Redenção

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São três da manhã e ainda não consegui dormir. Odeio esses pensamentos que enchem minha mente assim que eu deito na cama. Odeio pensar demais. Principalmente quando recrio diálogos que deveria ter feito ou quando crio expectativas para o que vai acontecer.  Sou um covarde, admito e odeio isso. Malditos gatos miando no telhado e o cachorro da vizinha que não para de latir. Por que ele não se cala? De que adianta ficar latindo? É melhor eu me levantar.
Como é ridículo um cara de 30 anos que não fez nada de importante na vida. Todos os meus colegas da faculdade de física hoje estão bem na vida, alguns são astrônomos ou professores renomados e eu aqui nessa vida de merda dando aula para alunos burros que não querem nem saber do que estou falando. Eu sei que sou inteligente, poderia trabalhar no CERN, mas... teria muito trabalho. Talvez eu tenha mesmo a vida que mereça, uma vida medíocre para alguém medíocre. Não aguento mais esse gato vou lá fora matar ele.
Quando saiu, a senhorinha minha vizinha está com o maldito gato nos braços, mas a sua frente está um assaltante que tenta persuadi-la a abrir a porta para assaltar a velha. Lembrei de quando ela chamou a polícia porque eu estava ouvindo música alta. Velha chata. Mas eu tinha que fazer algo:
- Ei!
- O que faz aqui, cara? Se liga! Vai embora! Entra de novo na tua casa! - Eu tinha que fazer algo.
- Calma. - Não sabia se estava dizendo isso para ele ou para mim mesmo. - Calma.
- Qual é a tua? Já disse. Vai embora!
- Espera, eu... - Eu não sabia o que dizer.
- Não se aproxima, cara. Eu tô falando... Se chegar mais perto eu atiro na velha! - O cara era iniciante. Estava fazendo tanto barulho que os vizinhos já haviam acordado. Era um moleque, devia ter uns 16 anos e era baixinho. Eu continuei andando, sabia que ele não ia atirar, ou pelo menos queria acreditar nisso. - Tá pensando que eu tô de brincadeira é vagabundo, toma isso!
Não sei o que me deu, não sei porque quis bancar o herói, principalmente para a Dona Ana, essa velha chata nem valia a pena. Mesmo assim ainda vi ele correndo e deixando ela depois de atirar em mim. Sim, ele atirou. A bala poderia ter passado de raspão já que ele estava nervoso poderia ter errado, mas não. Ela poderia ter passado a fossa supraclavicular menor sem romper nenhum ligamento ou artéria, poderia até mesmo passar logo a baixo do osso externo do tórax quebrando o processo xifoide, passaria logo a baixo do coração, sem causar nenhum dano a ele, passaria entre os dois pulmões sujos de cigarro e bem perto do esôfago. Será que pelo menos desta vez Deus não poderia ter feito algo? Não o culpo. Passei a vida inteira sem acreditar nele porque ele me ajudaria agora. Se ele existir deve estar rindo de mim agora. Mas não... a maldita bala tinha que, por acaso, acertar exatamente a baixo da quinta costela, próximo ao maldito osso externo, no meio do meu coração. A sensação não durou mais que alguns segundos. Fisicamente senti meu coração vazar como uma mangueira furada. Senti o vazamento começar a entrar nos meus pulmões e subir pela minha garganta que logo iria me fazer afogar com meu próprio sangue, mas não tão logo quando uma dor fina que se espalhou pelo meu tórax, provavelmente por causa da grande hemorragia, mas não senti tanta dor. Logo fiquei dormente, começando das pernas, depois dos braços, minha vista escureceu e eu não senti mais nada... Estava morto?
...

