Nosso primeiro dia como garçonetes da lanchonete começou em uma segunda feira movimentada. Atarefadas, eu e Natasha corríamos de um lado para outro a fim de anotar os pedidos e leva-los de mesa em mesa para os clientes. Apenas metade do expediente tinha se passado quando me dei conta de que meus pés estavam me matando de tanto doer e ao tentar equilibrar uma pilha de pratos sujos, acabei derrubando alguns deles no chão, chamando a atenção de todo o lugar. Já Natasha, por ser mais habilidosa e nem de longe tão desastrada quanto eu, se saiu bem melhor em nosso primeiro dia. Exceto na hora em que um cara gordo e velho soltou uma cantada idiota pra ela e quase levou um tapa da cara, contudo ela se contentou em apenas cuspir em seu café e mergulhar a colherzinha do açúcar na privada antes de servi-lo. Depois desse dia, passei a admirar veementemente a profissão dos atendentes, os caras são verdadeiros heróis.
Ao colocar um prato de panquecas no prato e preparar um café forte, minha amiga surge no outro lado do balcão.
— Você viu aquele carinha sentado na ultima mesa com uma camisa dos Hot Chilli Peppers? — ela pergunta com um sorriso nos lábios.
Levanto a cabeça e olho na direção do homem. Não muito bonito, ele me parece ser uma versão masculina de Natasha. Assim como ela, o jovem tem alguns piercings pelo rosto na região da sobrancelhas e nas orelhas, tatuagens pelos braços e um cabelo escuro comprido.
— O que tem ele?— digo, adoçando o café.
— Ele pediu meu número. — ela abre um sorriso presunçoso. — o nome dele é Mike.
— Ele parece ser mais velho. — agilmente ponho o prato sobre a bandeja e o molho doce sobre as panquecas.
— E é. — a garota senta — Deve ter uns 20 anos. Bom pra mim, sinal de que ele tem mais experiência. — ela pisca — ninguém merece esses pirralhos da nossa escola.
Embora Natasha esteja no segundo ano, como eu, na verdade ela é mais velha um ano por ter reprovado quando estava no primeiro. Então, por ela ter a idade dos alunos do ultimo ano, acha que todos na escola são jovens demais e rotula todo mundo de pirralhos.
— Você devia parar de paquerar com os fregueses e servir as mesas. — entrego a bandeja pra ela — essa é da mesa onze.
Ela pega um pouco desajeitada e comenta:
— a mesa daquela mulher de bigode?
—Essa mesma. — sorrio e ela bufa
— Aquela mulher fede.
— Fedendo ou não fedendo, esse é o seu trabalho. Agora vai logo antes que o chefe venha aqui e brigue com a gente. — resmungo impaciente.
A contra gosto, ela vira e se vai. Vendo que uma mesa desocupou, vou até ela para fazer uma limpeza antes que alguém chegue. Apanho os pratos e os talheres, dessa vez tomando o cuidado de equilibra-los e passo um paninho molhado na superfície suja de ketchup. Ouço o sininho da porta abrindo e olho de relance torcendo para que não seja mais uma família com quatro crianças. Aqueles pestinhas fazem bagunça demais e sujam a mesa inteira. No entanto, para minha surpresa, vejo as últimas pessoas que eu gostaria de ver na face da terra entrarem pela porta. Eu preferiria mil vezes ter que limpar a bagunça de uma creche inteirinha do que ter lidar com Antony e sua gangue do basquete.
Lutando para me manter calma e indiferente, me dirijo à cozinha levando os pratos para a pia. Pela janelinha da porta espio o grupo se sentar na mesa que eu acabei de desocupar. E percebo que eles trouxeram companhia, algumas das líderes de torcida. Fico estática na porta torcendo para que algum atendente atenda logo a mesa, mas infelizmente todos eles parecem estar ocupados no momento.
