O ÍNICIO - O FIM

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Acordei atordoada, a cabeça latejava constantemente. Em meu consciente busquei memórias, vestígios das lembranças anteriores de antes apagar. Tudo o que eu desejava era que aquilo não passasse de um sonho, em vão eu sabia. Se não estivesse tão acordada poderia até supor que não passava de uma ressaca. No entanto, não era uma ressaca e não era um pesadelo. Era real. Havia confiado, e pior de tudo, me entregado a Lorena... Em vão. Isso poderia ser considerado algum tipo de traição? Porque era assim que me sentia: traída e indefesa. Camila era outra que me devia explicações. Não entendia aquela sua atitude. Só que neste exato momento eu tinha problemas maiores. "Se é que era possível", pensei comigo.

Com muito custo minha visão conseguiu entrar em foco. A primeira coisa que consegui enxergar foi o teto, meus olhos grudaram no teto envidraçado e na Lua que parecia maior e mais próxima daquele ambiente onde me encontrava. Sua luz era tão forte que meus olhos lacrimejaram. Uma iluminação amarelada era perceptível naquele ambiente e uma brisa gelada me embalava em constantes calafrios.

Meus braços encontravam-se desconfortavelmente puxados para cima de minha cabeça. Tentei acabar com o desconforto, mas uma ardência subiu por meu corpo ao constatar que me encontrava acorrentada. Minhas pernas também estavam esticadas, no entanto, não ousei puxa-las. Algumas lágrimas escorreram pela lateral do meu olho, minha boca estava seca e com gosto de sangue, não sabia o que estava vestindo, mas era tão leve que mal podia sentir.

Escutei passos abafados ao fundo, tentei virar minha cabeça na direção de onde vinha o som, mas meu braço cobria minha visão, não dava para ver quem estava entrando. Pelo eco que os passos transmitiam, pude imaginar que o local era grande e muito espaçoso.

Senti se aproximarem da lateral de onde me encontrava acorrentada. As duas figuras vestiam túnicas vermelhas e seus capuzes estavam abaixados, era difícil de enxergar seus rostos, mesmo assim senti seus olhos atentos em mim. A primeira levantou os dois braços para retirar o capuz da cabeça, seu cabelo ruivo saltou selvagem para fora do capuz daquela túnica vermelha que a cobria. Camila me olhava atentamente com aqueles olhos de gato, mais vivos do que seria humanamente possível; sua brancura parecia ter se tornado translucida se comparada ao seu tom normal de pele. A segunda pessoa estava sendo um pouco mais cautelosa, como se estivesse protelando o meu julgamento quando a visse. Eu rezava para ser qualquer pessoa, menos ela. Em um movimento ela também retirou seu capuz. Engoli em seco ao ver Lorena novamente naquela noite. "Então era isso", pensei comigo, "Ela me matará" completei para mim mesma. "É o que acha?" escutei em pensamento. Um arrepio passou por minha espinha ao entender que ela tinha livre acesso a minha cabeça. "SAIA DAQUI!" gritei mentalmente, metalizando uma porta batendo em sua cara. Isso pareceu pega-la de surpresa, pois senti um aperto mais firme em minha coxa descoberta, um calor subindo por meu corpo.

Um desespero súbito começou a subir por minhas veias, sentia as lágrimas escorrerem por meu rosto e ainda podia sentir meus tornozelos e cotovelos machucarem mais e mais. Eu queria sair dali desesperadamente. Estava me contorcendo ali onda estava deitada, até sentir seu aperto em minha coxa tornar-se suave, com uma delicada carícia. Lorena me olhava atentamente com seu olho esquerdo de gato e o outro azul vivo, ambos pediam-me calma. Pela primeira vez desde que chegaram eu encontrava palavras para perguntar.

- Por quê? – perguntei em sussurro.

Camila se aproximou de mim, até que eu pudesse sentir sua respiração em meu rosto. – Peço que tenha calma. Tudo será mais rápido do que imagina. – em seguida levantou-se.

Virou para Lorena que se encontrava atrás dela, olhando para a mesma, em seguida saiu do recinto. Lorena não tirava seus olhos de cima de mim, mesmo ali deitada, suas íris acompanhavam cada movimento meu. Sua mão já não estava mais pousada em minha perna, deixando o local frio enquanto seu toque era capaz de me aquecer, mesmo depois de tudo o que tinha feito. A própria se aproximou, seus lábios indo de encontro ao meu ouvido, enquanto sua respiração causava-me arrepios.

