Cecília
Na segunda à noite, estou na cozinha remexendo o molho na panela sobre o fogão. Não preciso ver pra fazer isso. Os outros sentidos são mais do que suficientes e eu posso ter certa independência cozinhando. Além disso, ter utensílios apropriados ajuda, e agradeço mentalmente à tia Laura por tê-los trazido de Orleans.
— O molho já está bom? — murmura tia Camila à minha esquerda.
Recolho um pouco do molho com a colher e coloco um pouco sobre a palma da mão. — Está muito bom.
— Ok. Desligue o fogo. A massa da lasanha ficou pronta e eu já a preparei. Agora você precisa colocar o molho sobre ela, tudo bem?
— Certo — murmuro, satisfeita.
— Ah, que delícia — diz Barbara na sala de jantar horas depois.
— Ficou muito boa — comenta tia Laura.
— Eu ajudei a fazer — digo, orgulhosa.
— Você se saiu muito bem. Na próxima semana vou te ensinar a fazer um escondidinho de carne.
— Hm. Isso soa perfeito — murmuro.
— Você tem se adaptado bem na escola? — Tia Laura inquere um tempo depois.
— Sim, estou gostando. Os professores são legais e eu já fiz alguns amigos.
— Ninguém anda te tratando mal, né?
— Hm, não. — É claro que não cito Priscila, ela não vale a pena. — Estou gostando da escola.
— Que bom. Eu transferiria você para outra escola na hora, se soubesse que algo estava errado. Mesmo que eu tivesse que pagar.
— Não precisa, de verdade. — Entro em pânico ao me imaginar longe do Bernardo. — Estou me dando bem na escola.
— Uma amiga minha me falou sobre uma fundação para deficientes visuais aqui perto. Cecília podia conciliar os estudos com as idas a esse lugar. As pessoas falam coisas maravilhosas sobre ele. O custo é pequeno — murmura tia Camila.
— Sério? Seria perfeito. — Tia Laura diz entusiasmada. — Isso soa bom para você, Cecília?
— Eu acharia ótimo — murmuro, animada. Penso nas amizades que posso fazer e coisas que posso aprender e a ideia é realmente perfeita. — Sinto falta da fundação de Orleans, mas estou muito satisfeita agora que sei que há uma aqui também.
— As matrículas ainda estão abertas? — questiona ela.
— Sim — diz tia Camila. — Ainda há vagas.
— Fico tão feliz com isso — murmura. — Estarei indo lá amanhã com Cecília.
***
— Você demorou — murmuro durante a madrugada. Estou deitada sobre o peito de Bernardo que acabou de chegar.
— Eu dormi demais e perdi a hora, desculpa — diz ele, acariciando meus ombros.
— Não precisa se desculpar. Entendo — desço pequenos beijos sobre sua bochecha e lábios antes de me aconchegar contra ele. — E seu pai?
— Ele está mais sóbrio. Não tem dado tanto problema como antes. Acho que finalmente está se tornando alguém decente.
— Eu aprecio isso, de verdade — murmuro. — As pessoas merecem uma segunda chance para mudar. Acho que ele finalmente viu que isso não estava lhe fazendo bem.
— Você tem razão. Ele tem até cozinhado e apesar da comida sair queimada algumas vezes... — murmura, divertido, e eu acabo rindo ao imaginar. — Ele tem se esforçado, pelo menos.
— Isso é maravilhoso.
Fico feliz pelo Bernardo. Apesar de tudo o que passou, sinto que ele se preocupa com o pai. Se não se preocupasse já teria ido embora há muito tempo.
— Você é muito linda. — Seus dedos calejados pressionam a minha bochecha.
— Obrigada. — Coro.
— Nunca pensei que conheceria alguém assim — murmura, enigmático. — Acho que eu não seria tão forte.
— O quê?
— Você não tem a visão e mesmo assim não imagina o pior da vida.
Não percebo julgamento na sua voz, apenas... surpresa.
— Ah, eu aprendi. Mas não foi fácil no início, principalmente me adaptar, já que eu enxergava antes.
— Como você perdeu a visão? — questiona, curioso.
— Bom... — hesito antes de falar. — Era um período comemorativo, não lembro muito bem. Eu estava voltando de um aniversário à noite na casa de uma coleguinha da escola. Meus pais estavam no carro e conversavam comigo que estava no banco de trás. Nós estávamos felizes.
Faço uma pequena pausa e sei que Bernardo está prestando total atenção. Seu abraço se torna mais firme e confortante.
— A velocidade do carro estava baixa, mas tudo foi muito rápido.
— O quê?
— Um carro entrou na contramão e acertou o carro em cheio. Os primeiros atingidos foram meus pais e depois eu lembro que a janela ao meu lado explodiu e o barulho foi assustador. Os cacos de vidro invadiram meus olhos e eu senti uma dor absurda antes de tudo ficar escuro.
— Merda. Eu sinto muito, princesa. — Bernardo murmura contra meus cabelos; a voz abismada. — Você tinha quantos anos?
— Seis — digo e ele fica subitamente tenso. — O motorista imprudente morreu e meus pais também não resistiram. Depois, tudo ficou pior quando eu soube que não poderia enxergar. Os danos tinham sido graves demais.
— Droga, eu sinto muito por você — murmura e meus olhos ardem antes dele beijar minha testa. — Você era tão pequena e sentiu uma dor dessas. Você é a garota mais forte que eu já vi. Na verdade, eu tenho orgulho de ter você.
Sorrio. Suas palavras são sinceras. Consigo sentir.
Eu o abraço tentando ter mais do seu calor. Acho que de certa forma nos completamos.
— Tia Laura me criou em Orleans e lá eu estudava em uma fundação para deficientes visuais. Aprendi muita coisa: como cozinhar, ler em Braille e me tornar mais independente.
— Isso é legal.
— Muito. Depois tia Laura me trouxe para cá e...
— Eu amo você! — Murmura de repente me deixando sem reação.
— O que você disse?
— Eu disse que amo você — diz ele, divertido. — E essa é a maior verdade que eu já falei.
— Eu também te amo. — Pareço uma boba chorando, mas não me importo.
Sentamos sobre a cama; minha cabeça contra o peito dele.
— Repete, por favor.
— Eu amo você — sussurra e eu juro que queria ver seu semblante ao dizer isso. Quase consigo imaginar seu olhar para mim.
— Eu também te amo, muito. E quero que você o diga outra vez.
— Eu te amo, Cecília — diz impaciente, mas eu sei que está se divertindo. — Só não me faz repetir essa baboseira romântica outra vez, por favor. Isso está ficando bem chato.
— Nossa, até pra fazer uma declaração de amor você é mal educado. — Bernardo dá risada e eu me aconchego mais contra ele; um belo sorriso no rosto. — Mas estou tão feliz. Eu te amo tanto.
— Isso é bom — murmura, convencido, me fazendo rir.
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Uma Luz Na Escuridão
RomanceCecília é cega. Anos depois de perder a visão e os pais em um terrível acidente de carro, ela se muda para uma bela cidade em Santa Catarina, conhecida pelo inverno rigoroso. Tudo está perfeito, até ele aparecer. O primeiro dia na nova escola acaba...