— Senhorita Reynolds — chama o dono da lanchonete, um homem baixinho, careca, chato e muito barrigudo. Sua pança avantajada é tão grande e assustadora que se ele fosse uma mulher, acharia que ela já estaria no nono mês de gestação. De gêmeos. — O que você está fazendo parada ai? Vá servir a mesa oito.
Assinto com a cabeça e respirando fundo, me movo. Tiro o bloquinho do avental, levanto a cabeça, ajeito a postura e me obrigo a parar de tremer. Há algumas semanas não vejo Antony e não falo com ele desde a Festa da Humilhação. Ele não mudou muita coisa de lá para cá, todavia, seu rosto além de mais magro parece mais cansado agora.
— Boa tarde. — cumprimento, evitando o olhar deles — Qual o pedido de vocês?
De esguelha noto Antony de braços cruzados, sua expressão quase neutra, apenas denunciando uma ligeira surpresa por conta de uma sobrancelha arqueada.
Um garoto ruivo, cheio de sardas e com braços musculosos responde:
— Seis Cocas, três tortas de abacaxi e três sanduíches de cheese bacon.
Anoto as informações no bloquinho com rapidez e minhas letras acabam saindo um garrancho indecifrável. Sôo frio querendo sair daqui.
— Mas eu não quero torta. Isso engorda. — uma menina de pele morena replica com um muxoxo e uma voz excessivamente aguda — eu vou querer uma salada e uma coca diet.
Levanto os olhos do bloquinho e me obrigo a responder :
— Não servimos saladas aqui. — se você quer comer mato sua vaquinha vara-pau, eu recomendo ir no terreno abandonado da esquina, porque lá é cheio de capim.
— Mais que droga. — ela retruca — viu Harry? Eu falei para gente não vir nessa espelunca. Nem comida saudável eles servem aqui. — soando dramática, ela cruza os braços irritada.
— Boneca, você é a única que consegue viver só de comer alface por aqui. — o ruivo, Harry, fala.
— Eu vou ficar só no suco, então. — ela anuncia por fim. — me traz um suco de laranja sem açúcar.
Mais uma vez escrevo no caderninho, dando graças a Deus ela ter se decidido para eu poder dar um fora.
— Espero só mais um minuto, garçonete — sinto que gelo ao ouvir a voz inconfundível e tão dolorosamente familiar — não vou mais querer um cheese bacon. Vou pedir outra coisa aqui.
Aperto os lábios com força. Repentinamente, sinto-me enjoada. Esse garoto boboca só pode estar de brincadeira. Ele realmente pretende dar continuidade e fazer uma outra Festa da Humilhação Parte dois aqui? Me encolho com o pensamento. Ainda não superei — e acho que nunca irei — as duras palavras que ele me disse naquela noite. Reunindo forças, invento uma desculpar para fugir.
— Eu vou atender outra mesa e quando você tiver escolhido eu...
— Fica. — ordena ríspido, sem tirar os olhos do cardápio — não vai demorar.
Sem graça, eu fico de pé em frente sua mesa enquanto eles começam a falar sobre o jogo que tiveram na semana passada. Conto exatamente 243 segundos até que ele finalmente levante a cabeça do cardápio e olhe para mim.
— Vou querer duas fatias de pizza. — informa, e então eu me lembro que quando éramos amigos costumávamos vir aqui para comer pizza e pedíamos sempre os mesmos sabores : calabresa e marguerita. Quase sorrio com a memória. Quase. — Vou querer sabor pepperoni e sem cebola. — sem cebola? Ela adorava pizza com cebola. E desde quando ele passou a gostar de pepperoni?
Anoto e sem demora me viro para ir.
— Garçonete? — ouço mais uma vez sua voz me chamar quando já estou de costas. Paro. — não demore muito. Nós temos pressa.
Sem me dar o trabalho de responder, vou embora.
