Ouço os passos suaves
E o vento que uiva
E a chuva que pesa sobre o telhado.
Abro a porta e sei
Que chegou a minha hora.
Nada deixo na memória de quem fica
Nada deixo como obra a quem resiste
Nada deixo a este mundo
Senão a dor que semeei nos corações vizinhos.
Não fui humano,
Não fui homem,
Não fui eu.
E antes de fechar a porta atrás de mim,
Olho uma última vez para as minhas memórias
E recordo com pesar que não tive amigos
Não tive amores nem fui amado
Da mesma forma como sempre amei.
Não fui forte, não fui alegre
Ao contrário fui planta que se dobrava com o vento
Que se queimava com o frio
E se deixava morrer com a solidão do Verão.
E recordo com pesar
Que quem tive partiu
Porque se fartou de mim
E das coisas que me disseram
E que me fizeram perder o gosto pela vida.
E que me disseram para não me aproximar
Nem para ficar, pois sou alma vazia.
E por isso fiquei por casa
Dormindo e escrevendo
Chorando e lendo
Esperando que me viessem buscar
Que sentissem minha falta
Que me batessem à porta.
Mas só a Morte se lembrou de mim
E por isso estou-lhe grato
Por me ser sempre fiel.
E não sentirei mais negro
Nem mais só
Nem mais pesado
Nem mais vazio
Nem mais esquecido
Nem mais chato
Nem mais cansado
Nem mais isto ou aquilo
Porque do outro lado desta porta
Há o quente negro que me preenche
E me deixa dormir em completa paz.
Nunca fui nada a não ser a lama
Que suja os sapatos dos outros.
Nunca fui nada que não
Os mosquitos que todos odeiam.
Sempre vivi só
Sempre estive só
E sei que morrerei só.
Porque Deus assim quis
E Deus assim sabe porquê.
Ouço os passos suaves de quem nunca veio
De quem partiu, de quem me magoou
Ouço as vozes que conspiram
Os sussurros dos demónios, dos pensamentos
Próprios que me odeiam.
Sinto no coração a dor, o pecado de ter cometido
A compaixão, a solidariedade, a amizade
E ter recebido ódio como agradecimento.
Sinto-me só.
Sinto-me abandonado.
Sinto-me morto embora respire.
E antes de partir olho pela janela
E vejo o que nunca tive, o que nunca terei
Um grupo de amigos, um grupo de companheiros
E dói-me o peito, e a alma por saber
Que fracassei em tudo o que fiz
Que fracassei na mais básica função humana:
A social.
Parto com angustias
Parto tristemente
Mas sei,
Que vou para um lugar melhor.
-JM