Quando os primeiros raios de sol surgiram no horizonte Samuel finalmente adormeceu. A luz do dia parecia ter o poder de espantar seus fantasmas. Foi um sono sem sonhos e terrivelmente pesado.
O seu domingo foi reduzido a dormir e se martirizar silenciosamente quando estava desperto, segurava firme a palheta na mão e se lamentava pelo estrago que causou na vida alheia, mesmo sem querer. Aos poucos foi se conformando com o ódio que com certeza Toni nutria por ele.
Era segunda-feira de manhã quando finalmente saiu do quarto já pronto para trabalhar. A palheta virou o pingente num cordão de couro preto, uma mera lembrança da amizade mais verdadeira de toda sua vida. Era consciente que quando ganhou aquele objeto Toni era apaixonado por ele, o que na sua opinião só tornava o presente ainda mais valioso.
Naquela manhã estava especialmente silencioso, ainda remoendo os últimos pensamentos amargos. Otávio lhe observava com seus olhos afiados, talvez fosse o único que estivesse atento o suficiente para perceber sua mudança de comportamento, afinal era a pessoa que mais tinha contato com o músico naquela casa. Rosa e Clara tagarelavam cheias de pomposidade sobre o café da manhã, entre críticas e elogios, falavam sobre dietas e carboidratos. As duas tomavam um suco verde com partículas pretas flutuantes de arrepiar os cabelos.
Samuel quase não participou da conversa, estava se sentindo cansado e sufocado por tudo. Se limitou a tomar seu café preto e rever em pensamento seu cronograma de aulas da manhã.
- Meu filho, você vai tomar só esse café?
Samuel olhou rapidamente para tia.
- Eu estou bem, não precisa se preocupar.
- É isso toda manhã Dona Rosa, Teresinha fica maluca com a falta de apetite desse seu sobrinho - foi emendando Clara. Dando ênfase ao fato de que Samuel não comia adequadamente.
- Ah não Samuel, meu filho você tem que comer direito.
- Tia. Sábado, quando eu fui pegar os suportes das guitarras no sótão eu encontrei minha mochila velha, da época que eu morava com a minha mãe. Estava cheia de roupas minhas e outras coisas daquele tempo, não entendi porque eu nunca soube que essa mochila veio para cá na minha mudança? - foi direto ao assunto que remoeu no fim de semana todo, deixando o assunto do café esquecido.
Otávio parou de comer para ouvir com atenção a conversa que se iniciava. Rosa estreitou os olhos como se pensasse no assunto por alguns instantes.
- Quando ficou decidido que você vinha morar aqui eu preparei o seu quarto e comprei tudo novo, os móveis, as roupas, cortinas, tapetes, tudo sem exceção. Creio que a sua mãe arrumou uma bolsa quando você estava no hospital com as suas coisas, mas eu não sei se era sua mochila e não fez a menor diferença porque assim que eu cheguei pedi para a empregada levar tudo para o sótão. Eu não queria nada por perto que te fizesse lembrar daquela gente - contou normalmente, num tom um pouco mais sério.
Samuel fechou a mão com força, sentindo alguma coisa queimá-lo por dentro.
- Mas eram as minhas coisas. Não podia ter feito isso.
- Ah meu filho, eu fiz o que era melhor para você. Samuel, quando você saiu do hospital estava na cadeira de rodas e numa depressão tão profunda que nem ao menos se lembrou dessas coisas, não tinha motivos para mostra-las para você.
- O que a senhora achou que ia acontecer? Eram só roupas! - falou de maneira ríspida assustando todo mundo na mesa.
Suas mãos tremiam de raiva quando as passou no rosto, estava extremamente frustrado. Rosa abandonou suas tentativas de ser pacífica e estreitou os olhos ameaçadoramente para o sobrinho.
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Unilateral
RomanceSamuel é um professor de música, depois de sete anos decide voltar a sua cidade natal para passar férias de fim de ano e tentar reencontrar velhos amigos. Mas estava surpreso ao encontrar Toni, o menino sorridente, pequeno e bondoso cresceu e havia...