O Apelo de Glenda

53 4 1
                                    

Uma das coisas mais difíceis para mim sempre foi estar num beco sem saída. Às vezes me tornava tão idiota que me fechava dentro dos meus próprios parênteses e me perdia dentro do labirinto que eu mesmo construía.
Era assim que eu me sentia naquela noite. Um humano de 25 anos, imerso no mundo por vontade própria, porém perdido, desolado, e principalmente, fracassado.
Estava apressado e queria chegar o mais rápido em casa, me trancar e chorar. Todas as minhas forças para sorrir ficaram com ela. O certo seria ficar e me certificar de que tudo ocorreria bem, mas não consegui vê-la mais além do que vi.
Foi demais pra mim.
O pouco que fiz foi o suficiente para me sacrificar a alma e todas as alegrias tanto as minhas como as dela. Se é que ela ainda guardava alguma...
A chuva que caía fortemente minutos atrás, naquele momento era uma leve brisa fresca com algumas gotas pesadas que caíam sobre mim.
Na verdade, a chuva foi apenas um pretexto que usei quando ela perguntou-me se eu estava chorando. Ela não queria que eu sofresse. Nem eu, jamais, quis vê-la sofrendo ou mesmo chorando.
A rua, na qual eu andava, estava alagada devido ao acúmulo de lixo que os próprios moradores jogavam nela, e eu me preocupava com a possibilidade de que qualquer carro que passasse pudesse me molhar. Mas não havia carros. Não havia pessoas na rua. Ninguém, Nada e Eu estávamos passeando sozinhos. Somente nós... Diferente de como tinha sido horas mais cedo, quando passei pela aquela mesma rua, de carro, acompanhado da universitária mais perfeita de todo o mundo.
Os postes estavam iluminando a quietude da rua e eu podia ver o reflexo de suas luzes sobre o asfalto molhado.
Estava caminhando rapidamente, mas queria correr. Porém se me apressasse mais apenas encharcaria ainda mais meus sapatos. Se divagasse não mudaria nada do que foi feito.
Eu apenas queria chegar em casa, e mais nada! Tentaria esconder-me dEle por quanto tempo desse, e tentaria esquecer-me das minhas responsabilidades.
Enquanto andava, olhei para trás.
Ainda estava em tempo de voltar... E reverter o meu feito, mas não, não era mais possível. Não havia mais tempo. Estava feito.
Aquela rua, que mais cedo era movimentada, estava deserta. As casas ao longo dela estavam de portas fechadas. E mesmo depois de um longo tempo caminhando, não havia indícios de companhia humana. Era apenas eu e meus sentimentos. Benditos e ao mesmo tempo malditos sentimentos.
De repente, em minha caminhada, me enchi de um sentimento feroz que encolheu meu coração.
Os postes foram se apagando, um por um... Lentamente.
— Merda!
Podia ser que fosse um apagão, ou mesmo uma falta súbita de luz, mas não era. A lentidão, a calmaria, a solidão, e o meu medo eram os sinais! Péssimos sinais, por via das dúvidas.
Se eu não corresse a escuridão me pegaria. Ela não podia me pegar. Não queria pertencer a ela. Jamais!
E se fosse Ele? Eu não queria me explicar... O que fiz não tinha explicação, pelo menos uma lógica e aceitável, não.
Corri, amedrontado.
— Droga! Droga!
Talvez desse para escapar se eu fosse mais rápido. Porém a escuridão chegou rapidamente e foi me cercando. Quando vi, estava envolto nela.
Não deu de fugir. Jamais daria. Eu merecia ser levado pelas trevas, pois eu errei. Falhei com ela e com meus próprios princípios.
Ao meu redor tudo era negro. Tudo estava resolvido. Mas eu sabia que ainda estava lá. Vivo. Eu ainda tinha um corpo. Abaixo de mim ainda estava o mesmo asfalto terreno e a chuva leve ainda despencava sobre mim. Eu ainda estava vivo e num corpo. Meu corpo.
Ainda estava na cidade. Sabia do caminho de casa e tentei correr para lá. Mas correr no escuro, estando desesperado era uma tarefa difícil. Mas eu simplesmente não podia aceitar que a escuridão iria levar-me.
