O dia se tornara um alívio para mim. Ele não era menos perigoso e repuguinante quanto a noite, mas ao menos eu podia enchegar com clareza muitas das vezes. E, ao que parece, muitas das criaturas residentes nestas terras, são noturnas.
Passaram-se três dias, nos quais eu caminhava até não sentir mas meus pés e três noites nas quais eu não esperava outra coisa a não ser a chegada do dia.
Minha barriga era um buraco vazio e resmungante, meu corpo jazia sem força para ao menos se manter de pé. No desespero do momento me vi fazendo algo que eu jurara nunca fazer em plena consciência. Minha flecha atravessou o roedor em menos de um minuto após que eu o avistara, mas essa não era a pior parte; a pior parte foi perceber que eu não tinha os devidos instrumentos e tempo para seu preparo. — A pior parte foi sentir novamente o gosto de sangue fresco em contato com minha boca.
Certas vezes, a necessidade fala mais alto do que seus princípios...
Ele sabia. O Oráculo sempre soube do que eu teria que fazer para sobreviver.
Chorei, pois era a única coisa que podia fazer sem colocar as tripas para fora. Eu me sentia suja, como nunca antes havia sentido. Entretanto, minhas pernas não mais tremiam com a fraqueza crescente e constante.
As horas seguintes passaram-se com eu em meu estado de espírito mais horrendo e miserável. Seguir em rumo ao desconhecido para ser livre, matar e comer como uma besta semi-selvagem para se manter viva.
Eu não era melhor que meu raptor.
Passo por cima de uma árvore caída. Inebriada, demorei dois minutos ou mais para perceber as marcas de garras cravadas em seu tronco caído. Apertando o passo, segui meu caminho.
Por volta de metade do dia, meu corpo clamava por água, algo com o que tirar o gosto metálico de minha boca... Não encontrei.
Eu tinha plena consciência que, em breve, eu suncumbiria e, não teria mais que me preocupar quanto as criaturas sombrias que esperavam pacientemente para meu devorar.
《■》
Água.
Eu podia escutar o som das gotas saindo em meio a uma nascente. Havia água por perto e minha angústia era tanta que ignorei o latejar em minhas têmporas, o aperto em meu antebraço e a fraqueza de meu corpo para correr em sua direção.
Pulando troncos e pedras repletas de musgo, desviando de galhos e folhas cheguei a magem de um grande riacho, a respiração já descompassada. Como tudo neste maldito lugar, sua água era negra; mas não por consequência de algo assombroso e horrendo, mas por conta da terra escura que jazia em seu fundo.
Não dando atenção ao sinal de alerta quanto ao desconhecido, dei um passo em sua direção, enchendo minhas botas de água maravilhosamente fria.
Outro passo. Eu estava hipnotizada pela beleza da água escura que parecia mais com um céu límpido e noturno... ônix até.
Mais um passo. Sinto meus pés afundarem na areia e a água chegar a minhas cochas. Não me desespero.
Estou aonde deveria estar.
Outro passo. A água bate em minha cintura e a única coisa que me vejo fazer é tentar umidecer meus lábios rachados e secos com a língua, já sentindo o doce gosto da água refrescante descer por minha garganta.
Porque eu não bebo a água? Ela é tão linda...
Novamente, outro passo. A água começa a subir mais sobre meu corpo como o abraço gelado de uma velha amiga. Não me mexo, porém ela continua a subir.
Porque eu não me mexo?
Novo passo. O bracelete em meu antebraço fica incrivelmente gelado, sobrepujando até mesmo a temperatura baixa da água.
De repente, paro de andar.
Oh meus Deuses...
Há uma ondulação sobre a água, e alarmes soam em minha mente. Minha respiração faz meu peito subir e descer o mais rápido do que eu já pude presenciar. Não movo meu corpo, nem um músculo sequer; eu não consigo — Eu não posso — os mexer.
De repente vejo algo a minha frente. Como uma estrela cadente a rasgar o céu conforme nada em minha direção por entre a água escura.
A compreensão me atinge como um punhal a corta carne e tendões e ossos. Eu fora atraída, enganada mais uma vez pela floresta e aqueles que a habitavam. Eu era novamente uma presa fácil.
Emergindo a minha frente, aquela estrela cadente tomou forma. E, não era nada gracioso quanto antes.
Não haviam pelos ou cabelos ou pele. Sua superfície era quase verticalmente plana, destacada apenas por algumas ondulações das quais me fazia perceber aonde estava cada uma de suas parte. Cabeça, sem rosto; ombros, largos, muito largos; tronco pleno e reto. O restante era apenas um emaranhado daquela superfície que de branca passou a ser mais escura que a própria floresta.
Ela se aproximou, conjurei meus dons, eles não me responderam... Mais uma vez para variar.
Tentei me mover, gritar, chora... em vão.
Aquilo chegava cada vez mais perto e eu não conseguia mover um músculo sequer.
Imagens de todos que eu deixaria para trás começaram a passar e repassar repetidas vezes em minha mente. Havia prometido e lá estava eu, falhando novamente.
A criatura estava a menos de dez centímetros de meu rosto agora. Meu coração cocava-se cada vez mais forte contra meu peito. Minha respiração havia cessado.
E, em um ato impensado, talvez até mesmo instintivo, fechei meus olhos e simplesmente aguardei. Não contrai meu corpo, não gritei, não implorei como minha natureza humana mandava que o fizesse. Apenas... aguardei.
Nada. Nem dor, nem frio e nem sofrimento. — Exatamente nada aconteceu.
Voltei a abrir meus olhos, não havia mais um riacho, nem criatura ou qualquer outro vestígio de água pela frente. Apenas o aperto de meu bracelete me indicava que eu realmente ainda estava lá.
Respirando fundo, contendo pensamentos e xingamente que me condenariam eternamente, girei em meus calcanhares e segui rumo ao lado oposto, sentindo mais uma vez a serpente em meu antebraço se afrouxar.
Não demoraria muito para que eu ficasse louca, assim como Hellviel.
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Sétima Filha - Traída
FantasySegundo volume da série. Calyn foi traída, enganada e apunhalada por quem se entregou de corpo e alma. Nada mais faz sentido em sua vida e a única coisa que a mantém viva é a promessa de não abandonar aqueles que precisam de sua ajuda e, sua sede p...