apesar de o nome lembrar de Allah, Ala é um demônio da mitologia eslava)

*****
Depois de tudo o que Luiza havia passado por Pedro, não merecia ouvir aquilo. Não, ela realmente não merecia.
"-Não tem mais espaço na minha vida para você, Paloma sente ciúmes da nossa amizade"
Aquelas palavras foram uma sentença de morte. Para ele.
Os olhos amigos da garota, em fração de segundos, se transformaram nos olhos de uma mulher traída.
"-Jamais, jamais me procure de novo, Pedro, e lembre-se: você ainda vai se arrepender disso."
"Não tenho medo, sou uma rocha", pensou o menino.
Ah, pobre menino! Deveria ter se apavorado, fugido, pedido desculpas e voltado atrás ou algo assim, mas não o culpo, ele nem imaginava o que estava por vir, nem imaginava que Aka Manah habitava o corpo da garota.
*****

-Aka Manah, sei que se utiliza de meu corpo. Sei que está escondido entre minhas entranhas e sei que se alimenta da bondade que eu possuo. Pois fique com meu corpo, consuma toda minha alma, se precisar. Só te peço algo em troca: invoque Asag para que sua grande tropa, com suas doenças mortais, assole a todos que Pedro ama. Por favor, Aka Manah, só faça isso por mim.
"Oras, garota, assim tu me enches de orgulho! É claro que convidarei meu grande amigo a fazer uma visita por aqui", Luiza ouviu uma voz rouca e grossa dentro de sua cabeça.
-Ótimo, o que preciso fazer?
"Dá-me teu sangue, pensa profundamente no rosto do tal rapaz e chora. Tuas lágrimas são imprescindíveis."
Então Luiza o fez, cortou seu braço e lhe deu seu sangue, mas o demônio, traiçoeiro, impregnou na cabeça da garota imagens de sua própria família em momentos difíceis, como quando sua avó estava com suspeita de câncer.
-Por que fez isso? - perguntou a garota em prantos.
"Ora, pequenino ser ingênuo, ninguém disseste que o único demônio em que se pode confiar é um Ala?", o demônio gargalhou.
*****

"Casos de morte por câncer cerebral aumentam em 50% desde a última semana na cidade de Acra, preocupando médicos e autoridades locais"
A mesma frase, dita com palavras diferentes, estava estampado em todos os jornais de Gana.
Luíza já nem ia mais aos enterros, havia perdido as contas de quantos parentes já haviam morrido. Já não tinha mãe, pai, avó ou sequer tios, mas Aka Manah não a deixava lamentar por tantas perdas, ele já havia lhe tirado toda sua capacidade de compaixão, e com isso, o frágil corpo da menina parecia ter desistido de lutar, assim como ela.
"Precisas comer, garota, achas que é fácil encontrar um hospedeiro compatível igual a tu?"
-Então por que matou minha vontade de viver?
"Acalma-te, menina, só estou me divertindo"
-Está me matando
"Quanta impertinência! Que seja, faremos um trato..."
-Não adianta, não vou acreditar em você de novo!"
"Mas tu és mesmo muito inconveniente! Cala-te e me deixa falar"
-Então fale, mas já vou avisando que não vou aceitar
"Hahaha, achas que tens escolha? Quando dormires, me encontrarás juntamente a Asag, e poderás desafiar um de nós a ma luta mano a mano, se vencer, o derrotado sairá da cidade"
-E se eu perder?
"Viverás para sempre no caos que criamos"
-E se...
"Tu não tens a opção de não lutar"
-Que seja
*****