Eu apenas não quis contrariar a vontade dela. Ele tinha que entender... Não podia me punir... Não com a escuridão.
Depois de uns dois minutos correndo, numa completa escuridão, e em uma única direção onde devia ser a avenida principal, eu me desesperei.
Bati de frente com um corpo duro.
Não era poste, casa, parede ou carro. Era um corpo com fisionomias humana! Seria Ele?! Se era, eu não O sentia... Na verdade, eu não merecia senti-Lo mesmo.
O mundo estava totalmente vazio e escuro... Sem chuvas ou ventos... Apenas o nada! Se era algo vindo dEle, então porque estava tudo em trevas?
— Não... Não! — gritei, desesperado, correndo na direção contrária, ao pensar que as trevas me consumiriam.
Jamais seria Ele! Ele era luz e não trevas!
Corri por dez segundos, bati no mesmo corpo e caí no chão...
— Tu queres fugir? Sabe que não conseguirias Marcos!  — Era a voz doce e trovejosa de um ser celestial.
— Perdoa-me pai! — disse arrastando-me, com os cotovelos, no que quer que seja que estava abaixo de mim.
Queria vê-lo, olhar em seus olhos. Contá-lo a verdade. Mas aquilo era inviável devido a ausência de luz em mim.
Ele tinha mandado o Apollo. Meu superior.
— Levanta-te! — ordenou Apollo. — Não tenhas medo de mim!
Levantei-me, amedrontado.
— Senta-te. Tem uma cadeira atrás de ti Marcos.
Tateei o vazio atrás de mim, onde havia mesmo uma cadeira. Uma cadeira sem o apoio para as costas, mas com apoio lateral paras os braços.
Aquilo não era bom, mas sem contraria-lo, sentei-me.
— Queria ver-te irmão! — disse eu.
— Teu coração está impuro, Marcos. Temo que jamais consiga ver-me novamente.
— Mas eu necessito te ver...
— Apenas faça o que tens que fazer, e me verás!
— Eu não posso! Foi ela quem escolheu aquilo.
— Isso não me importa! — disse ele. — Foi-te dado uma missão! Cumpra ela!
Senti as minhas pernas e braços serem presas por uma armadura metálica quente.
— Não me punas, por favor! Não era mais como antes... Ela não queria mais viver. Estava completamente deprimida... Foi melhor pra ela...
— Somente Ele sabe o que é melhor pra ela! — disse Apollo, bravo. — Que as tuas asas cresçam e que te tornes o que realmente eres!
Ao ouvir suas palavras minhas asas rasgaram minha camisa. E minha auréola começou a brilhar acima da minha cabeça.
— Que o teu último resquício de pureza se desvaia de ti!
— Não podes fazer isso! — resmunguei quando tudo tornou a ser escuridão novamente.
— Marcos, tu aprenderás que somente Ele sabe o que é melhor para ela! Tu só tinhas que cumprir tua missão!
— ENTÃO PORQUE ELE MATOU TODA A FAMILIA DELA? PORQUE? ELE DESTRUIU A MINHA NAMORADA!
— Acalme-se! Não grites comigo! — disse ele, fazendo um barulho que indicava que estava tesourando o ar com uma tesoura, no mínimo, enorme. — Entenderás, quando O vires! — concluiu calmo.
As minhas lágrimas pareciam descontroladas. Descendo feito um rio pelas minhas bochechas.
— Não! Não cortes minhas asas... Glenda não tinha mais ninguém por quem viver... Ninguém... Ninguém! Eu tive que fazer o que fiz! Não me punas assim, por favor!
— São apenas ordens! — disse ele, não me dando tempo de gritar. —Devias aprender a segui-las também e não o contrário.
Em menos de cinco segundos, Apollo cortou minhas asas. Impiedoso. Inabalável.
Quando elas tocaram a superfície dura abaixo de mim, senti-me um nada. Um ordinário e mero humano.
— O que devia importar eram as suas promessas... E principalmente sua missão!
— ELA NÃO QUERIA MAIS VIVER, DROGA!
