Capítulo 25

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  Talvez tivesse começado a pensar que ele era o homem dos meus sonhos e por isso teria as mesmas concepções que eu.
  Não o enviei mais nenhuma mensagem pelo resto do dia, chocada demais para fazê-lo. E na manhã seguinte, eu estava cansada, exausta, preguiçosa. Tudo.
  Amava trabalhar, mas a rotina começava a me cansar e eu não encontrava animação em ir ao trabalho nas últimas semanas. Precisava achar uma maneira de fugir um pouco do cotidiano de álbuns e aquilo gritava viagens ou passeios a lugares próximos.
  Cheguei no estúdio e cumprimentei Sabrina. Eu a deixara de fora sobre a última conversa com o príncipe e nem pretendia contar, então fui direto à sala conjugada. Continuei a pesquisa que fazia na tarde anterior antes de Enzo me interromper durante seu intervalo e peguei a agenda, listando os lugares que tinha encontrado.
  Estava numa ligação com uma cliente quando ele entrou na sala. Ergui a mão para que esperasse e o príncipe assentiu sentando na cadeira de frente para a mesa. Ainda ao telefone, me adiantei para pegar o álbum e entregá-lo. Enzo o pega e folheia.
  Eu queria conversar com ele, mas a cliente parecia tirar assuntos do bueiro e quando pude desligar, o jovem tinha terminado de olhar o álbum inteiro.
  — Obrigado. Ficou muito bom.
  — Não tem por que agradecer, é o meu trabalho.
  Ele dá de ombros.
  — Talvez eu esteja agradecendo a Deus por ter te encontrado.
  — Pare com isso — respondo séria e guardo o livro numa caixa de veludo.
  — Por quê? — Quis saber com um sorriso, mas então sua expressão se torna séria. — O que quis dizer com um tiro no estômago doeria menos?
  O óbvio?
  — Você ser contra a descriminalização do aborto.
  — Sim, tirando casos de estupro e risco para a mãe. Qual o problema nisso? Cada um tem sua opinião.
  — Eu sei. Acho que eu criei a ideia que você pensava exatamente como eu.
  — Tá me dizendo que é a favor em todo caso?
  Respondi com cautela:
  — Sim, eu sou.
  Ele se sobressalta.
  — Por quê? Isso é praticamente assassinato.
  — É um feto.
  — E a vida que ele poderia ter tido? Não é egoísmo a sua mãe decidir o que fazer com sua vida, sua oportunidade de viver e sentir as coisas que nós podemos, antes de ela começar?
  — Viver nesse mundo? Cheio de intriga, desigualdade, guerra e intolerância? E se a mãe não quisesse? Imagina se sentir rejeitado a vida toda? E se a mãe não tivesse condições de criar?
  Ele levanta uma palma aberta para cima.
  — Métodos contraceptivos e orfanatos existem, Joana.
  — Se adiantassem o problema seria extinto há décadas. — Rebato. — Nem todos os pais conversam isso os filhos quando entram na adolescência. A gente tem um histórico recente demais de educação sexual nas escolas pra ter resultados significativos. E você já pensou se viver num orfanato é tão bom assim? Se perguntar a vida toda por que seus pais te abandonaram, ou pior, não chegar a ser adotado e ter que se virar sozinho no mundo ao atingir a maioridade.
  — Os resultados da educação sexual são baixos, mas estão crescendo.
  Respiro fundo e balanço a cadeira para lá e para cá. Sacudo as mãos na altura das bochechas com as pontas dos dedos unidas.
  — Não é suficiente. Se os pais mal discutem isso em casa, quanto mais apoaim esse tipo de conversa nas salas de aula? Sabe o que ainda dizem? Que professores estão ensinando safadeza aos estudantes. O conteúdo acaba ficando por último, cogitado ser passado em sala de aula se der tempo no fim do ano.
  Enzo recosta na cadeira, me encarando com desafio. A mesa transformada em espaço de debate.
  — É claro que esse método demora pra obter bons resultados, mas dará em algum momento e sem precisar descriminalizar abortos pra isso.
  Debate que ficou caloroso. Levantei e espalmei as mãos na mesa. O controle da situação escorrendo pelos dedos.
