Água

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De repente tudo começou a ficar cheio d’água.
Quando ele notou várias poças transparentes na manteiga, não estranhou. Mas
quando virou o pote de mel e só viu escorrer água, então percebeu que alguma coisa estava
errada.
Chamou a empregada e mandou jogar o mel fora, xingando os produtores.
Mas o açúcar estava melado, o café estava fraco, a geleia estava líquida.
Ele começou a ficar preocupado.
O chão do banheiro estava todo molhado, e a água que saiu da torneira e lavou suas
mãos era a única que ele queria.
Foi para o trabalho e o dia transcorreu normal.
E quando voltou, encontrou sua casa cercada de terra úmida, como se só ali houvesse
chovido.
No dia seguinte não havia leite. O saquinho plástico que a empregada trouxera da
padaria estava cheio de água. E os pães vieram mofados. Antes de brigar com a empregada
por lhe trazer uma garrafa térmica cheia de água quente, mandou que ela guardasse a água
que viera dentro da embalagem de leite em um recipiente de vidro. Decidira levá-la para um
laboratório e pedir a análise.
Pensou em questionar sua própria sanidade assim que viu suas canetas com água no
lugar de tinta. E todos os seus documentos mais importantes estavam molhados.
Saiu de casa aturdido. Foi ao laboratório e deixou o material para a análise, em troca
da promessa de uma resposta em um dia.
Na outra manhã, com as roupas úmidas e a pé, pois seu carro continha água no
tanque de combustível, voltou lá e pegou o resultado: o misterioso líquido era H2O.
Decidiu tomar alguma atitude mais séria. Procurar alguém. Quem? Morava sozinho,
com a empregada que ia de segunda a sexta. O certo seria entrar em contato com os órgãos
públicos. Qual? A ANA? O Ministério da Saúde? A polícia? O FBI? A TV Globo?
Isto. Pegou uma folha de papel e um lápis, e escreveu uma carta para o “Fantástico”.
Não tinha cola para fechar o envelope; o tubo estava cheio d’água. Fechou com o
grampeador. E desistiu de ir ao correio quando viu escorrer água pelos furinhos dos grampos.

Jogou o envelope que se desfazia na cesta de lixo, cheia d’água até a borda.
Procurando pela casa algum pedaço de madeira e carvão, para escrever sem perigo, só
encontrou água. A geladeira estava cheia d’água, os armários de mantimentos só tinham água,
o bujão de gás não tinha gás, tinha água, todos os móveis estavam molhados, apodrecendo,
escorregar no chão era fácil.
Ele lembrou de Lavoisier e sua frase: “Nada se cria, nada se perde...”.
Atônito, não sabia mais o que fazer. A televisão e o computador entraram em curto
desde a última vez em que os tentou ligar, pois seus circuitos estavam cheios d’água. Todos os
seus livros estavam imprestáveis, com as folhas coladas, e alguns até já sem folhas. A casa se
enchera de goteiras. Já chamara o encanador, que não encontrara nenhum defeito nas
instalações da casa, e levara consigo um resfriado. Já tentara inutilmente esvaziar os quartos
de água, secar o assoalho, já jogara baldes e baldes de água no jardim, e apenas as plantas
pantanosas sobreviveram. Pingava água de dentro do telefone, que não funcionava, todas as
fechaduras e objetos de metal enferrujaram, as trancas só trancavam, não mais abriam. Ele
suava.
Afinal, desistiu de lutar. Deixou tudo como estava e foi dormir.
No outro dia, pela manhã, a empregada encontrou a cama dele vazia, encharcada.

#O pior dos venenos, de Flafon

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