O pior dos venenos

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Tudo que se torna um hábito diário acaba se transformando em dependência.
Principalmente quando consiste numa necessidade.
Era o que estava pensando o S. Onofre, enquanto procurava distinguir alguma nuvem
no céu. Mas só o que conseguia ver era uma indefinição geral de imagens, sem nenhum
sentido. Não poderia dizer, se perguntassem, se uma nuvem era arredondada ou comprida. E
nem quando deixava de ser nuvem e passava a ser céu.
Levantou-se da espreguiçadeira, com cuidado, decidido a procurar Marta para pedir
um copo d’água. No primeiro olhar conseguiu divisar alguns vultos caminhando pelo pátio,
sem, no entanto, ser capaz de identificar algum. Não poderia sequer afirmar se uma pessoa
que passava por ele a cerca de dez metros de distância era um representante de seu próprio
sexo ou do oposto.
Por experiência, já sabia de cor o caminho da copa. Por isso não teve muita dificuldade
em atingi-la, mesmo que cambaleantemente. Estacou na porta de entrada, encostou o ombro
no portal e perguntou para a frente:
— Marta?
Logo uma das moças de branco se aproximou, solícita:
— Como vai, S. Onofre? Quer alguma coisa?
— Eu quero água.
— Num instante. Venha comigo.
Pegou-o pelo braço e cuidadosamente guiou-o até uma mesinha próxima. Sentou-o e
cantou alegremente:
— Já volto!
Deixou-o só, com uma aflição incomum.
Fazia apenas dois dias que perdera seus óculos. E a sensação era horrível, para quem já
estava habituado a viver setenta anos do alto de seus seis graus de miopia. A Diretora do Lar
dos Velhinhos já havia providenciado novas lentes, que deveriam demorar ainda cerca de uma
semana para chegar. Aliás, D. Matilde fora muito prestativa em apressar-se com a encomenda,
como era bem de seu feitio. A despesa não importava: foi suficiente enviar uma cartinha para
sua neta, em Nova Iorque, e avisar do incidente, que o valor das novas lentes seria anexado ao
pagamento mensal do Lar dos Velhinhos.
Marta voltou com o copo d’água, colocou-o em frente a S. Onofre e sentou-se na
mesma mesinha, diante dele.
— Alguma notícia de sua neta, S. Onofre?
Antes de responder, primeiro ele tentou encarar a mocinha. Viu seu rosto, embora
sem poder jurar onde exatamente ficavam os olhos, o nariz ou a boca.
— Nenhuma. Como sempre.
— Ah.
Ela ficou girando o dedo indicador em torno do que parecia ser um desenho na
toalhinha sobre a mesa. E S. Onofre indagava-se por que ela fazia sempre a mesma pergunta.
Não ficara claro que sua neta o internara — detestava esta palavra — o internara naquele asilo
para que tivesse liberdade de mudar-se para o exterior sem ter que carregá-lo, como a um
fardo?
Tomou um grande gole d’água.
— Minha neta não gosta de mim, Marta.
Ela levantou o rosto rapidamente, como se acordasse, e retrucou:
— Ah, não diga isso, S. Onofre! É claro que sua neta o adora!

Ele admirou a disposição com a qual ela tentava por em prática a psicologia que
estudara no curso de Enfermagem, mas nada respondeu. Limitou-se a tomar outro gole
d’água.
A voz da Enfermeira-chefe pronunciou o nome de Marta e a levou embora. S. Onofre
ficou sozinho. Terminou de tomar a água em goles gigantes, e saiu em direção à luz que vinha
da porta.
Ele estava gravemente preocupado. O acaso não tinha, decididamente, escolhido a
melhor hora para que ele perdesse seus óculos. Isto reduzia incalculavelmente sua liberdade e
autoconfiança. Afinal, ele, com oitenta e quatro anos, era um dos mais considerados velhinhos
do asilo. Um dos poucos — pouquíssimos — que tinham permissão para sair à rua
desacompanhado, e voltar quando bem entendesse — obedecendo, é claro, a certos limites.
Limites até compreensíveis. A Diretoria não podia se arriscar a que um dos internos passasse
mal na rua. Era muita responsabilidade. Mas S. Onofre tinha lucidez e saúde suficiente, em sua
nona década de vida, para obter esta concessão.
Mas agora, sem óculos... será que continuaria podendo sair? Isto poderia acabar
atrapalhando os planos.
Precisava ficar sozinho, pra pensar. Procurou a direção do banquinho que havia no
centro do pátio. Não precisou chegar muito perto para notar que já havia alguém nele
sentado. Ia dar meia-volta, quando percebeu seu nome chamado em voz alta. Parou e
esforçou-se para descobrir de onde vinha a voz.
— Aqui no banco, Onofre!
Ah, sim. A dona da voz era D. Silvânia, conhecida por todos como D. Silvaninha.
Encaminhou-se para lá.
— Sou tão pequenininha assim, que você não me vê de longe? — gracejou a velhinha,
adicionando uma risada fraca e muito gostosa de se ouvir.
D. Silvaninha era, realmente, um amor de velhinha. Do tipo que faz as pessoas
pararem na rua e ficarem olhando, enquanto ela passa. Era pequenina, magrinha, com as faces
sempre rosadas e risonhas. Os olhinhos sempre faiscando, como que delatando a intensa
eletricidade que percorria seus membros, fazendo-a a velhinha mais ativa e simpática do Lar
dos Velhinhos.
S. Onofre, calado, sentou-se a seu lado. Não arriscou-se a olhá-la. Tinha medo de, sem
querer, dirigir o olhar para outro ponto que não os olhos de sua interlocutora, e receber uma
gozação.
— É impressão minha, ou você está hoje mais quieto do que o normal? — perguntou,
com um toque de apreensão no brilho das pupilas.
— Talvez.
Ela ficou olhando-o, interessada. Ele prosseguiu:
— Estou sem meus óculos. Não sei como faremos amanhã. Acho que isto pode
dificultar um bocado as coisas.
— Muito?
Ele sacudiu devagar a cabeça, afirmativamente.
— Mas não dá pra você ir, mesmo sem ver direito?
— Acontece que o que vejo é menos do que você imagina.
Ela continuou olhando-o, já preocupada. Ele:
— Não dá pra avisar todo mundo?
— Já está muito perto, não dá mais. Lembre-se que não podemos fazer nenhuma
reunião. Todas as nossas comunicações são qualquer coisa parecida com “telefone-sem-fio”.
— e deu uma risadinha curta e gostosa, para completar.
Mas S. Onofre não riu. Como ele faria para sair assim, sozinho, na rua? Será que D.
Matilde daria permissão a ele, ou consideraria este um caso especial? Teria ele que desapontar
seus oito colegas? Tudo já estava planejado há mais de um mês...

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Leia a continuação deste conto no livro "O pior dos Venenos".

#O pior dos venenos, de Flafon

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