Capítulo Sessenta e Um

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A árvore tinha ganhado um banco numa das muitas reformas que a prefeitura fez antecipando a época de eleições. A planta havia crescido, agora era alta e frondosa, com um tronco firme e cheio de nós, sua copa atrapalhava as luzes do poste e poucos feixes de luz chegavam realmente ao chão.

Não frequentava a pracinha do bairro há anos, tudo ainda era familiar, especialmente aquela árvore. Samuel estava sentado no chão ao pé dela quando Toni o viu pela primeira vez, bem antes de entregar a carta de amor de uma colega para ele na enfermaria de forma insolente e agredi-lo com uma camisinha, bem antes de flagrá-lo tomando banho no vestiário da quadra esportiva da escola e ver o corpo surrado pela primeira vez. Foi ali que o viu tocar violão tantas vezes, solitário e triste, sempre com o capuz na cabeça a cantar baixinho, só para si mesmo. Exatamente como via fazer nesse exato momento.

Toni conhecia o namorado, talvez fosse o único que conhecesse Samuel de verdade, sabia perfeitamente que o músico só vinha para esse lugar quando estava ferido. Podia parecer um pouco melodramático se o mais velho estivesse fazendo de propósito, ou para chamar a atenção, mas exatamente o contrário, ele está se isolando, se escondendo, se calando outra vez diante de uma coisa ruim que sentia.

Seus passos do carro até ali foram firmes e estava pronto para arrastar Samuel de volta para casa, nem que para isso precisasse usar a força. O moreno estava completamente tomado pelo desespero que sentiu com o sumiço do mais velho, mesmo que tenha sido por poucas horas. Mas assim que se aproximou os olhos cor de mel o localizaram e imediatamente parou, no meio da calçada, incapaz de evitar olhar naqueles olhos meio amarelos que tanto amava.

Samuel estava diferente, um olhar frio que vinha de algum lugar repleto de mágoa, não parou de cantar baixinho ou tocar o violão que sempre estava no carro. A indiferença, real e palpável que recebia quase lhe matava ali mesmo, mas antes que pudesse tomar qualquer iniciativa a voz melodiosa lhe chegou aos ouvidos, cantava uma música lenta, apenas dedilhando no violão, a combinação da voz com os sons do instrumentos tornavam tudo mais melancólico e aumentava o aperto no peito que Toni sentia.

Foi o músico que rompeu o contato visual, fechou os olhos, se concentrando na música e o moreno despertou do transe que estava e acabou com parte da distância que os separava, se abaixou na frente do namorado e tocou o rosto do músico. Samuel se contraiu um pouco, abriu os olhos, ainda cantando baixinho, seus olhos já vermelhos marejavam outra vez.

— Desculpa amor... não faz essa cara... — Toni se calou antes que falasse alguma besteira, era péssimo com as palavras.

Contemplou com sofreguidão o rosto mais pálido que o normal, louco de vontade de beijar sua boca, de toma-lo nos braços, de leva-lo para casa, como se nada tivesse acontecido. Sua mãe tinha razão, não valeu a pena insistir com aquele comportamento tosco e libertino com César, mesmo que fosse natural dos dois, agora que tinha machucado quem mais amava.

Samuel seguiu cantado, como se estivesse respondendo ao que ouviu, Toni nunca tinha escutado essa música antes, era evidente que era autoral, uma música que seu namorado compôs. Falava de um menino perdido e que encontrava o caminho depois de dar seu primeiro beijo, falava do medo do desconhecido, em se jogar de vez naquele precipício. Era evidente que Samuel se referia aos dois, ao primeiro beijo dos dois, anos atrás.

Toni mal podia acreditar que ele tinha escrito uma música sobre aquele momento que foi tão trágico na sua vida, que marcou sua boca como se pertencesse ao músico para sempre, porque nenhum outro que beijava, fosse homem ou mulher, conseguia despertar um terço do que Samuel o fez sentir naquele único beijo. Nunca imaginou sequer que tinha sido tão marcante para o músico como foi para si mesmo, porque o mais velho nunca sequer tocou nesse assunto, nunca falaram sobre o ocorrido, nunca soube o quanto aquele ósculo foi importante para o amigo também.

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