Ao invés de seguir direto para a cozinha, jogo o bloco de notas sobre o balcão e caminho para o banheiro. Ao chegar no ambiente apertado, tranco a porta, tiro o avental, levanto a tampa da privada, fico de joelhos e vomito.*****
Depois de um longo dia de trabalho volto para casa a pé. O sol já está quase se pondo, e entre às nuvens, um pouco tímida, a lua começa a surgir, anunciando a chegada da noite. Quando chego em casa e me reuno para jantar, meus irmãos e minha mãe não estão. Vejo em cima do fogão o resto da sopa requentada da noite anterior. Desgostosa e enjoada, abro a geladeira a procura de alguma coisa melhor, porém pouca coisa encontro dentro dela, algumas garrafas de água, ovos, geleia, um saco de maçãs e um saco de cenouras. Resolvendo fazer um sanduíche, pego a geleia. Irritada, me repreendo de não ter trazido um pedaço de torta da lanchonete e como em silêncio.
Ao terminar minha refeição subo ao meu quarto, tranco a porta e abro meu armário. Lá bem no fundo tiro uma caixa de sapatos que eu usava para guardar minha coleção de cartas, contudo, depois de cede-las para Chloe na noite em que tia Rose veio a minha casa desesperada por noticias do seu filho, hoje a caixa velha me serve com um propósito maior e melhor — nela guardo todo o meu dinheiro ganhado com o Ecstasy. Pode parecer um lugar estupido e até perigoso de se esconder tamanha quantia de dinheiro dos meus pais, mas por ser tão fácil e comum de encontrar ninguém desconfiaria de tamanho tesouro guardado ali dentro.
Conto as notas e pego a quantidade equivalente que eu ganharia ao final do mês como salário na lanchonete. Pode ser pouco, mas por enquanto vai ser o suficiente. Quando saio do meu quarto, me dirijo a porta mais afastada do corredor aonde não entro faz muito tempo.
Bato três vezes antes de ouvir uma voz masculina me dizendo que entre. Lá dentro, vejo o que outrora era um lugar organizado e em perfeita ordem, agora é uma verdadeira bagunça beirando o caos. Vários papeis se amontoam sobre a mesa, assim como pilhas e mais pilhas de livros jogadas sobre o chão. Entre o meio da desordem que compõe a escrivaninha, observo uma cabeça curiosa se elevar. E apesar do rosto amável me encarar com uma singela confusão, eu fecho a porta e vou até ele. Eu não viria até aqui se não fosse importante.
— Oi — digo.
— Oi. — responde — como foi seu primeiro dia de trabalho?
— Foi... cansativo. — uma leve expressão de receio perpassa em seu rosto — Mas foi bom — minto. — E eu tenho uma notícia boa pra dar.
— Sim?
— Falei com o chefe e... expliquei nossa situação pra ele. Ele foi bem gentil e atencioso e me adiantou parte do meu salário. — tiro as notas amassadas do bolso — Então, eu acho que é suficiente pra pagar as compras do supermercado desse mês.
— Elize... — ele diz incomodado — é o seu dinheiro, não posso...
— Pai. — me aproximo e ponho o dinheiro em sua mão, fechando-a sobre ele. Olho em seus olhos castanhos e fico assustada com tamanha tristeza que vejo ali — Por favor.
Com relutância, ele aceita. Fico aliviada que ele tenha engolido o orgulho e ter deixado o bom senso falar mais alto, nós não estamos em condições de recusar qualquer ajuda financeira.
Indo em direção a porta, faço mais um pedido antes de sair.
— E não conta nada pra mamãe, tá? — eu que não seria louca de despertar qualquer desconfiança dela a cerca da origem do dinheiro.
Ele anui.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Diverso
Ficção AdolescenteElize é uma garota comum, com uma vida comum, que vive em um lugar comum. Contudo certas escolhas que ela faz mudam sua vida de cabeça para baixo, fazendo desmoronar tudo aquilo que ela construiu e no que ela acredita. Por isso, nunca subestime uma...