Capítulo Vinte e Cinco - Efeitos Colaterais

9 2 0
                                    

    Sabe aquele momento em que você não é realmente você, apenas sorri e gargalha para e com as pessoas mas por dentro se sente um verdadeiro lixo? A sua volta há várias pessoas que te cercam, uma verdadeira multidão, mas internamente você se sente sozinho e solitário? Sente vontade de gritar e ser ouvido por aqueles que fingem que te escutam mas na verdade são indiferentes à sua existência, mas você acaba não dizendo nada, as palavras ficam presas na garganta e a sensação é de morrer engasgado pelas palavras não ditas. A sua vida passa a se resumir a uma casca, as aparências, e você passa a se perguntar porque está ali e o único sentimento de certeza é o de querer sair correndo, voar para algum lugar bem distante que te ofereça paz, aonde você não precisa ser mais nada, não precise mostrar nada, não precise ter nada, somente viver , somente existir. Ser englobado e imerso pelo total silêncio, pela total ausência de barulho e saber que você apenas vive por sentir o ritmado movimento do seu coração. Mas a verdade, a cruel verdade, é que apesar de tudo, você ainda continua ali, plantado no mesmo lugar, rodeado sempre das mesmas pessoas, das mesmas conversas, dos mesmos sentimentos, mas não faz nada. Apenas segue sendo levado com uma onda no mar, como uma folha seca ao vento, como uma ovelha em um rebanho, esperando que as horas passem mais depressa e tudo aquilo acabe.
    Mas nunca acaba.
*****
De início, começo a sentir um calor.
Calor, calor, calor.
Muito calor.
Céus, estou derretendo, como um picolé comprado na carrocinha do vendedor ambulante que saí gritando pela praia em um dia quente de verão.
Calor.
Estou derretendo como as calotas polares do Ártico, aonde aqueles ursinhos branquinhos de dentes enormes, sangrentos e assassinos moram, cujo buraco na camada de ozônio causado pelo aquecimento global faz com que a temperatura aumente e as geleiras virem raspadinha.
Calor.
Estou derretendo, e desmanchando, tendo minhas células, meus átomos desintegrados à medida que sou submersa em um lago fervente de lava vulcânica, ou então, sou atingida por gotas torrenciais de chuva de ácido sulfúrico que não só corroem minha carne, desestruturam meus ossos, mas também sugam a minha alma, me levando para a escuridão.
Calor.
Ah, eu vou pro inferno. Vou queimar no fogo macabro criado pelo satanás.
Não.
Espera.
Eu já estou no inferno !
Já estou no inferno porque estou já estou queimando porque estou sentindo muito calor e as vozes ao meu redor gritam como almas perdidas que vagam pelo vale da sombra da morte.
Mas como posso estar no inferno se eu vejo luzes?!
E no inferno não tem luzes, só no céu. Logo, eu estou no céu!
Quer dizer, agora estou vendo escuro.
E agora estou vendo claro.
Agora, escuro.
Agora, claro.
Escuro.
Claro.
Escuro.
Claro.
Um barulho melodioso, — Não sei dizer se é de Deus ou se é do capeta — toca na minha cabeça.
Alto.
Bem alto.
          Alto mesmo.
         Mas pensando melhor, talvez não seja da minha cabeça, talvez ela venha de fora da minha cabeça. E é tão bom. Me movo como se eu eu fosse uma sereia nadando nas profundezas do auto mar, e me movo como se eu fosse uma nuvem voando no céu,  me movo como se fosse um meteoro rasgando a noite escura, me movo como uma serpente encantada pela melodia da flauta doce, me movo como uma bailarina.
Mas não uma daquelas bailarinas fofinhas que rodopiam em apresentações de orquestras e são suaves, leves e frágeis. Mas como uma bailarina ousada, que também rodopia e dança, mas num cano alto que liga o céu e a terra. Ela também tira a roupa quando fica com calor e as pessoas aplaudem.
Espera aí.
Não é uma bailarina. Lembrei o nome. Se chama Stripper.
Acho que também vou tirar minha roupa.