A beleza da vida certamente está na morte, a força mais poderosa e incontrolável para um mortal. É incrível como ambas parecem se completar em sua paradoxalidade, chega a ser poético. Quem eu sou não é importante, basta saber que sou um eterno todo poderoso de outros universos, ou seja, sou como o seu Deus, Javé, Jeová, Adonai, ou sei lá como queira chamá-lo. O fato é que fizemos um trato, esse Cezar é de suma importância para mim, mas antes de tudo... Sim. Ele está morto. Morto nessa existência que vocês conhecem. A vida é interligada em todos os universos. Todos os seres mortais, formados de partículas, luz, quarks, ondas ou qualquer outra substância, todos estão interligados pela vida e morte.
Alí está o corpo de Cezar morto, mas esse não é exatamente o Cezar que você acabou de ver morrendo tentando salvar a Dona Ana. Esse Cezar aqui sofreu um acidente a poucos minutos atrás nas minas em que trabalhava, ele inalou mercúrio demais e morreu. O Cezar da sua Terra agora está chegando para dar vida novamente a esse corpo, um corpo humano como o dele, mas com uma diferença:
- O coração dele voltou a bater. – Disse uma jovem muito bonita de cabelos dourados em duas tranças que se encontravam em sua nuca, seus olhos verdes refletiam a esperança de ver novamente Cezar vivo e lá fora o sol nascia.
- Não pode ser possível. – Disse a outra que estava ao lado da cama de Cezar, uma garota alta, também bonita, mas forte, de cabelos cor de tangerina numa trança grossa.
- Sim! Ele está vivo! – disse um pequeno ser parecido com mulher com azas de borboleta que voava ao lado das duas garotas, não parecia ter mais que dez centímetros, mas brilhava com uma luz azul. - Um milagre.
- Onde estou, minha cabeça dói.
- Você está de volta, Cezar, de volta a vida.
- De volta a vid... Eu lembro que estava ajudando a Dona Ana e um assaltante veio e... Como vim parar aqui? E onde é... aqui? - Não conhecia nada ao seu redor. Era uma pequena casa de barro, algumas panelas pretas em cima de um fogão a lenha. Viu sentado num piso de chão batido.
- É a pancada foi forte mesmo. – Disse o ser voador.
- O que é você?
- Sou Lix, não lembra de mim?
- E vocês quem são?
- Abgail, - disse a jovem forte – e essa é Lívia. Lix é apenas uma existência de luz insignificante.
- Não fala assim dela. – Disse Lívia.
Cezar contou sobre sua vida na outra terra e como morreu, até conseguir convencer que falava a verdade enquanto elas tentavam convencê-lo de que aquilo não era um sonho.
- Então que lugar é esse?
- Está no planeta Tiamat. – Respondeu Abgail.
- Tiamat? Onde fica isso? Sei um pouco sobre astronomia. Talvez se me disser a constelação.
- Constelação?
- Sim. Em que quadrante do espaço?
- Bem, o que sei é que Tiamat é o terceiro planeta a partir de Apsu. – Disse a linda Lívia.
- Apsu?
- Sim. – Apontou para o Sol que nascia no horizonte.
- O Sol.
- Não, Apsu.
- Meu Deus! Eu estou na... Terra?
- Não. Tiamat. O mais próximo de Apsu é Mummu, depois Lahamu, aí Tiamat, depois Lahmu, Kishar, Anshar, Anu e Ea.
- Devem ser os mesmos planetas, mas como isso é possível?
- Não sabemos.
- Eu sei quem pode saber. – Disse, Lix – O velho Sodan, ele sabe de muita coisa. Deve saber...
- Ora cale-se, ser. Aquele velho doido não sabe nem que dia é hoje. Ainda acho que é o mesmo Cezar, só bateu forte a cabeça e ficou meio doido também.
- Quero ver esse Sodan.
- Tudo bem. Lívia vai com vocês lá enquanto eu lavo o que ficou sujo do almoço. Quando voltarmos vamos tomar um banho. – Cezar não entendeu porque ela não tomaria o banho primeiro, mas fez o que ela mandou, não parecia prudente contrariá-la.
