4 de março de 2047
"Quatro de março é um dia de luto, mas também de festa. Sua Alteza, o príncipe Enzo de Albuquerque comemora seu vigésimo aniversário. Esta será a primeira grande comemoração da família imperial depois de anos. Segundo a assessoria do Alvorada, a festa marca uma nova fase na vida do príncipe herdeiro na qual sua relação com o povo brasileiro ficará cada vez mais próxima. Foi montado todo um esquema de segurança para evitar novas tragédias como a de vinte anos atrás".
A televisão estava infestada de notícias sobre a bendita família e sua grande festa. Depois de mudar de canal umas sete vezes, aperto o botão de desliga para não começar a pesquisar "como entrar na tevê e matar os repórteres". Pensar que só estavam fazendo seu trabalho acalmava meus nervos.
Meu pai tinha saído com a esposa para resolver problemas no escritório. Com João e Pedro na escola, fiquei apenas na companhia de Nina, a empregada doméstica que trabalhava em tempo integral na mansão por seis dias na semana.
Vou à cozinha, ocupando-me de lavar a louça aproveitando que ela arrumava os quartos.
— Menina! — Pulo de susto quando Nina me surpreende. — Deixa aí que eu lavo. Você não devia tá se aprontando?
— Vou de três horas — respondo fechando a torneira.
— Já arrumou o cabelo?
Eu não tive a chance de responder que aquilo era o mínimo porque o interfone tocou e Nina se prontificou em atender.
— É pra você — fala e me passa o interfone.
— Alô?
— Você achou que eu ia te deixar se arrumar sozinha? — A voz um tanto estridente de Sabrina fala do outro lado da linha.
— Pode passar pro porteiro? — peço e ela o faz.
— Deixo ela entrar? — quis saber o porteiro com a voz cansada.
— Pode sim, seu Carlos, valeu.
Espero Sabrina chegar na frente da porta de entrada. A jovem surge trazendo uma mão a maleta que presumo ser de maquiagem e um cabide com o blazer na outra.
— É cada casão aqui que me sinto um pouco rica só de entrar.
— Pois é — abro a porta em convite.
— Porta de rico... — viro para ela e noto o brilho nos olhos, maravilhados com cada espaço da residência. Sabrina inspira o ar. — Tem aromatizador com cheiro de dinheiro?
— Dinheiro só cheira bem na conta. Já almoçou?
— Não, vim direto do salão. Olha como meu cabelo tá lindo.
Reparo no penteado e concordo com a cabeça. Almoçamos e depois subimos para nos preparar.
— O que acha de deixar o cabelo meio solto, prendendo de lado e jogando os cachos pro outro ombro?
Tento entender o que quis dizer com isso mas logo desisto e apenas concordo.
A escova percorre as ondas do meu cabelo, começando dos cachos largos nas pontas até chegar na raiz lisa. Os fios demonstravam as horas dedicadas a hidratação. Única parte da cabeça a qual eu me dava o trabalho de dar atenção extra.
Poderia carregar a pior cara, mas se meu cabelo estava legal. Eu estava legal.
— É, pode ser. Faz o que seu coração diz e no final veremos o resultado.
E ela seguiu o coração, quando terminou a maquiagem eu estava bem... legal, ou nos termos hiperbólicos de Sabrina: eu estava linda.
Fui ao closet vestir o uniforme e quando saí Sabrina também já estava pronta. Checo o relógio. Faltava pouco para as três da tarde, então me prontifiquei em levar as coisas dela para o carro.
— Fez o que eu disse na despedida de mamãe Ana?
Aperto os lábios, um pequeno nó forma na minha garganta apenas com a menção.
— Sim e não quero falar sobre isso.
— Tá, desculpa — diz levantando as mãos como se pedisse calma.
Ao chegarmos na galeria, subimos direto para o estúdio. Pegamos as caixas com o equipamento e organizamos perto da entrada.
Estou no meio de uma reverência quando batem na porta, ambas olhamos para quem está lá e vemos Maísa com um segurança. Graças ao fumê, nós os vemos mas eles não enxergam o interior. Eu me ajeito antes que Sabrina abra.
— Prontas, senhoritas? — Maísa nem espera a resposta. — Vamos.
Ela dá as costas e vai embora. Checo o horário ao pegar as coisas, eles eram pontuais. O segurança também pega uma das caixas e fecho o estúdio antes de irmos.
