Se um dia sair de casa

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As estrelas são fascinantes porque são um mistério,

Porque não as podemos tocar, porque estão longe

E nunca as vimos.

Mas a cidade vizinha, por mais longe e inalcançável que esteja,

É para mim um pesadelo.

Lisboa, Porto, Coimbra,

Feras gigantes que me esmagam com o seu olhar.


Pessoas chegam e vão, gentes nascem e morrem,

Não se conhecem, nunca se conhecerão,

Nada têm em comum a não ser os sonhos.

"Quero ser médico"

"Quero ser cientista"

"Quero ser biólogo"

Correm atrás deles, ou deixam-se ficar por casa,

Como eu.


Oh, tantos sonhos que deixei secar nos vasos onde nasceram.

Tantas gentes diferentes que podia ser hoje.

Tanto caminho que podia ter seguido.

Mas fiquei em casa, porque a rua é assustadora,

Porque as pessoas são más,

Porque sou fraco.


Se um dia sair de casa, irei eu conseguir respirar?

Se um dia partir, o que irei encontrar?


Olho à minha volta e vejo os esqueletos dos sonhos que tive.

"Ser médico"

"Ser biólogo"

"Ser alguém"

Mas não sou nada... Não tenho nada...

Fechei-me em casa, fechei as portas e janelas,

E pintei as paredes de uma cor mais agradável.

Desenhei o que queria ver, o que queria ser,

Mas lá fora o mundo continua a ser o mesmo

E por mais que me pinte, continuo a ser o mesmo de sempre.


O Inverno vem aí, é inevitável,

E terei que sair de casa para apanhar lenha.

O coração pára só de pensar nisso,

Só de imaginar que terei de enfrentar o frio mundo exterior.

Não poderei continuar em casa pintando paredes,

Não poderei continuar em casa brincando com as personagens que inventei.

Não poderei fugir mais do que sempre fugi.


O Universo continua a sua esmagadora viagem,

A seleção natural continua refinando as espécies,

E em breve terei que os enfrentar.

Leio artigos e livros, vejo imagens e faço simulações,

Mas nunca me sinto preparado para o Inverno.

"É facil" dizem eles,

Não, não é.

A voz falha, as ideias atropelam-se e morrem antes de saírem.

A memória não é guardada, a simulação é inútil e perco vez após vez.

"Estás melhor" dizem eles,

Não, não estou.

Ainda não consigo falar com as feras, nem deixar as quatro paredes pintadas.

A confusão instala-se com o novo, e o chão desaparece com a mudança.


A derradeira questão não é "Ser ou não ser?"

É "ir ou morrer?".


Sinto as engrenagens da máquina do Universo,

Sinto a passagem do comboio do Tempo que me faz tremer a casa.

Observo as mudanças ao meu redor,

Sinto as mudanças em mim,

E sofro com a inevitabilidade do Inverno, do fim.

Tenho tendência para acabar com as coisas antes que elas acabem comigo,

Mas não posso acabar com o Universo,

Nem com o Tempo.

E sei que ninguém pode.


Se um dia sair de casa, serei folha que se queima?

Se um dia sair de casa, serei bafo de ar que não se sente?


Não... Não quero pensar nisto agora...

Pintarei um outro desenho nas paredes,

Falarei mais um pouco com as personagens.

Daqui a três anos quando o Inverno chegar,

Logo decido o que fazer.

Mas bem sei que mais logo

Estarei com este cansativo assunto de novo

Porque a pobre cabeça nunca pára

E só pára quando deve andar.

-JM

UniversoOnde histórias criam vida. Descubra agora