  — Já parou pra pesquisar o índice de gestações interrompidas depois que a lei foi aprovada? Diminuiu bastante. Agora os métodos não são clandestinos e as mulheres que escolhem esse caminho, vão bem mais conscientes do que iam antes. Lembre que não só deixou de ser crime, mas passaram a oferecer apoio psicológico e explicar o mal que pode causar ao corpo. Se não fosse a lei, mulheres continuariam visitando essas clínicas e pior, continuariam morrendo. Já parou pra pensar na vida da mulher? No que ela teria de parar pra cuidar da criança?
  Ele também levantou da cadeira e ficou cara a cara comigo.
  — Então, ela nem deveria ter feito filhos em primeiro lugar.
  Solto um ruído de escárnio.
  — Ah, tá. Porque as mulheres são sempre as vilãs da situação. E porque o esperma vem delas. — Aponto-o com a cabeça. — É difícil pra você entender, não? Como homem e rico. Nasceu privilegiado, nunca passou um aperto. Ainda bem, o máximo que tive foi um lar infeliz. — Haviam tantas situações piores que a minha. — Mas há famílias e famílias. É difícil enxergar o mundo diferente do seu, né?
  O tom dele ficou levemente mais alto, Enzo parecia não acreditar nas minhas palavras.
  — Preferiria nem ter a chance de ver o mundo?
  — E daí se já pensei nisso? Era um feto, nem sabia o que significava mundo. Fui o acidente de uma noite, Enzo, e olha no que deu.
  Abro os braços para me indicar.
  — Você não é um acidente. — Ele fecha o punho devagar.
  — Meus pais teriam sido muito mais felizes e decididos se eu não tivesse no meio pra impedir uma separação logo cedo. — Ergo a palma aberta e balanço no ar. — Isso não é sobre mim. Ainda existe desinformação. Pessoas acham que abortar é crime, crianças em situação de rua ou pobreza pagam por isso. Assassinato é matar as pessoas de fome e frio. Você criaria as crianças depois que nascessem? Ajudaria mães solteiras e os filhos depois de serem abandonadas pelos maridos? Que tipo de auxílio efetivo vai criar pra isso?
  — Do que vocês estão falando?
  Sabrina levanta a voz na porta, nos viramos para ela apontando um para o outro e falando ao mesmo tempo:
  — Ele é contra o aborto.
  — Ela é a favor.
  Sabrina suspira e adentra a sala quase batendo os pés.
  — Sentem. — Obedecemos ao mesmo tempo. Cruzo os braços, olhando para todos os lados, menos os dois. — A lei já foi sancionada há quatro anos. Cada um tem sua opinião e faz bem escutarem a do outro, sem levantar a voz. Peçam desculpas e se abracem. — Permaneço sentada, esperando para ver se ele daria o primeiro passo. Sabrina solta uma risada. — Vocês parecem duas crianças emburradas. Peçam desculpas. Agora.
  Ela estava certa. Mas meu orgulho não me deixava dar um passo por nada, então Enzo se encarregou de levantar e vir até mim.
  — Desculpe — murmura.
  Apenas assinto.
  — Joana.
  Olho a assistente com raiva. Ela resiste.
  — Desculpa — respondo num tom seco.
  — Agora o abraço. — Relutante, deixo a cadeira e ela bufa. — Vamos, não tenho o dia todo.
  Passo o braço ao redor do tronco dele e falo em seu ouvido com os dentes trincados:
  — Quero enfiar uma faca em seu pescoço.
  — Eu sei que quer.
  — Bom, vou voltar aos meus afazeres. Se eu ouvir mais alguém gritando, chego aqui e vão ver o que é barraco de verdade.
  — A gente não tava gritan... — ela fecha a porta — do.
  Relanceio Enzo como se pudesse o fuzilar com o olhar, mas então a consciência pesa sobre mim.
  Havia perdido o controle da discussão e nem quis entender aquilo como opinião dele, que eu podia não compactuar, mas devia ouvir. Tínhamos visões diferentes do mundo, apesar de conectados e ligados em boa parte na realidade.
  Suspiro e deito a cabeça na mesa respirando fundo várias vezes, meu cérebro borbulhava. Reúno todas as forças para levantar de volta e falar encarando seus olhos.
  — Desculpa. — Levanto e ando até poder encostar na parte da frente da mesa. — Era pra ser um debate. Não sei o que deu em mim, sempre consigo conversar numa boa com as pessoas.