Estou sentindo um formigamento que começa leve na nuca e se espalha por todo o corpo como as raizes de uma árvore, de modo que agora meus braços também formigam, meu rosto também formiga, minha barriga também formiga, minhas pernas também formigam e ficam bambas. E eu quase caio.
Aliás, deve estar chovendo por aqui, porque quando passo a mão pelos braços e rosto sinto muita água saindo deles. Estou encharcada, pra falar a verdade. Em todos os lugares. E a água não para de sair. Até parece que virei um chafariz ambulante.
Eu falei que estava derretendo.
E de uma hora pra outra, começo a tremer.
Tremer e tremer.
Porém, isso não é ruim.
Acho que é uma forma dos meus ossos também acompanharem o ritmo da música já que somente meus músculos podem se mover. Meus ossos se rebelaram. Estão fora de controle.
Eu também estou fora de controle.
Em um instante, sou como o fogo selvagem, ardente e flamejante. Consumindo tudo que vê pela frente. Não poupa nada.
E em outro instante, sou como a água corrente de uma cachoeira. Molhando e encharcando tudo. E se ninguém souber nadar, podem acabar se afogando nela.
De repente, a música divina-satânica muda para algo diferente e mais lento. O ar também fica diferente, ele muda de cor, fica vermelho. Assim como os cheiros que  ficam mais adocicados e inebriantes. Mais fáceis de confundir. Mais fáceis de deixar ser enganado.
Esses cheiros-sentimentos-ares-cores me deixam triste. Me fazem lembrar de algo, ou melhor de alguém que não esta aqui e que deixou um buraco aberto e não cicatrizado no meu peito. Esse machucado tá bem feio, aliás. A cada dia vai crescendo e ficando cheio de um pus amarelado, sinalizando infecção. Acho que ele é irreversível, acho que ele não tem cura, acho que vai ficar assim para sempre, acho que posso morrer disso. É muito grave e dói demais.
É então que eu vejo, sou iluminada, ou melhor um anjo iluminado aparece na minha frente e ele é tão grande, tão magro, tão elegante, tão bonito, tão charmoso, tão apaixonante que fico extasiada, anestesiada, maravilhada, inebriada.
Quero que ele venha até mim. Quero ir até ele. Seus olhos castanhos pequenos cintilam quando as luzes voltam depois de serem apagadas, seu cabelo castanho cai em ondas perfeitas onduladas sobre a testa e o brilho do sorriso maroto ofusca minha visão quando ele mostra os dentes.
Mas tarde demais, me dou conta de que o anjo gingante esta indo embora. Ele me deu as costas. Está me deixando.
NÃO!
"Por favor não vá!", quero gritar.
Me esforço para ir atrás do fugitivo e ponho a mão em seu ombro. Contudo, quando ele vira a cabeça e me olha, seu rosto antes angelical e tomado por uma aura doce e serena se torna diabólico e doentio.
Tão perverso. Tão mau.
Seus olhos miúdos de enchem de fúria e de sua testa imaculada saem chifres pontudos e vermelhos. A minha mão que toca em sua pele arde e dói tanto quanto se eu estivesse pondo-a em brasas. Me desvencilho com rapidez bem na hora que seu rosto some, dando forma a outro rosto quase tão desagradável quanto o que acabou de partir.
Que dizer, eu amo esse rosto e eu sei que ele me ama também, mas a expressão nele é tão dolorosa e desoladora que faz com que eu me encolha instantaneamente.
A dona do rosto, a dona do cabelo tingido de loiro, a dona das rugas e das linhas de expressão, a dona do nariz com o formato quase igual a meu, a dona da boca fina fala: " Vá para casa".
E se vai. Se vai tão velozmente quanto veio.
Uma cortina invisível que antes cobria os meus olhos se cai. Pisco, espantando as alucinações. Tudo passa a ficar mais claro agora. As pessoas que antes passavam de borrões ganham formas, silhuetas, caras. Tensa, me dou conta de onde estou, com quem estou e do que estou fazendo.
Elize Reynolds é o meu nome. Tenho 16 anos. Estou acompanhada da minha melhor amiga e do seu namorado babaca. Tomei um copo de suco Gummy — uma mistura de suco de laranja com Vodka — e engoli um comprimido de Ecstasy que me deixou delirante e me fez perder o bom senso. E tenho que ir pra casa agora.

DiversoOnde histórias criam vida. Descubra agora