No caminho, Maísa reforça as regras "para evitarmos erros desnecessários". Eu já estava cansada de escutar a voz daquela mulher, repetindo o que eu sabia, quando finalmente chegamos na casa de recepções.
— Primeiro vocês capturam momentos aleatórios da festa. Por exemplo, a família imperial se divertindo e conversando com convidados.
Tento não chiar com Maísa ditando exatamente o meu trabalho e deixo que nos guie para o cenário montado num canto.
A casa era imensa. Grande o bastante para receber muitas pessoas. Gente importante que poderia limpar suas bundas com notas de dólares se assim desejassem.
— Aqui é onde vocês montarão seus equipamentos, fiquem à vontade para colocarem luzes e o que mais for preciso. Neste cenário faremos as fotos da família imperial. Caprichem nessas! — mandou, ficando mais séria de repente. — Depois podem parar pra comer, conversar e então voltem a tirar mais fotos.
Ela finalmente nos deixa e viro para Sabrina de modo que mais ninguém pudesse ver meu rosto. Faço careta e reviro os olhos, provocando uma risada na jovem.
— Você é podre — sussurra.
— Sou um anjo, agora ao trabalho.
Enquanto termino de acertar o foco da câmera, checar o enquadramento e prever a composição, Sabrina procura cadeiras.
— Descansa porque não vamos parar depois que começar, a não ser por alguns minutos — aviso.
— Sinto pena de você que faz a maior parte do trabalho, quem sabe eu até arrume tempo pra roubar comida.
— Só não esqueça que veio a trabalho. Não fiz maior esforço pra você vir e não me ajudar.
— Claro que não. É um olho na festa e outro aqui. — Sabrina apoia um braço no encosto ao virar para mim. — O que vai fazer com sua parte do dinheiro?
— Montar meu apê, garantir que a primeira noite não seja num colchão inflável. Não quero muita ajuda financeira do meu pai — dou de ombros. — O dinheiro da antiga casa vai dar uma mãozinha. Se sobrar, vou investir em mais equipamento. E você?
Eu duvidava muito que sobraria. Começar o financiamento levaria grande parte do dinheiro, comprar os móveis...
Tremi na base ao pensar na palavra que soava como salvação, mas ainda atormentava. Empréstimo.
— Festa, estética e roupas. Deveria gastar um pouco com festa também, você não sai de casa.
Tento não me ofender.
— Porque não gosto. Prefiro ficar em casa, dormir, assistir série, ler um li...
— Mas você perde muito tempo da sua vida presa dentro de casa. Precisa sair, ver gente. É divertido.
— Mas essa é a minha vida, Sabrina. Gosto do que faço, a rotina me faz bem, por que mudaria?
Qualquer coisa diferente de relações pessoais que poderiam acabar em feias discussões...
Distância de todos era a rotina perfeita. Na solidão ninguém briguento tiraria minha paz. Nunca mais sob meu domínio.
— Sai um pouco da zona de conforto. Vai envelhecer e ficar ranzinza desse jeito. Só um conselho, não tô te obrigando a nada... mas se precisar curtir a vida sabe meu número.
Ficamos caladas por um tempo até que ela parece se dar conta de algo.
— Faz quanto tempo que você não beija?!
— Quê? — pergunto de olhos arregalados.
— Beijar, quanto tempo não faz isso? Sabe o que é, né? Boca junto com boca, líng...
— Sei o que é um beijo, dá pra falar mais baixo? — Olho para os lados, envergonhada pelo tom alto no ambiente quase quieto. Em seguida admito: — Não lembro quando foi a última vez.
Provavelmente com meu único ex-namorado há uns dois anos. Algum ficante depois dele?
— Ou não lembra, ou é BV aos 19 anos.
Estreito os olhos com raiva verdadeira.
— Shhh, eu não sou... Quer saber? Se fosse, não seria de fato um problema e esse assunto encerra aqui.
Ela ri e se cala. Esfrego as têmporas. Já me arrependia de ter vindo.
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Princesa da Alvorada
RomanceO ano é 2047 e há 26 anos o Brasil deixou de ser uma república presidencialista para voltar ao sistema de monarquia parlamentarista, através de um plebiscito. Em pouco tempo do novo sistema de governo, um massacre acometeu a família imperial no mesm...