  — Eu te tiro do sério?
  Abro um pequeno sorriso quando ele segura minha mão e brinca de forma distraída.
  — Acho que sim.
  Um ruído parecido com risada sai da sua garganta e então silêncio cheio de reflexão.
  — Mas você tem um bom ponto — diz após um tempo.
  — Eu diria que mais racional.
  Arquejo quando me puxa rapidamente e caio no colo disponível. Passo o braço esquerdo ao seu redor e levo a mão direita à sua nuca. Encostamos as testas e fecho os olhos, apreciando o carinho de dedos na cintura. Retribuo as carícias no pescoço do príncipe.
  — Vou repensar o assunto — murmura.
  Balbucio um agradecimento e colo nossas bocas. Incapaz de ficar longe um segundo a mais.
  Ouvimos o barulho da porta abrindo. Rapidamente substituímos o beijo por um abraço e suspirei de alívio quando vi Sabrina no vão.
  — Essa foi a reconciliação mais rápida que já presenciei na vida. Como faz? Me ensinem.
  Depois de darmos risada, levanto e volto para minha cadeira. Vislumbro o rapaz que tentava esconder a decepção de ter sido interrompido.
  — Enzo, você sabe explicar?
  — Acho que algo flui bem quando as partes enxergam o erro e estão dispostas a pedir desculpas por cometê-los.
  — Concordo — respondo com um sorriso e encaro a assistente. — Algum problema?
  — Vocês são meu novo casal favorito... — reviro os olhos e ela continua: — Sua tia ligou.
  Franzo a sobrancelha.
  — Qual?
  — Tia não, prima... — ela se corrige e fico mais alerta. — Nada de muito ruim. Só disse que queria falar com você, não especificou... Eu menti que você tava conversando com um cliente e depois retornava.
  — Valeu, vou ligar pra ela agora.
  — Por nada.
  Achei que ela voltaria à recepção, porém se aproximou e sentou na cadeira ao lado de Enzo, encarando-o o tempo todo com diversão.
  Reprimo a vontade de rolar os olhos e pego o celular para chamar o número de Mariana pelo aplicativo. Aproximo o aparelho do ouvido esperando ela atender. Não aguardo muito até os tus terminarem.
  — Tia, quer falar comigo?
  — Sim, amor. Vou ser bem direta, tô sem tempo agora, mas quer passear comigo no Sertão do meu país?
  Fico confusa e torço o pescoço para frente de leve. De certa forma, eu sabia que não se referia ao país Brasil.
  — Hã? Tá?
  Os dois me encaram com expectativa. Giro a cadeira para a parede e pude ouvir sons de irritação que quase me fizeram rir.
  — Vou a trabalho gravar umas cenas lá e me perguntei se não ia querer tirar fotos. É um lugar massa, tem mui...
  Viro novamente para eles e encontro Sabrina cochichando algo no ouvido de Enzo que o faz rir e assentir olhando para mim. Semicerro os olhos e volto a concentrar no que minha prima dizia.
  — Combinado, quando será?
  — Lá pra julho ou agosto. Tu vem pra casa da tua mãe e no outro dia a gente pega estrada. Ficamos na casa de conhecidos por uns três ou quatro dias e depois voltamos pra Recife.
  Perfeito.
  — Claro. Obrigada, você é demais!
  E eu disse pra valer. Uma breve risada soa do outro lado da linha.
  — Vou indo. Sua mãe mandou um abraço.
  — Manda ela me ligar, parece que se esqueceu de mim.
  — Tá certo.
  Nos despedimos e espero até ela desligar a chamada para largar o celular e encarar os dois com um olhar inquisidor.
  — O que as margaridas tanto fofocavam?
  Sabrina tapa a boca de Enzo antes de responder:
  — Só perguntei se você beijava bem.
  — Você não existe, Sabrina.
  Ela me encara com esperteza.
  — Pelo menos agora você sabe que beija maravilhosamente bem.
  Sorrio quando encaro Enzo e o observo corar um pouco com a boca ainda tapada.
  — O que ela queria? — Sabrina quis saber.
  — Me convidar pra viajar.
