Prólogo

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Uhu-hu-hu.

    Ouço, de não muito longe, o canto solitário de alguma coruja no cemitério. As pessoas chorosas, vestidas de preto, estão amontoadas em volta do túmulo. Dentre elas vejo muitos rostos conhecidos: amigos, vizinhos, colegas de classe e parentes. Todos eles vieram prestar sua solidariedade para com o morto que em breve será engolido, para sempre, pela terra. Olho em volta procurando a origem do som da ave e a avisto empoleirada em um carvalho. A árvore ainda exibe umas poucas folhas laranjas que são são varridas para o chão pelo vento frio do outono. Ela me encara com seus olhos curiosos amarelos e eu devolvo um semicerrar de olhos desconfiados.

Ela não é muito grande, na verdade é daquelas espécies mais pequenas e comuns nos centros urbanos, exibe uma coloração meio acizentada salpicada de manchinhas pretas. Ela gira a cabeça para o lado e eu giro a minha também, acompanhado o movimento engraçado. A ave solta mais uhu-hu-hu, bate as asas e alça voo, livre.

    O pastor, com uma voz solene, recita versículos inspiradores da Bíblia levando as pessoas ali presentes a derramarem cada vez mais lágrimas pela perda tão precoce de um jovem rapaz no auge da sua juventude.

    —Tudo tem o seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu...

    Antony James Sanders. Esse era seu nome. Tinha apenas 16 anos e era meu melhor amigo. Era alto, muito alto, mais de 1,90m, magro com alguns músculos salientes, não tinha muita beleza física, mas era dono de lindos olhos castanhos e um nariz que ele considerava ser avantajado, mas que para mim era simplesmente perfeito. Ele tinha um ótimo senso de humor, mas tinha um péssimo hábito de contar piadas ruins, as quais, mesmo assim, me faziam gargalhar como uma criancinha em shows de palhaços. Sua comida preferida era espaguete, ' espaguete é vida, espaguete é amor. Quanto mais espaguete, melhor' ele dizia. Não importava o tipo de molho, à bolonhesa ou branco, se vinha acompanhada de grandes e gordurosas almôndegas, ou se era sobras do dia anterior, ele sempre defendia que espaguete deveria ser comido por todos e todo dia, desde o café da manhã até o jantar.

    — ...Há tempo de nascer, e tempo de morrer; tempo de plantar, e tempo de arrancar o que se plantou...

    Ele sempre foi apaixonado por basquete, seu sonho era conhecer Michael Jordan, seu grande ídolo desde que tinha 8 anos de idade. Ele também sonhava em ser jogador profissional, mas por não ser um garoto muito popular na escola e ter pernas compridas desengonçadas, nunca se dedicou muito a essa paixão seriamente, até o segundo ano escolar, quando ele foi descoberto pelo treinador da equipe e mostrou ter um talento nato pro esporte. Depois disso, passou a ser considerado a promessa de jogador do ano do time.

    — ...Tempo de matar, e tempo de curar; tempo de derrubar, e tempo de edificar; Tempo de chorar, e tempo de rir; tempo de prantear, e tempo de dançar...

    A verdade é que desde os meus 12 anos descobri que além da amizade nutria um sentimento de paixão secreta por ele. Claro que nunca fui correspondida, ele nunca me viu de outra forma além da melhor amiga baixinha dele, e eu também nunca demonstrei as evidências da minha paixonite secreta. Também nunca senti ciúmes ou me preocupei com outras garotas vierem e o tomá-lo de mim, pois éramos tão antissociais e impopulares na escola que nenhuma menina olharia para o vareta do Antony James. Dei me, portanto, livre de preocupações desse caráter. Convivi com isso até um certo tempo atrás quando ele deixou de ser meu Antony, meu velho e bom Tony, pra ser tornar um novo garoto, revelando uma personalidade que não poderia de modo algum ser a do meu melhor amigo.

    — ... Ele era um garoto muito bom, cheio de vida e muitas qualidades. Sempre fiel e companheiro, sonhador, lutava pelo que acreditava e provava ser alguém de um caráter raro, repleto de gentileza e bondade...

    Mentiroso. Todos aqui são um bando de mentirosos e hipócritas. Homenageando o jovem falecido, apontando seus grandes feitos e a grandiosidade do seu caráter. Tudo mentira. Esse garoto que morreu não é o mesmo que o pastor ressalta as qualidades em seu discurso pronto. O verdadeiro Antony, meigo e terno, morreu há meses atras. O Antony que andava na velha picape cinza, que sempre dava problemas e quebrava suas peças, cuja tinta desbotava por ser tão antiga se foi há muito tempo. O Antony que mesmo nos seus piores dias fazia piadas de sua desgraça se foi há muito tempo. O Antony que me fazia companhia em todos os momentos, que enxugava minhas lágrimas e ria comigo , dono da risada mais engraçada e gostosa do mundo já se foi há muito tempo. E a culpa é minha. Antony James Sanders morreu por minha causa.

    Porque eu, Elize Reynolds, matei meu melhor amigo.

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