Ouço o bater suave da chuva no vidro baço,
Ouço os gritos mudos do vento,
Que como fantasmas atormentam quem quer dormir.
Eu não durmo, deixo-me ficar sentado na velha cadeira de pau
Olhando para a secretária coberta de papeis.
Falhei, sim, falhei na vida.
Falhei em tudo o que fiz, em tudo o que me empenhei.
Não deixei obra, não deixei fortuna, não deixei nada
Que ficasse de pé após a minha passagem.
Ouço a chuva que bate agora mais forte
E que me faz companhia nesta noite escura.
Não há alma na rua,
Sinto que nunca ouve,
Pois desde pequeno que aqui habito sozinho.
Caí de amores pela vizinha, pela rapariga da taberna,
Mas a minha incapacidade, ou talvez a cobardia,
Fizeram-me ficar sentado no berço onde nasci
E onde hei-de morrer, velho e sozinho.
Escrevi cartas ao vento,
Mandei cartas para moradas inventadas,
Até hoje nem uma voltou.
Talvez, possivelmente, fui feito para morrer sozinho
Como castigo de uma vida passada
Cheia de prazer e traição.
Quando chove, ouço mais baixo o monólogo
Interno que me tortura, que me consome
Até ao tutano. As conversas que tenho
Comigo, com as personagens que invento,
São o que me resta de criatura social.
À parte disso sou um rato que habita
Num escuro lugar a que chamam casa.
O céu é rasgado por um rio de luz,
Que apressadamente corre para a morte.
Quão doce soa essa palavra,
Quão pacifico deve ser morrer,
Partir do esgoto para um negro,
Ou talvez branco, vazio existencial.
Estou cansado,
Estou cansado da rotina, de me levantar todas as manhãs.
Estou cansado de comer, de me lavar todos os dias.
Estou cansado de viver, de respirar.
Mas, acima de tudo, estou cansado dos monólogos internos,
Das conversas que tenho comigo próprio
E que nunca me levarão a lado nenhum.
Estou cansado de existir.
Gostava de ser como a chuva,
Transparente e suave,
Importante e essencial.
Mas não o sou,
Sou rato sujo e cansado.
A chuva faz-me companhia cantando à janela.
Vejo as gotas correr numa corrida
Janela abaixo em direcção ao chão.
Amigos? Não conheço tal palavra.
Sinto que todos me usam,
Que o mundo inteiro conspira contra mim.
Que me odeiam, que deitam veneno
Como se me quisessem eliminar das suas vidas
Fúteis e sem cor.
Além disso, nunca consegui formar
O tal laço de união de que falam os livros,
Nunca consegui ser lembrado,
Talvez porque sou um rato,
Todos se esquecem de mim.
Fechei-me em casa, sentei-me na cadeira
E deitei o rosto sobre os papeis soltos.
Estou melhor com os livros, com as histórias
Fictícias que criei. As personagens são mais carinhosas,
Mais emotivas, mais coloridas.
As mulheres são mais sensuais, mais vermelhas, mais vivas.
Aqui, na rua onde nasci,
É tudo tão monótono que cansa olhar pela janela.
Estou cansado, estou cansado...
A cada dia que passa sinto a sanidade partir,
Sinto as certezas que tenho desfazerem-se em pó
E a solidão a instalar-se.
Nestes dias de chuva, consigo manter-me minimamente são,
Mas sempre que o Sol chega, afundo-me no mar salgado
Cheio de dor.
Estou cansado dos naufrágios constantes,
De ser naufrago de coração partido.
Mas sou cobarde,
E por isso deixo-me ficar sentado,
De luz apagada,
Esperando pela morte.
-JM