— Se ela não queria mais viver o problema é dela... Não nosso... Você sabe o que deve ser feito agora... Vá e faça!
Suspirei, chorando.
— Se eu a ressuscitar ela mesma vai se matar! Você tem que entender Apollo.
— Glenda jamais teria coragem de fazer isso...
— Mas ela vai... Ela me deixou claro que vai!
— Ela só estava desesperada quando disse isso, Marcos.
— Ela já estava morta por dentro quando disse aquilo!
— Marcos... Eu não vim a terra pra discutir contigo! Tu és o anjo da guarda dela... Se ela morre antes do tempo estimado, tu darás tua vida para ela...
— Fui eu quem matou ela! Eu não posso res...
— Qual era a sua missão?
Fiquei calado.
— ANDA! RESPONDA-ME! QUAL ERA A TUA MISSÂO?
— Conduzi-la pelo bom caminho, ajuda-la com meus conselhos, consola-la em suas aflições... E sustentar sua coragem nas... provas da vida! — respondi de cabeça baixa, e num tom baixo.
— E O QUE FIZESTE?
— Eu a... matei! Apollo... Eu a matei!
— Tu nos decepciona Marcos!
— Ela não queria viver! Glenda não podia mais continuar chorando e forçando sorrisos!
— NÃO ME IMPORTA! FAÇA O QUE TEM QUE SER FEITO!
— EU NÃO POSSO!
— Pode sim... E é isso que farás! Caso queiras tuas asas e tua auréola de volta. Caso ainda queiras habitar em nosso reino!
— Eu quero, Apollo! Quero vê-Lo, mas ela não vai aproveitar a vida que eu der pra ela...
— Apenas faça a transição... Dê a sua vida terrena para ela... É assim que vais te redimires, não somente com Ele, mas com todo o reino! Se ela morrer novamente, já não estará mais ligada em ti, pois estarás no reino com Ele!
Ouvi sua risada irônica.
— Não deverias amar uma mulher mais do que nosso juramento!
As presilhas que prendiam meus membros se desprenderam fazendo um barulho baixinho.
— Levanta-te!
Levantei-me, massageando os pulsos.
— Ele está muito bravo comigo, Apollo? — perguntei.
— Serás punido severamente por teu deslize! Lúcia, te punirás! Mas Ele te amas... Só faças a tua última obrigação e após a transição, retornes para este lugar, o mais rápido que puderes!
— Tudo bem, irmão!
— Se farás, que faças corretamente, Marcos!
— Já entendi... Farei o que a mim compete!
— Feche os olhos!  — ordenou ele.
Fechei. Ouvi os passos de Apollo se afastarem lentamente de mim... Depois eles vieram apressados. Senti apenas um chute no estômago que me fez curvar.
— Ai!
— Sai do meio da rua, rapaz! — gritou um velho que dirigia um carro popular preto.
Ainda era impossível de ver alguma coisa. Apollo tinha sumido. Ou melhor tinha ido embora, visto que ele nunca aparecera visivelmente para mim.
— Sai da rua...
— Hã? — gemi, ainda atordoado pela dor no estomago.
Abri os olhos. Imediatamente levantei os braços para cobrir a minha visão, pois os faróis do carro estavam altos. Meus olhos estavam desacostumados com a luz.
Ele buzinou. Buzinou novamente.
— Sai da rua, miserável...
— Calma, Francisco! — uma mulher disse, dando tapinhas em meu ombro, enquanto eu vomitava. — Ele não tá bem!
— Eu tô bem sim, dona! — menti, saindo do meio da avenida. — Obrigado...
— Você tem certeza que está bem, rapaz?
— Sim! Foi apenas um mal estar! — menti limpando a boca com a costa da minha mão direita.
A mulher saiu da rua e se agasalhou dentro do carro.
— Até! — disse ela, sorridente.
— Obrigado pela preocupação!
Os dois seguiram na direção que eu antes estava vindo. A direção que eu evitava.
Glenda estava para lá, morta.
— Droga! — resmunguei, iniciando uma corrida ao encontro da minha protegida.