Os três saíram da casa e uma nuvem cobriu a sol quando Cezar olhou ao seu redor. O chão parecia cinza, seco e sem vida, assim como o céu. Ele lembrou-se de sua vida e de como ela parecia mais colorida agora. Realmente só se sente falta do que se tem quando se prova a sua ausência. Cezar não se conteve, caiu de joelhos. Lívia e Lix olharam para trás sem entender, ele começou a chorar e uma fina chuva começou a cair do céu.
- Nossa! A quanto tempo não chovia?
- Bastante tempo. – Disse Lix.
Quando ele se recompôs levaram-no ao velho Sodan. Chegando lá Cezar lhe contou tudo o que sabia e esperava uma solução. O velho cego disse:
- Então... Cezar. Posso ver claramente que você não é o mesmo de ontem. Há outro Cezar aí dentro.
- Consegue ver isso? – Perguntou, Lix.
- Pequeno ser, eu vejo muito, vejo mais que você porque não vejo com os olhos. Os olhos enganam, fazem acreditar que vemos a verdade quando só vemos o disfarce da verdade. O mundo nos engana todos os dias. – Ele falava de um jeito engraçado, muito enfático gesticulando em sua cadeira de balanço. – Eu vejo com os ouvidos e com o coração. Eu sinto pela forma como ele fala, pelo jeito com ele pisa e respira. Se vocês não enxergam isso vocês é que são os cegos. Ele é o predestinado! ...
- A que? – O velho parou para pensar e fechou os olhos até que começou a respirar forte e...
- Ele está dormindo?
- Ei! Vamos em embora. – Disse Lix, indignada.
Ao chegar em casa Abgail estava esperando-os enrolada em uma toalha. Cezar olhou para o seu corpo musculoso e escultural e ela perguntou:
- O que foi? – Até que ele entendeu, O Cezar de Tiamat era gay. Por isso vivia com duas garotas.
- Não é nada. Eu... Gosto de garotos mesmo. Esse seu corpo não me faz... Inveja. – Ela entortou as sobrancelhas.
- Você está estranho mesmo. Vamos logo que não podemos gastar muita água.
No banho, entre lapsos de concentração e lutas internas com ele mesmo, Cezar tentava entender esse planeta enquanto tentava não olhar para onde não devia e era uma luta árdua já que só tinha um chuveiro feito de uma lata furada para os três tomarem o único banho do dia.
- Então aqui em Tiamat os humanos são escravos, mas de quem?
- Os Anshara. Minha avó dizia que o dia mais negro de Tiamat foi quando os habitantes de Anshar vieram em seus barcos que viajavam no ar.
- Saturno. Anshar é saturno.
- Chame como quiser. Em sua inocência nossos antepassados lhes falaram do ouro e todos os minerais existentes na terra. No início eles pareciam pacíficos e davam artefatos baratos pelos metais precisos. Algum tempo depois eles começaram a vir armados exigir os metais sem nada em troca, como se pagassem algo que valesse anteriormente. Em pouco tempo nos tornamos escravos deles. Eles nos sugam até as últimas forças nas minas trabalhando para eles. Todos os dias eles vêm. Eles não são tão diferentes de nós fisicamente, são altos, fortes, brancos e sem pelos nem orelhas ou narizes. No resto são iguais, inclusive levam humanas para Anshar para servirem de suas prostitutas. Nossos ancestrais até tentaram, mas não temos mais esperança para lutar.
Logo o dia acabou e a noite chegou, com ela Cezar demora a dormir pensando em tudo aquilo e algo ecoa em sua mente "O predestinado", que o velho havia falado. Pensou muito até que adormeceu e no dia seguinte foi a casa do velho. Mas quando chegou lá ele ainda estava sentado na mesma cadeira de ontem, sentiu sua pulsação e constatou: estava morto. Sentiu o cheiro em sua boca, era veneno. Mal teve tempo para pensar:
- Vamos, Cezar! – Chegou Abgail e as outras chamando-o para o trabalho.