  Enzo solta um som abafado e olhamos para ele. Sabrina percebe que ainda mantinha a mão sobre sua boca e a recolhe murmurando um pedido de desculpas. O príncipe as aceita antes de repetir:
  — Viajar pra onde?
  — Pernambuco, em algum lugar do Sertão. Uns três ou quatro dias. No meu caso, seis fora contando o tempo que fico na casa da minha mãe.
  — Quando? — Sabrina pergunta.
  — Nada definido, além de julho ou agosto.
  — Bom, pelo menos temos entre um a dois meses pra nos preparar.
  — Sabrina... está na hora de nos acostumarmos com isso.
  Ela pisca.
  — Por quê?
  Vislumbro as anotações de mais cedo.
  — Em breve vou começar a investir em viagens pra fotografar e fazer exposições delas.
  Enzo ouvia a conversa sem comentar nada.
  — Mas... e o estúdio?
  — Continuará aqui, só mudarei o foco.
  — Certo. Da próxima vez me mantenha informada, não joga a bomba e sai correndo, ok?
  — Ok.
  Sabrina levanta para sair da sala e espero que ela feche a porta e se afaste para comentar:
  — Saiba que faz um trabalho magnífico com a língua.
  Ele abre um sorrisinho e encosta na cadeira, pensativo.
  — Quer dizer que vai viajar cada vez mais a partir de agora.
  — Sim.
  — Certamente vou te ver com menos frequência.
  Inclino a cabeça para o lado.
  — Talvez... Eu ainda sou a sua fotógrafa oficial, mas diminuirei as vindas pra cá, sim.
  — Devo ficar triste por isso?
  — Claro que não. Não é como passar anos fora, só vou sair em alguma semana de alguns meses. — Explico, gesticulando. — A rotina tá me prendendo demais. Virou uma zona de conforto e eu não considero isso bom. Preciso sair, aproveitar o planeta enquanto ele ainda não acaba.
  — Então fico feliz por estar disposta a mudar isso.
  Tentei não sorrir muito largo.
  — Obrigada.
  — Eu te admiro, sabia? — Enzo levanta e contorna a mesa até chegar ao meu lado. Saio da cadeira e encosto na mesa. — Sua inteligência, organização, o espírito livre...
  Ele põe a mão em meu rosto e seguro no móvel para evitar cair. Como explicar o que ele fazia comigo?
  — Gosto da forma como vê o mundo, como considera tudo... me faz abrir a mente também. O que eu enxergava preto e branco, agora tem tons de azul, rosa, amarelo, vermelho...
  Ele não me dá tempo para raciocinar quando preenche o espaço entre nossos lábios. Passo a me apoiar nele para aproximar ainda mais. Se eu o fazia enxergar o mundo com várias cores, ele me fazia ver fogos de artifício.
  — Quando estiver fora, vou pensar em você a cada segundo e se não tiver pensando, estarei pensando nesse beijo.
  — Eu não sei o que dizer... — respondo tentando retomar o fôlego.
  — Não diga nada.
  E não disse mesmo, ele sequer me deixou falar... sempre que começava a pensar em algo, Enzo me beijava de novo e de novo.
  — Quem consegue fazer isso?
  — O quê? — pergunta, roçando a boca na minha.
  — Nós brigamos, pedimos desculpas e beijamos numa questão de o quê? Três horas?
  — Somos um casal estranho.
  Arqueio a sobrancelha.
  — Somos um casal?
  De verdade? Para valer? Meu coração galopava.
  — Você que me diz.
  — Sim, somos um casal. — Alargo o sorriso. — Um casal ultrassecreto.
  — Ultrassecreto?
  — Claro, é melhor. Precisa lembrar que ainda tem que casar com uma daquelas garotas e temos de concordar que quando algo é secreto, as chances de alguém estragar são mínimas.
  — Como eu disse... amo sua inteligência. — Solto uma risada e ele faz careta. — Podemos esquecer do meu casamento obrigatório enquanto estivermos juntos?
  Assinto veemente.
  — Por favor.
  Permanecemos lado a lado até tarde, quando tivemos outro beijo interrompido por Sabrina que fechou os olhos e gritou anunciando a hora de fechar. Ele quase se esqueceu do álbum mas eu o lembrei. Descemos todos juntos e cada um seguiu seu caminho.

Princesa da AlvoradaOnde histórias criam vida. Descubra agora