A ANDORINHA

10 2 0
                                    

Era interessante ver o trabalho da andorinha, fazendo seu ninho nas traves da vara. Pacientemente, pouco a pouco, ia ela dando forma ao seu abrigo. Quanto trabalho, quanta dificuldade no vaivém dos fios de palha. Notava-se, porém, naqueles minúsculos olhos, um brilho de felicidade, de realização. Era deveras bonito, mas não o distraía. Pelo seu olhar ausente, observando o trabalho da avezinha, infiltrava-se um pensamento que em vão tentava esquecer. Tentava não lembrar a conversa com os amigos, as palavras indiretas sugerindo que sua mulher, sua querida mulher, o traía.

Eram recém-casados e isso era-lhe inadmissível. Ele a conhecia muito bem, era sincera, dedicada, muito afetuosa e nunca faria tal coisa. Mas disseram, e que malditos fossem os que disseram — ou benditos?

A dúvida assaltou-o e perturbou-lhe os sentidos. Achou por bem investigar. Afinal de contas, alguma coisa de concreto haveria por trás daquilo tudo, além da perversidade.

No dia seguinte viajaria, foi o que disse à esposa. Antes de partir, despediu-se dela e notou, com alegria, que o ninho da andorinha estava terminado. Partiu, mas não como havia dito. Deixou seu carro num posto de gasolina qualquer e biscateou o resto do dia pelos bares da redondeza. Uns e outros goles foram entornados, mas não queria embrutecer-se. No fundo era calmo, premeditado, não se precipitaria. Apenas tomou porque entendia que os homens deviam tomar em ocasiões como essas.

A noite encontrou-o esvaziando seu décimo segundo — ou décimo terceiro? — copo.

Era hora dos amantes se encontrarem. Como o sabia? Como todo homem, ele não era um santo. Simplesmente sabia a hora dos amantes. Ao aproximar-se da casa, pareceu-lhe ver a andorinha revoando no negrume da noite.

— Bobagem! — comentou ele. — Andorinhas não voam à noite.

Era fato. Sua mulher o traía com um amigo. De repente, viu-se vivendo a tragicômica cena do marido-viajante, mulher-adúltera, amigo-traidor. De revólver em punho, apenas para impressionar, pois nunca o usaria, falou no tom de voz mais natural que a emoção e a bebida permitiram:

— Meu amigo, eu não vou matar ninguém, não precisa ficar com medo.

Seu braços abaixou-se e o revólver pendeu no espaço como o pêndulo de um relógio que marcasse a hora da verdade.

— Você também mulher, não precisa ter medo. Você, meu amigo, tem mulher também, não? Pois então vá cuidar dela para que não lhe façam o que me fizeram. Você tem filhos? Então vamos, leve estas balas para eles. Eu mesmo as comprei num bar qualquer, não sei aonde. Vamos, apanhe, não tenha medo! Crianças gostam de doces. E agora pode ir, eu não vou lhe fazer mal.

Com as faces em fogo e as palavras martelando-lhe os ouvidos, o amante, com a expressão mais abobalhada do mundo, deixou, sem querer acreditar, a casa. Fora patética demais a cena para que pudesse acreditar nela. Mal transpôs a soleira da porta, atirou longe o pacote de balas, que se espalharam pelo asfalto em mil gritos de traição.

O marido voltou-se então para a esposa. O revólver caiu-lhe das mãos e uma sombra cobriu-lhe rapidamente a vista. Pareceu-lhe ver a andorinha, com um fio de palha ao bico, revoando pelo quarto.

— Quanto a você, faça a mala e vá embora. Não guardarei rancor. Pode ir. Viva a vida que escolheu, corra o mundo, pertença a quem quiser, procure a felicidade. Quando você estiver bem velha, e seu corpo não provocar desejos em mais ninguém; quando os traços da velhice marcarem o seu corpo, se quiser, você poderá voltar. Volte para mim que nesta casa eu acolherei sua velhice. Agora vá, pode ir.

E ela partiu, como no dia seguinte, misteriosamente, também partiu a andorinha, deixando seu ninho pronto e abandonado.

E depois?

Viu sua mulher algumas vezes, seguindo seus passos. Era uma pobre coitada, depois de tudo.

Mas o tempo passa, passa mesmo. Tudo muda. Novas primaveras, outros outonos, verões e invernos se sucedem no destacar diário de mais uma folha do calendário.

Passaram-se cinco anos. Ou seis? Dezesseis talvez? Não sei ao certo. Sei que um dia ela voltou. Chorando confessou seu arrependimento, narrando o inferno que fora sua vida. Disse da tranqüilidade que lhe fugira e que nunca mais pudera encontrar; disse do corrosivo remorso que tomara lugar em seu coração.

Ele, apiedado, mas com um sorriso tristonho nos lábios, olhou-a bem e depois falou:

— Não, ainda é cedo. Em seu corpo ainda existe, fisicamente, muita coisa boa, embora que possa jurar que, espiritualmente, você já morreu faz tempo. Espere até que sua carne murche e as rugas marquem esse rosto que eu, sinceramente, amei. Quando você passar a ser enxotada como um traste velho e sem valor, então redimida de sua culpa, pode voltar para mim. Eu a espero até lá, Por enquanto, não.

Comlágrimas nos olhos ela se afastou. Naquele mesmo dia, ao entardecer, aandorinha apareceu de novo. Pousou por algum tempo no seu ninho, saiu, revooupor sobre a casa e perdeu-se na escuridão da noite que chegava.    

CONTOS DO MAGO DAS LETRASOnde histórias criam vida. Descubra agora