Sentia as gotas tímidas molharem minhas costas que estavam quase totalmente nuas. Sentia-me completamente humano, pela primeira vez.
Não que eu me sentisse um anjo depois do que fiz, mas a garantia era que eu voltasse a ser, depois de ir contra a vontade de Glenda.
Ela queria, mais do que ninguém, morrer. Ver o Sagrado Ser. Questiona-Lo cara-a-cara o porquê de tanto sofrimento em sua vida. O porquê de tanta tragédia e coisa ruim implantada em seu viver.
Até mesmo eu, que sempre busquei compreender a fundo as vontades superiores, me achei em dúvida com a situação penosa em que viveu minha namorada e protegida.
Para ela, o mais aceitável era apenas a morte. Nada mais. E o mais irônico era que a morte jamais a levaria, se não fosse por mim, seu próprio protetor.
A morte temia uma investida contra a minha protegida. Lúcia sabia que eu seria implacável, caso ela pusesse suas mãos esqueléticas em Glenda.
Mas foi aquilo que eu a deixei fazer. Foi o que eu a obriguei que fizesse.
Depois de quase cinquenta minutos de correria, não havia mais pingos despencando do céu escuro. No entanto o asfalto estava molhado, e liso... Eu estava à beira da serra onde eu mesmo tratei de capotar o carro em que estávamos.
Lá em baixo, à beira-mar, com os pneus para cima, estava o automóvel que o pai dela, a deixou de herança.
Ninguém andava por aquela região odiosa. Ninguém havia visto o "acidente". Ninguém tinha que ver. Ela só tinha que ficar lá, sangrar e morrer. Era o que ela quis. Foi seu apelo.
Suspirei. Sentia-me impulsionado, por alguém, a pular até lá. Mas seria impossível sobreviver de uma queda daquelas. Não que um anjo não fosse imortal. Éramos imortais até o momento em que nossas auréolas eram tiradas de nossas cabeças.
Sem a minha auréola, eu apenas tinha uma vida. A vida de Glenda.
Corri pela beirada da ribanceira, ao lado da proteção metálica que o carro havia partido.
Desci a inclinação e cheguei à praia. O areal estava encharcado pela chuva e a maré estava subindo mais a cada mísero segundo que se passava.
Aos trancos, tropeçando e deslizando nas pedras enormes e lisas da beira da praia, consegui chegar até o carro.
Somente o som das águas preenchiam meus tímpanos. Não mais os choros dela. Não eram mais suas lamurias. Apenas o mar... E o meu choro.
O rapaz forte e durão que sempre quis ser, chorando como nunca imaginei.
De cabeça para baixo, presa pelo cinto de segurança, ela dormia... Em paz... Sem preocupação ou tristeza alguma. Morta. Sem vida...
— Eu sei o quanto você queria estar morta, mas... Tenho que te deixar viver, Glenda. Desculpa...
Se ela falasse comigo naquele momento, seria um milagre. No entanto se ela ainda estivesse viva seria um milagre, triplamente qualificado.
Além de uma queda de vinte metros que a causou traumatismo craniano imediato, uma injeção letal aplicada em seu pescoço, ainda havia uma perfuração que eu mesmo, a pedido dela, fiz em seu peito.
Não era possível ver, com clareza, todas as suas feições. Porém, notei que seu rosto estava muito mais pálido, devido a perca constante de sangue. Seus olhos claros estavam fechados. Havia muito sangue coagulado no teto do carro e ao longo de seu rosto e cabelos ruivos, que estavam dependurados devido à gravidade.
A porta pela qual eu havia saído ainda estava aberta. Entrei por ela, me agachando.
— Desculpa... Desculpa... — lamentei, aos prantos, tirando-a do carro em meus braços, que se ensanguentaram rapidamente. Meus olhos aguaram-se ainda mais.
Glenda me odiaria por aquilo, e eu não queria que ela me odiasse por nada.
Com seu cadáver frio e inativo nos meus braços fiz o caminho de volta até a areia da praia.
Caminhava lentamente, procurando um lugar que fosse adequando para devolver cor àquele rosto e dar vida àquele olhar entristecido que ela exibia nos últimos meses.