Era muito exaustivo. Um grande telão flutuante dava ordens diretamente do general Anshara a Taimat. Só quem conseguia entender eram os solados Anshara e os humanos que trabalhavam para eles como soldados. Seus músculos já ardiam quando ele bateu numa pedra oca, bateu novamente e a quebrou. Viu algo brilhar lá dentro e outro homem perguntou:
- O que é?
- Nada!
- Sim. Não é nada. – Ele achou estranho o homem o obedecer.
- Ei, você.
- Sim?
- Fique parado.
- Sim.
- Ande.
- Sim. - E começou a andar. Mil coisas passaram pela mente dele. Imaginou que por ele ser de uma civilização mais avançada sua mente seria mais forte, mas não conseguia entender bem porque aquele homem estava o obedecendo como se estivesse hipnotizado. Entrou no buraco na pedra e ficou abismado com o que viu. Correu e foi chamar Abgail, Lívia, que estavam com Lix, para verem.
- Eu não acredito. – Disse Lívia. – É a Espada da Luz de Apsu. Eu ouvi histórias quando pequena, mas, não pensei que ela existisse. Ela tem o poder de Apsu, nada conhecido, nem pelos Anshara supera ela. Assim me disseram quando criança.
- Lix tentou tirar, mas não conseguiu.
- Somente o escolhido para a libertação da humanidade pode tirá-la. – Ele tentou mas para a surpresa dos quatro ele não conseguiu. Até que Abgail tentou e conseguiu.
Cezar começou a pensar profundamente em tudo aquilo procurando padrões. Até que percebeu o que tinha que fazer, entendeu seu papel ali. Como o sol nasceu quando ele chegou, a nuvem cobriu o sol quando ele ficou triste e choveu quando ele chorou, Tiamat estava dentro dele.
Cezar esperou os guardas Anshara passarem e dominou-os com sua mente. Um a um ele foi dominando-os. Subiu em uma nave levando Lívia, Lix e Abgail com a Espada, no caminho conversou secretamente com Abgail sobre o seu plano, a grande mulher chorou, mas entendeu. A nave voava rápido, quase na velocidade da luz, e logo estavam em Anshar, Saturno, onde as cidades flutuavam sobre as nuvens. As nuvens eram tão densas que barcos andavam sobre elas. Chegaram até a capital que formava um hexágono no polo norte do planeta. Lá dominou os Anshara e falou no grande telão para que todos o ouvissem em Tiamat.

- Irmãos de Tiamat, eu tenho o poder dos Deuses! Eu consigo controlar qualquer um e logo terei o universo aos meus pés. – Todos na terram viam e gritavam de alegria. – Inclusive vocês! – Todos se calaram. – Vocês vão trabalhar em cada planeta para mim, extrair seus recursos e passar para outro até que não haja ninguém mais poderoso que eu no universo. Serão eternamente meus escravos assim como seus filhos, netos e bisnetos. Para sempre servirão o poderoso Imperador Cezar, porque eu sou invencível, eu sou um deus!... Ah! – A ponta da espada com sangue é vista a frente de Cezar, a espada transpassou-o e ele ainda pode sussurrar a Abgail – Obrigado. – Antes de cair no chão. Ela engoliu seco e falou para toda a humanidade:
- irmãos! Chaga de opressão. Esta é A Espada da Luz de Apsu, ela existe e com ela poderemos defender nosso planeta. Quero que saibam que ela é um sinal de que uma nova era nasce, uma era em que a humanidade não se curvará a nenhuma outra espécie, defenderemos nosso planeta, custe o que custar! – Toda a humanidade gritou junta, o poder sobre os guardas Ashara acabou, todos os humanos se rebelaram e lutaram por sua liberdade. A poderosa Espada da Luz de Apsu deu a Abgail, que já era forte, um poder ainda maior, ela era realmente a escolhida.
Cezar percebeu bem seu papel, ele não estava ali para salvar aquele povo, ele estava ali para lhe dar algo mais poderoso que a liberdade, a esperança, e assim conquistar a sua redenção.

De OtavioMSilva

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