Literatvs

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1ª parte – Antes

Pelo eco de nossos passos nas paredes laterais, eu imaginava estar atravessando uma
das muitas vielas da cidade. Não saberia dizer qual; já fazia algum tempo que andávamos, já
era noite, e o pano preto em minha cabeça não deixava vislumbrar sequer um brilho de luz.
No entanto, poderia até dizer que os dois homens que me conduziam pelo braço eram
quase gentis. Seguravam-me com firmeza suficiente para que eu não caísse a cada tropeço,
mas sem me machucar. Bom sinal. Nestes tempos de Inquisição, se quisessem me matar eu já
estaria em bem piores condições.
Se não atravessássemos os muros da cidade, em breve chegaríamos, seja lá onde
fosse. A cidade não era tão grande assim, por mais voltas que tivéssemos dado.
Mas por que razão estaria eu sendo levado por asseclas da Inquisição? Afinal, sempre
fui bom cristão, seguidor da Santa Madre Igreja! Inclusive, trabalhava como organista titular na
capela local.
Enquanto minha mente se esforçava para encontrar respostas, percebi que
entrávamos em uma construção. Ouvi o som de ferrolhos se abrindo, o vento frio diminuiu
consideravelmente, e o eco tornou-se bem mais amplo, indicando um grande salão. Depois
outro salão. Depois outro. E assim fomos indo cada vez mais para o interior do misterioso
prédio.
Finalmente paramos, e fui colocado em uma cadeira. Tiraram-me a carapuça, e pude
olhar em volta.
Eu estava em um aposento largo, quase vazio. Bem pouco iluminado, de forma que a
penumbra nos envolvia. Dos dois lados grandes janelas ocupavam as paredes quase por
inteiro, mas eram tão altas que um homem não poderia olhar por elas. Alguns metros à minha
frente, uma grande mesa de madeira ricamente trabalhada, sem cadeiras, com dois castiçais
acesos, um em cada ponta. E, do outro lado da mesa, em um assento luxuoso, similar a um
trono da nobreza, encontrava-se confortavelmente instalado um senhor de meia idade,
rechonchudo, barba esbranquiçada, vestido com certo requinte, mas sem exageros.
Então ele falou, numa voz pausada, aparentemente tranquila, num registro grave:
— Vocês dois, podem deixar-nos a sós.
Os homens que até ali me levaram, e que postavam-se ainda de pé, pouco atrás de
mim, após rápida mesura giraram nos calcanhares e saíram por onde entramos, com um ruído
de tranca na porta.
Por mais que eu quisesse saber onde estava, quem eram, por que eu estava ali, o
máximo que consegui foi permanecer calado, incapaz de me mover. Então esperei. Mas não
muito. Logo o senhor se dirigiu a mim:
— Seja bem vindo, meu filho — e eu não decidia se sua voz arrastada parecia
acolhedora ou assustadora. — Você está aqui para receber um convite.
— Um... convite? — mil ideias corriam em minha cabeça, e nenhuma fazia sentido. —
Convite para o quê?
— Você está sendo convidado para entrar na Irmandade Literatvs.
Fiquei um tempo em silêncio, ruminando aquela informação. Então inspirei
lentamente e me arrisquei:
— Literatvs? Tem algo a ver com livros?
— Exatamente.
— Aqui em França?
— Não, meu filho. Em todo o mundo.
Pensei mais um pouco. Ainda não fazia sentido. Gosto de livros, mas sou apenas um
músico. E uma irmandade que abrange o mundo todo deve ser muito poderosa. Como e por
que teriam vindo a mim?
Como eu estava sendo razoavelmente bem tratado, com certa liberdade para falar,
tomei coragem para continuar perguntando:
— O que faz esta irmandade?
E a resposta deixou-me ainda mais atônito:
— Ainda não faz nada. Os Literatvs começarão sua atividade apenas daqui a alguns
séculos.
Fui obrigado a ficar novamente calado. Minha mente não foi capaz de encontrar algo
para dizer.
Então o senhor quebrou o silêncio:
— Você tem tido algum sonho estranho, meu filho?
Relutei para responder. Certamente tenho tido sonhos, e normalmente sonhos são
estranhos. Porém, por mais absurdos ou ingênuos que pareçam, não saímos contando-os a
qualquer pessoa. Será que eu poderia confiar nele?
— Não tenha receio, meu filho. Pode me contar.
Arrepiei-me. Estaria ele lendo meu pensamento?
— Eu... tenho sonhado...
— Sim?
O que ele poderia fazer? Afinal, era só um sonho! Ninguém pode me culpar por algo
que não existe, não é mesmo? Decidi dizer a verdade.
— Bem, eu tenho sonhado frequentemente com uma pequena janela. Mas é uma
janelinha de luz, e eu a seguro em minhas mãos. Parece que a luz vem de dentro dela...
— E o que você vê através desta janela?
— Letras. Muitas letras, palavras. Mas não consigo lê-las.
— Eu sei, ainda não. Mas vai conseguir. O que mais?
— Parece que há pessoas do outro lado da janela. E elas estão querendo falar comigo.
Acho que são elas que controlam as letras e as palavras.
Eu falava olhando para minhas mãos, mas neste momento olhei de soslaio para o
senhor. Ele quase não se movera desde o início de nossa conversa. Se não estivéssemos
falando, eu poderia dizer que ele dormia.
Mas ele continuava falando:
— Certamente você não lembra, mas você já teve este sonho antes.
— Sim, ele tem se repetido com frequência.
— Não, meu filho, quero dizer bem antes. Você teve este sonho quando vivia na
Grécia. Você até chegou a ir ao Oráculo de Delfos em busca de uma interpretação.
Quase me arrependi de ter contado a ele. Decerto eu estava diante de um velho louco,
que não sabia o que dizia. Mas que tivera o poder e a ousadia de me sequestrar até ali. Louco
e perigoso. Por isso, mesmo assim, procurei responder com educação:
— Mas eu nunca estive na Grécia, senhor. Deve ser um engano...
E sua voz continuou na mesma lentidão:
— Esteve sim, meu filho. Em outra encarnação.
Agora sim eu estava em apuros. Decididamente. Eu, que pensara que havia sido
capturado pelos executores da Inquisição, encontrava-me frente a frente com um herege!
Minha razão dizia-me para levantar e procurar escapar dali o mais brevemente
possível, antes que os verdadeiros inquisidores nos achassem e me relacionassem a esses...
esses...
Mas a curiosidade em descobrir quem eram “esses” me manteve na cadeira, e ainda
argumentando:
— Senhor, a reencarnação não existe. O Santíssimo Papa...

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