Embora aquilo fosse o que eu deveria fazer, sentia-me mal. Ela me implorou tanto pela morte. Implorou tanto que eu acabei por ceder. A pessoa que era encarregada de afastar todos os seus sentimentos negativos, foi a que os deixou crescerem. Eu punha razão na escolha dela. A vida lhe fora muito dura.
Ela choraria ainda mais quando acordasse de seu quase sono eterno. Quando percebesse que toda aquela cerimônia melancólica feita antes de sua partida tinha sido em vão. Ela me odiaria. Xingaria-me com todos os palavrões já excluídos de seu vocabulário.
Deitei-a na praia. Deserta. Vazia. Apenas ventilada com frieza e molhada com as últimas gotas de sangue de Glenda e com as minhas lágrimas.
— Eu não queria fazer isso, Glenda! Você me implorou tanto amor. — Ajoelhei-me diante de seu corpo imóvel.
Fechei os olhos. Respirei fundo.
— Lúcia, peço-te o teu auxílio mais uma vez!
O vento gelado se foi. As ondas cessaram em um par de segundos. A morte não tinha mesmo tempo a perder.
Lúcia apareceu. Seu corpo fedorento e esquelético, coberto por uma capa negra. Não havia um rosto que se pudesse associar a ela. Lúcia era apenas feia e maldita.
— O que desejas, Marcos? — Sua voz era rancorosa. Demoníaca. Mas contente.
— Quero que cures as feridas dessa humana! Quero que seu sangue seja reposto em suas veias e que ela volte a respirar de novo!
— Não tens mais a tua auréola! — notou ela, contente. — Sabes que passarás por um processo longo, que ficarei com teu corpo mortal e que jamais te será permitido vir a Terra novamente?
— Sei... E aceito! Faça agora!
Lúcia gargalhou e sumiu.
Encarei as pálpebras de Glenda. Estavam inertes. As ondas voltaram a bater contra as pedras e o vento voltou a correr pela praia.
Sentei ao lado dela, ouvindo o mar me amaldiçoar pelo o que fiz. Ele viu-me. Suas ondas tinham lavado o sangue nas minhas mãos. E em seu fundo ou boiando na superfície, estava a seringa letal.
De repente, o mar parou de me criticar. O vento parou de voar.
Levantei-me.
— Glenda está com Ele nesse momento! Não foi me permitido trazê-la — disse Lúcia.
— Ela está com Ele?!
— Sim. Aguarde, e logo, logo terás o fim que sempre quis dar a um "anjo"!
— Eu não tenho medo de você! Lúcia! — murmurei entredentes.
— Devias ter! Eu vou escolher tua morte e ela será a mais dolorosa e lenta que um humano pode imaginar em não ter...
— Não me importo em morrer, quando sei para onde vou!
— Será que sabes mesmo?
— Ele perdoa a todos os seus filhos... Ele é amor!
— Pense sempre o que quiser! Temos o livre arbítrio, não é mesmo? — Lúcia gargalhou. — Apenas saiba que sofrerás por horas até que eu te roube a vida para dar a ela!
— Chega de ameaças! Eu jamais temerei a minha morte!
— Sem a auréola, tu és apenas um humano miserável! Nu! Ordinário! Comum...
— Pelo menos eu tive uma e você?
— Para que iria querer uma sobre a minha cabeça quando não posso honra-la?
— Eu apenas fiz o que me era cabível! E eu sei porque estás brava! Não querias que eu te obrigasse a levá-la. Nem ao menos queria aproximar-te de mim! Tens medo de mim!
— Do anjo, com auréola, asas e luz? Daquele eu tinha... Muito! Mas de ti? Sinto pena somente! Não és nada além de um humano fadado a morrer... Por uma bobagem!
— Se Glenda fosse bobagem, não terias vindo tão depressa!
— Quando desconfiei do que se tratava, cancelei todos os meus afazeres. — Ela gargalhou. — Não é sempre que um "anjo de guarda" tem sua vida tirada por uma reles serva mortal! Não é mesmo?
A maldita sumiu. Sem mais nem menos. Apenas sumiu.
