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"O mal nos apega à vida de uma forma tão insólita que, quando morremos, vivemos para um propósito"

(Diário de Fátima)

"Embrulho meus pertences, ainda com lágrimas nos olhos, e me despeço de minhas bonecas. Vocês vão ficar bem; minha irmãzinha cuidará bem de vocês, digo beijando cada uma".

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Janete se levantou cedo naquele dia, ainda era quatro da manhã. Estava frio no seu quarto, e mais frio ainda la fora. Ajoelhou-se rente à cama e começou com a sua oração do dia-a-dia. Assim que terminou, foi para o banheiro. Já tinha tirado água do poço no dia anterior. Aquela água gelada, de tremer as espinhas. Os dentes da mulher trepidavam de frio, teve que colocar um pano na boca para morder. Era um frio horrível, como se estivesse com febre.

Assim que saiu do banho, foi toda enrolada para o seu quarto, mas as baforadas de vento que adentravam na casa ainda lhe atormetavam.

Estava no meio do inverno, e a temperatura não seria nada agradável àqueles dias.

Janete enxaguou-se e secou os cabelos penteando com creme . Vestiu as roupas adequadas e saiu, trancando a porta e descendo a rua íngreme. O metrô já estava lotado e as feições das pessoas era algo triste de se narrar. O falatório, naquele horário, era bem pouco, muito normal, afinal são poucos os que acordam de bom humor às quatro da manhã para ir ao trabalho.

O que mais incomodava Janete, no entanto, era o frio. Acordar cedo, para a mulher, não era nada demais, afinal sempre teve esta rotina, desde que se entendia por gente. Era Janete, que aos oito anos de idade preparava o café da manhã para a primeira família a quem trabalhou.

Janete, assim como outras irmãs a quem sequer ainda se lembra, foi dada para famílias que vinham da cidade grande para pegar "pequenas" para fazer de eficientes empregadas domésticas. Quando as meninas não agradavam a família, esta se desfazia das garotas oferecendo a outras, e assim por diante. As meninas passavam as piores situações de suas vidas convivendo com estranhos. Muitas das vezes eram humilhadas e até mesmo abusadas. Mas não podiam fazer nada. Eram mercadorias humanas sem amparo, sem amor, sem esperanças.

Janete era mais uma de milhares de mulheres que sobriveram, ali naquele metrô, seguindo para o novo trabalho, pois a vida continuava, apesar de tudo.

Bateu cedo na casa da família Peixoto para a entrevista de emprego, como haviam combinado dois dias atrás. A sr Jamila Peixoto se surpreendeu com a pontualidade da entrevistada naquela manhã de sexta feira. Uau! Isto é que eu chamo de estar urrando por um emprego, pensou a mulher mirando Janete pelo o olho mágico. Rapidamente vestiu uma roupa de visitas e convidou a mulher para se sentar na pomposa sala de estar da família.

— Estou olhando aqui o seu currículo e me agradando bastante com ele, Janete. — disse a dona de casa analisando a mulher meticulosamente. — Você trabalhou para a família Berlado, do deputado Lucas Berlado, é isto mesmo?

— Isso, sra Robinson. Foram patrões maravilhosos, porém tiveram que se mudar do estado. Infelizmente não pude ir.

— Isso pesa muito no seu currículo. Eu e meu esposo votamos nele na eleição passada, inclusive Antônio Peixoto é muitíssimo amigo de Lucas, um homem que cumpre com suas obrigações e promessas.

— É verdade. É um homem filantropo e me orgulho bastante de ter trabalhado com ele.

A sra Robinson analisou novamente a entrevistada. Não era do tipo abestada. Sabia usar as palavras. Percebeu algumas cicatrizes na perna da mulher, bem como manchas pelo o corpo. Olhou mais uma vez para o currículo, arqueou a sobrancelha e disse:

— Permite-me ligar para o deputado e ter mais posições ao seu respeito?

— Ah, sim, claro. Fique à vontade. — disse a entrevistada unindo os dedos das mãos, mostrando frieza na tez. A sra Peixoto foi até a sua estante, pegou o telefone e começou a discar, ainda com o currículo nas mãos e olhando para Janete, com certa desconfiança.

O telefone tocou duas vezes e, na terceira, uma mulher com uma voz grave atendera.

— Casa da família Berlado, pois não?!

— Alô. Bom dia, quem fala?

— A secretária do deputado Lucas Berlado. O que deseja?

— Estou aqui com o currículo de uma antiga empregada doméstica da família do deputado e gostaria muito de saber sobre suas referências?

— Como se chama a funcionária?

— Janete Santos.

— Janete Santos? Ora, se me permite, eu posso me ater a responder algumas perguntas, não substituindo o senhor Lucas, é claro. Janete é uma ótima secretária. Trabalhou dez anos para a família.

A sra Jamila Peixoto reteve as bochechas num gesto de surpresa, e continuou:

— Eu estou interessada nos seus trabalhos.

— A Sra não terá dor de cabeça. Janete é uma pessoa de confiança e de mãos boas para fazer uma boa comida. Ela faz uma lasanha estupenda.

— Oh, fico feliz por estas referências. Eu preciso mesmo de uma boa cozinheira, e também para cuidar dos trabalhos domésticos e da minha filha Joaninha, de dois anos.

— Ela é também ótima com crianças. Ama o que faz, talvez por fazer isso desde que era pequena, como a própria fala.

— Sim, estou vendo aqui. Ela tem as qualidades que preciso.

— Claro que essas coisas são íntimas, e nem se constam em currículos, e, na verdade, nem sei por que estou dizendo isto, mas Janete perdeu um filho quando ainda tinha somente treze anos de idade.

— Treze anos? — interrogou a sra Peixoto, num tom de voz baixo, para que Janete não pudesse escutar. — Muito nova para essas coisas, não acha?

— Sim, claro. Mas, como parar essas coisas, não é! Janete só comenta isso para pessoas íntimas. Acredito que por isso ama a todas as crianças como se fossem seus filhos.

— Que tragédia!

— Sim. Mas Janete é profissional no que faz, uma mulher forte que superou tudo de mal na vida. É uma mulher que nunca traz problemas seus para o trabalho, isso eu garanto.

— Isto é perspicaz. Bom, obrigada por sua atenção.

— De nada. E parabéns pela boa funcionária que terá. Tenha um ótimo dia.

— Igualmente.

A sra Jamila Peixoto guardou o telefone, respirou fundo, visivelmente satisfeita, e arguiu, sem receio algum:

— Considere-se contratada, Janete.

Janete fechou os olhos, sorrindo amavelmente. As mãos vinham agora aos enormes seios, contendo a emoção, estava feliz pelo o novo emprego. 

— Obrigada, sra Peixoto. Muito obrigada mesmo.

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