Minha cabeça lateja, e posso ouvir um zumbido constante em meus ouvidos. A casa parece terrivelmente parada em sua imobilidade silenciosa, mas sei que meus pais estão aqui. Isso não ajuda a diminuir o pavor que me assola, como se o silêncio me afligisse. Minha visão está borrada, então mal consigo distinguir os contornos de minha prosaica escrivaninha; isso não é um problema, entretanto, pois a imaginação se encarrega de preencher as manchas negras diante de meus olhos, acrescentando detalhes indistinguíveis da realidade.
Sei que uma chuva fina caiu lá fora por todo o dia, e agora o pôr do sol deve estar sendo ocultado pelas pesadas nuvens cor de chumbo — com a cortina fechada, a irritante luz branca que zumbe baixo me assusta mais do que a escuridão. O velho relógio bate as horas: seis badaladas, e espero por minha mãe.
Quando ela me chama, corro às cegas pelo corredor fortemente iluminado até sentir o piso ainda mais frio da cozinha sob meus pés descalços.
Jantamos em silêncio, e meu pai deixa alguns comprimidos destinados a mim em um pires, ao lado de um copo d'água, antes de sair. Não os engulo. Apago todas as luzes da casa, andando na ponta dos pés a fim de ouvir o silêncio.
Um ruído me desperta. Num torpor, abro a porta de um armário num só movimento, revelando um espelho manchado e o vazio. Observo com curiosidade meu cabelo curto demais e desalinhado nos lugares errados, virando o pescoço para ver seus músculos saltados. Como posso ver? Viro-me rapidamente, procurando a fonte de luz: uma incoerente janela basculante, localizada no corredor adjacente, estreito e todo pintado de branco. A parede caiada é desagradável ao toque, e fecho a janela barulhenta em um ímpeto, sentando no chão e abraçando meus joelhos ossudos.
O zumbido não vai embora.
Ele permanece comigo junto ao arrastar das horas, sendo minha única desorientação em meio à escuridão.
Um ruído. Ratos? A porta de um banheiro hesita em suas dobradiças e ainda assim o roedor não se revela com o som de suas patinhas contra o assoalho.
Não! Pare, zumbido. É um silvo que te interrompe.
A massa negra desliza para o piso nu, farfalhante e negra como cinzas de cigarro, serpenteando até meus pés. Ela envolve minhas panturrilhas com um calor morno, pousando sobre meu peito como se estivesse prestes a sufocar-me. Adula assim meu pescoço e meus lábios, sem tocar em meus olhos – que agora nada vêem – e apertando meus braços e em seguida minha cintura.
Todas as luzes se acendem.
Oh, terrível criatura! Fecho os olhos com força, procurando me desvencilhar.
Não há ninguém para me ajudar, e estou dolorosamente consciente disso quando abro a porta da frente e me lanço sob a chuva. O turbilhão escuro me persegue, escorrendo por meus ombros como um manto.
Curvo meus ombros magros, deitando sobre o solo insípido. Ele me sufoca, e não consigo
não consigo
não consigo
respirar para viver.
Respirar
para morrer, talvez?A criatura tem os olhos de meu pai. E é quente como o abraço de minha mãe. Olho para a casa mais uma vez. Pela última vez.
Inspiro o ar úmido e meto minha mão na terra fresca.

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Ana Inconsequente
LosoweUm conto, uma crônica curtinha ou um poema feito com palavras inconsequentes, muito amor e atualizações constantes. As fotos do início dos capítulos são de minha autoria ❤️ (Não deixe de conferir Ana Aleatória, que concorre ao #TheWattys2016) Feed...