Só então, parei de estufar o peito com oxigênio. Queria parecer mais forte, e também inabalável, coisa que eu não era naquele momento.
Mesmo não querendo admitir, o medo estava me corroendo por dentro, despedaçando cada fibra e célula do meu corpo, intimamente.
Eu sempre soube quem era morte, porém não tinha ideia de como era ela em si. Nós, anjos, éramos criados e jamais morríamos. Com Glenda, pude presenciar a crueldade da morte, com meus próprios olhos. Lúcia foi devastadora, arrancando cada pessoa que Glenda amava. Todos se foram. E eu sentia-me culpado por não poder fazer nada. Se eu soubesse que aqueles eventos iriam tirar todas as crenças em dias melhores de Glenda, teria empunhado minha espada e lutado contra Lúcia, impedindo-a de se aproximar dos entes de Glenda.
No entanto, eles não tinham anjos da guarda satisfatórios. Portanto estavam sujeitos à morte, e o meu trabalho resumia-se apenas ao bem estar e cuidado de Glenda. Meu trabalho era apenas guia-la através das provações... Coisa que não fui capaz de realizar. E então pagaria com minha vida terrena. Merecidamente...
— Ela está pronta para a transição! Resta saber se estás também —disse ela, aparecendo do nada.
Respirei fundo.
— Claro que estou! — menti. — Quero que inicie de imediato! Estou ansioso para vê-la.
— Tudo bem! — Ela gargalhou, vitoriosa.
Numa única piscada, o mundo que antes estava levemente enegrecido, tornou-se uma completa escuridão.
Não era mais possível ouvir o mar, sentir o vento ou qualquer coisa mundana. Estávamos num mundo onde não havia nada, senão uma... duas... três... quatro velas. Velas do tamanho de um extintor de incêndio.
Ascendendo-se lentamente, as dezenas de velas começaram a iluminar a trilha da transição.
Meus pulsos estavam envoltos com uma circunferência metalizada. A corrente longa, estava nas mãos de Lúcia, que iniciou uma marcha lerda, alguns passos à minha frente.
Tinha que acompanhá-la e provar das atrocidades que faria com meu corpo.
O caminho que seguíamos lembrava-me um "Y" iluminado, onde havia duas portas nas pontas. E por uma fração de segundos, minha existência foi iluminada com luz. Luz Celestial, que saiu de uma das portas.
Levantei o olhar, e imediatamente sorri. Glenda tinha acabado de sair da porta Celestial. Feliz. Ela estava contente! Brilhando.
Parei e comecei a gargalhar. Contente também.
— Você falou com Ele amor? — perguntei animado, e meio abobalhado com a beleza de Glenda. Ela parecia diferente.
Lúcia me puxou.
— Ei! O que Ele disse, Glenda? — perguntei novamente ainda sorrindo.
Lúcia me puxou com mais força.
— Ela não te ouve mais, seu inútil! O erro dela foi te ter como anjo da guarda! Tu agora estás fadado a sofrer... Enquanto ela vai recomeçar...
— Cala-te Lúcia! — murmurei, sentido um repentino aperto no peito. — GLENDA?! FALA COMIGO GLENDA! — gritei desesperado.
— Não gastes teus gritos com a moça! Aquela é outra Glenda! E também, não lhe é permitido gritar na área de transição... Ela esperará pacientemente a drenagem da tua vida, deitada em seu corpo à...
— Cala a boca Lúcia! Cala a boca... — A interrompi, chorando enquanto a alma de Glenda prosseguiu em sua caminhada.
— Ela estará bem em algumas horas... Não digo o mesmo de ti!
Eu não me importava com nada. Com a morte ou qualquer outra coisa passageira. Importava-me com meus sentimentos verdadeiros e eternos por Glenda. Somente aquilo.
Lúcia me puxou. Eu já não tinha forças para resistir.
Olhei para trás, entristecido.
Minha amada apenas caminhou sorridente para a ponta inicial do "Y" e sumiu como se um olho em formato vertical tivesse piscado e engolindo-a.

FIM.

De Evil_S_Fallen

M-48 ContosOnde histórias criam vida. Descubra agora