Luiza ficou imersa nos próprio pensamentos até pegar no sono.
Dormir. Seu maior medo.
Assim que fechou os olhos, viu uma multidão de pessoas feridas à sua frente, todas se aglomerando em volta de algo.
"Aka Manah", pensou, "aqui vou eu".
Caminhou tremendo, e ao chegar mais perto, sentiu a força que emanava de dentro de cada um dos seres minúsculos que estavam em sua frente.
-Então você é a tal Luiza? - Asag lançou-lhe um olhar de desprezo - esperava mais de alguém que se chama lutadora.
Por algum motivo, Luiza sentiu vontade de sair correndo e enforcar aquela criatura de meio metro de altura. Era a força de Aka Manah sobre a menina.
"Escolha ele", algo sussurrava em seu ouvido. "Se não escolher, vai morrer assim como todos de Gana".
Luiza se retorcia como se, de alguma forma, fosse conseguir assim, espantar os pensamentos indesejados de sua cabeça.
-Sabia que você iria trapacear! - berrou, mas sua garganta criou vida própria ao proferir:
-Asag, quero lutar contra você.
Em menos de um minuto, o pequeno ser virou um gigante de cinco metros de altura.
"Merda, merda, merda!", pensou.
-Está com medo, Luh? - Luiza reconheceu a tal voz com um arregalar de olhos:
-Pedro? Aonde você está?
-Estou aqui, bem atrás de você, para assistir de camarote a morte da infeliz que matou minha namorada
-Paloma, ela está...?
-Morta? É claro que sim, mas você não vai se livrar dessa.
Ao virar para trás, toda a multidão havia sumido, dando lugar a apenas uma cadeira com um garoto algemado. Seu rosto tinha um corte profundo do qual escorria sangue vermelho vivo, sujando seu pescoço, roupas e fazendo o contorno por seus olhos.
-Você... Você está doente!
Por um momento, a sanidade voltou aos olhos de Luiza, percebendo realmente o que havia feito. Mas foi só por um momento.
-Que seja, morra!
-Seu desejo é uma ordem, - Asag disse, ironicamente - não vamos lutar, você apenas terá de matá-lo.
Luiza olhou para Aka Manah, que exibia um sorriso de vitória ao parar de controlar a mente da menina e deixá-la à própria sorte.
Asag lhe estendeu uma faca curta, o que significava que ela teria que vê-lo sofrer com os cortes antes de finalmente dar seu último suspiro.
A primeira lágrima em semanas caiu do rosto da menina enquanto ela proferia palavras vazias:
-Eu ainda te amo
-Só acaba logo com isso - Pedro sentiu sua voz falhar enquanto tentava desesperadamente não demonstrar sentimentos. não perto daquelas que arruinara sua vida, e estava prestes a tirá-la também.
As mãos de Luiza tremiam. Ela sabia o que aquilo significava: de todo jeito, Aka Manah venceria, mas não deixaria Asag vencer. Não, ele não.
Pegou a faca da mão do demônio e caminhou até a Pedra que havia partido seu coração.
-Adeus, Pedro
A cada novo corte, a cada novo pedaço de pele aberto, o coração da menina se enegrecia mais, e quando desferiu o último deles em direção ao pescoço do garoto, pôde ver a lágrima vermelha que descia discretamente por sua bochecha.
-Dessa vez, fui em quem partiu seu coração - disse, jogada sobre o corpo inerte daquele que representou sua vingança pessoal, e ao levantar os olhos, viu a multidão novamente, mas todos pareciam pequenos diante da grandeza do que acabara de fazer, então entendeu que o amor é tão perigoso quanto o ódio, e entre soluços grotescos, fez seu último apelo:
-Por favor, Aka Manah, volte para meu corpo
E o demônio o fez, sem nenhuma compaixão, voltou. A atormentou até o final de sua vida, não permitindo que ela esquecesse a sensação de ter aquele líquido viscoso e quente espirrando em seu rosto. Enquanto seu amado não proferiu um sequer grito. E aquilo, ele a permitiu sentir.
"Ao vencer, a pequena virou grande, sua inexperiência se tornou aprendizado, e com o coração agora blindado, a gigante caminhava em meio à multidão, achando a saída para encarar novamente a vida", ou quase isso.

#Pesadelo, de VivendoNasNuvens

M-48 ContosOnde histórias criam vida. Descubra agora