- Onde estou? – perguntei em sussurro.

- Em um altar. – respondeu enquanto sua cabeça se erguia seus olhos prendendo os meus – Não vou deixar você sofrer tudo isso.

Aquelas palavras foram o suficiente para que mais lágrimas escorressem de meus olhos. Lorena se afastou e foi embora, deixando-me sozinha ali com meu desespero.


Não sei ao certo quanto tempo passei ali. Horas, minutos e segundos se misturaram enquanto meu corpo era tomado por um peso descomunal. Sentia-me sem forças para tentar qualquer coisa, meu corpo estava dolorido por estar naquela mesma posição durante tanto tempo, meus olhos não conseguiam mais focar em nada. Mas, minha audição tornara-se mais atiçada, pois era capaz de ouvir um pingar próximo de mim, porém estava confusa o suficiente para não saber de onde aquele barulho de goteira vinha.

Mal notei que o salão aos poucos se enchia de figuras com túnicas vermelhas, os capuzes deixando-as indistinguíveis. A Lua acima de mim parecia ter se tornado maior e mais próximo. Seu brilho agora reverberava por todo o ambiente, e uma áurea espiritual era notável. Tudo o que mais queria era que aquilo terminasse o mais rápido possível.

Notei com a visão turva alguém se aproximar e retirar um punhal de prata que estava ao lado do meu corpo. "Desde quando ele estava ali?" me perguntei, "Ele não parecia estar aqui antes" disse a mim mesma. O murmúrio de vozes foi cessando pouco a pouco, enquanto uma voz elevava-se sobre todas as outras do recinto. Sua voz era melodiosa e aveludada, mas causava-me arrepios de terror ao saber de quem se tratava: Bethânia estava discursando.

- Meus queridos – começou chamando atenção – hoje estamos aqui para iniciar um novo ciclo. É noite de uma celebração. Após eras sendo dominados pela Ordem, hoje damos o primeiro passo para conseguirmos a benção capaz de nos transformar. – fez uma pausa – Em meu altar encontrasse a sangue puro e santificado da primeira Madalena que pisou em Terra.

Bethânia foi interrompida por outras milhares de vozes. O salão ficou eufórico em saber da minha presença, uma energia pesada se espalhando por todo o local. Aquilo tudo soava como uma loucura distante, cada vez mais eu perdia a consciência do que estava acontecendo, ou do que estava para acontecer. Tudo me puxava para baixo, para a escuridão e a inconsciência, eu não impedia meu espírito de seguir o caminho que queria.

- Hoje começa uma nova era! A balança de Eva encontrasse em meu domínio. – entoem comigo – Eva! Mãe minha, mãe nossa! Traga nos o poder e a benção! Transforme-nos! – o punhal foi levantado – Receba o sangue da pura! Receba o sangue da impura! A balança penderá para o mais forte! Perecerá para os mais fracos! Receba Eva o sangue da pura!

Fechei meus olhos enquanto dava meu último suspiro de vida. Acalmei meu coração para o inevitável. Ouvi o ar ser cortado pela lâmina, uivando até chegar a meu coração. Era assim que tudo acabava.


Meu corpo foi levantado de onde estava deitada. Meus músculos reclamaram de desconforto. A minha visão tornara-se mais embasada e só conseguia encontrara aqueles olhos que me reconfortariam nessa vida e na outra. Eu queria tanto odiá-la, mas eu sabia que isso jamais seria possível, não com a ligação que tínhamos de épocas e mais épocas. Porque no fundo eu sabia, mesmo que insistisse em negar, eu já conheci Lorena em outras vidas e a "amaria nessa vida e nas outras que nos esperavam".

- Madalena? – escutei ela me chamar, ainda me carregando.

- V-ou t-e am-ar n-ess-a vi-d-a e n-as o-utr-as q-ue n-os es-pe-ram... – suspirei cansada.

- Aguente mais um pouco, meu amor. – pediu ela – Por favor, não a tirem de mim!

Foi a última coisa que escutei antes de apagar de vez. 

MADALENA (Livro 1)Onde histórias criam vida. Descubra agora