Ele sentou-se, apoiou as costas na cabeceira da cama e acendeu um cigarro. Ela continuou deitada, olhando-o com o canto dos olhos. Via-se um brilho contente e satisfeito em seus olhos. Seus corpos nus e suados, que antes brigavam ferozmente pelo prazer absoluto, agora eram cacos cansados prestes à desmoronar de arrependimento.
- É, nós fizemos de novo... – disse ele, soltando uma longe rajada de fumaça.
A fumaça açoitou a janela que não ficava muito longe dali. Ela ficou olhando-a, quase que tentando desvendar algo.
- Por que ainda fazemos isso? Nós dois somos casados. Somos felizes com quem escolhemos ter para sempre ao nosso lado.
Ela fitou-o, pensou, e não disse nada.
- É sempre assim, né!? Mesmo quando felizes, tendemos à buscar o imperfeito. Por mais que satisfeitos, buscamos o novo. Eu odeio essa realidade. Essa deprimente e maçante realidade. Meio que me sinto preso à padrões que eu mesmo detesto. Não importa aquilo que faço, e sim tudo que abomino. Mesmo estando aqui, mesmo sendo um traidor, eu não me vejo como errado. O amor é tão líquido e tão subestimado que qualquer falha de caráter pode ser absorvida. Mas ah, se fosse comigo, se EU estivesse sendo traído, seria o fim. Isso é simples: sou egoísta, e a hipocrisia é tão amarga em meu peito que chega à ser inevitável. Mas sempre fazemos isso, certo? Sempre vemos o errado e o ignoramos piamente. É mais fácil. É menos cruel fingir que não importa. Eu amo minha mulher. Sei que ama seu noivo. É sempre assim. Nada é tão suficientemente grande à ponto de ser maior que nosso próprio objetivo. O prazer não é absoluto; o que temos nem sempre bastará. Você não acha estranho? É por isso que eu bebo. Quando paro e penso que ninguém se importará comigo e logo cairei em desuso; quando penso que minha morte só afetaria meu meio social, mas o mundo seria o mesmo, eu me acabo. Fere tão profundamente meu ego e orgulho, que me sinto no dever de fugir na realidade. E sim, eu penso na morte. Acho que todo mundo quer morrer pelo menos uma vez na semana. Mas sempre que estamos pensando em morrer, lemos algo na internet que é engraçado; achamos 2 reais na rua; aparece uma transa ou alguém com um sorriso lindo; aparece um alguém com uma inteligência tão imensurável, que continuamos. Nós limpamos as lágrimas e nos agarramos à pequenas coisas que em soma se tornam nossa razão por existir. Conhecemos pessoas com tanta semelhança, mas, ainda assim, tão diferentes, que é impossível não ver o final. Você tem medo da morte? Ou da vida?
Ela sorriu. Sentou-se ao lado dele, deu um beijo em seu rosto e novamente não disse nada.
- Quando eu era criança eu odiava socializar. Era totalmente deprimente exigirem de mim que eu tivesse amigos, que sonhasse em ter um CD da Xuxa e brincasse de pique-esconde. Eu gostava de brincar sozinho. Mas estava errado. Crianças devem brincar com outras crianças. E acho que eu só era tão arrogante porque não desfrutava da inocência e da fácil adaptação que se têm quando criança. Aliás, essas duas coisas são o que nos difere de alguém feliz, sabia? Uma pessoa feliz têm uma inocência ultrajante, charmosa e bem dosada. Nós somos facilmente corrompidos. Uma pessoa feliz sabe se adaptar ao seu meio, de forma que pode se levantar sempre que cair. Nós somos estáveis, e isso gera uma das piores fragilidades que o ser humano pode carregar. Somos tão cheio de nós que precisamos mesmo é nos entupir de cigarros e bebidas e tudo quanto é necessário para trazer uma leve brecha no nosso eu, em busca de inocência e adaptação.
Não era a primeira vez que ela ouvira aquele tipo de coisa partindo dele. Ela gostava de ouvir, mas não prestava muita atenção.
- Somos monstros. Passamos a infância querendo ser revolucionários. Aí crescemos e mandamos um currículo para a fábrica mais perto de casa. Quando jovens queremos fama, e, aos poucos, o que nos basta é um final de semana com bastante cerveja e uns amigos. Essa geração fabril me deprime. Somos monstros que se alimentam uns dos outros. Estamos tão perdidos que chega a ser impossível viver em sociedade. Ah... a sociedade!
- Você é bem pessimista – disse ela.
Ele sorriu. Jogou o que restara de seu cigarro no cinzeiro que ficava na escrivaninha ao lado. Acendeu outro e disse:
- Não sou pessimista. Eu sou frustrado. Eu estou velho e tudo que sei é que não fiz metade das coisas que eu queria. Minha vida é igual à de milhões de outros, e meu descontentamento é bem genérico. Tudo é genérico hoje em dia. Só mudamos as cores, tamanhos e formas. O conteúdo ainda é o mesmo, e nos vedamos quanto à isso. Não se fazem mais filósofos, não se fazem mais cientistas, não se fazem mais escritores nem poetas; não se fazem mais pessoas. Somos a cópia, da cópia, da cópia, de tudo aquilo que um dia foi copiado. Não te incomoda o fato de não se criar nada sem se basear no que já existe? E mesmo quando surge algo ou alguém autênticos, nós damos um jeito de industrializar. Nós pegamos, dosamos e vendemos de forma que gere lucro. Nós generosamente distribuímos para que se torne algo tão comum que deixa de ser; de forma que perca a essência. Ray Brudbary diz em Fahrenheit 451 que “a dignidade da verdade se perde no excesso de protestos”. E isso é brilhante! Mostra quem somos! Somos um eterno e itinerante protesto.
Ela sorriu.
- E contra o que protestamos exatamente?
Ele a olhou. Mordendo o canto esquerdo do lábio, sussurrou:
- Nem nós sabemos.De Poetizisses
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M-48 Contos
Short StoryNova fase do Projeto Montag!! O nosso Projeto conta com um livro de poesias, que contém 83 poesias dos fundadores do projeto, e um livro de Bastidores, que contém entrevistas com os mesmos, contando suas inspirações, e histórias de vida. Agora damos...