Acordo no final de tarde com os olhos vermelhos e uma dor de cabeça terrível.
Saio do quarto e dou uma olhada na minha mãe, ela continua dormindo.
Me aninho no sofá para assistir o telejornal abraçada a uma almofada.
O de sempre. Crimes, mudanças na economia, preparativos para o carnaval, expectativas do feriadão. Comerciais de cerveja e churrasco, mais carnaval, mais feriado. Anúncio alegre da Havaianas.Noto quando o celular dela recebe chamada sobre a prateleira do painel. A maioria das ligações fora de aplicativos eram sobre pacotes promocionais da operadora, mas... reconheço o DDD.
— Alô?
— Joana? — Reconheço a voz de tia Mari. — Cadê tua mãe?
— Ela tá... — Olho na direção do corredor. — dormindo.
— Ah, tá bom. Só liguei pra avisar que cheguei em Recife e tá tudo certo pra mudança.
— Certo, eu aviso. — Franzi a sobrancelha com curiosidade. — Mudança? Você vai voltar praí?
— Eu? Não, ela num te contou? — Ela faz uma pausa como se percebesse que, ao falar além da conta, havia acabado de iniciar a Terceira Guerra Mundial. — Vocês vem morar aqui. Ficarei uns dias pra ajudar a arrumar a casa antes de voltar pro Rio.
— É o quê?
Meu mundo desaba aos poucos. Eu não podia sair dali. Não enquanto minha vida estava se formando.
— Pensei que já soubesse.
— Não. — O tom sai mais amargo do que pretendo. — Mas tudo bem, eu dou o recado.
— Obrigada, você é um amor!
Quis chorar de raiva quando desligou. Nem para minha mãe ter dito os planos envolvendo nós duas. O que ela planejava quando eu rejeitasse? Me sequestrar?☆
Minha mãe surge no corredor e continuo sentada no sofá encarando a televisão. Se alguém perguntasse o que estava sendo transmitido, eu checaria a imagem e diria: tá passando isso aí.
Direciono um olhar de quem pede explicação no instante em que percebo sua presença.
— Ana. Eu não sabia que a senhora ia se mudar. Quando planejava contar a novidade? — pergunto juntando toda a paciência que ainda me resta.
— Olhe o tom que usa comigo — adverte. — Ia contar quando Mari tava aqui, mas tivemos aquele problema e esperei até você voltar.
— E se eu não voltasse? Simplesmente ia chegar lá e me chamar? Há quanto tempo tem planejado isso? Quando você vai?
— Não. — Ela hesita, mas responde a última pergunta: — Dia dois.
— O quê?! — Minha voz aumenta dois tons. — É em menos de um mês!
— Sei, mas preciso voltar pra lá.
— E por que não fez questão nem de me perguntar se era isso que eu queria?
Ela se apoia na parede.
— Porque você não me dava chance de uma conversa civilizada.
— E você não se mostrava interessada no que eu falava, nem demonstrava ter assunto.
— Tem certeza? Pois acho que tava muito ocupada no trabalho.
— Por quê? Por que só porque você é infeliz quer que eu também seja? — Minha voz afina.
— Eu nunca disse ou faria isso. — O ultraje a domina.
— Fazer algo que me deixa pra baixo já é o bastante. — Semicerro os olhos até quase fecharem. — Especialmente quando sabe qual seria minha reação.
— Mas não era isso que eu queria.
— Você também não queria que eu seguisse com fotografia e olha só aonde chegou, quando tô consolidando minha carreira aqui, você me vem com essa.
Ela contrai a boca.
— Pode ter uma carreira lá também. Com muitos lugares bonitos e público pra isso.
— Você não entendeu? Eu não quero! Minha vida é aqui, meu trabalho tá aqui e meu pai também.
Ela se cala e o rosto adquire um semblante de compreensão.
— Entendi. Quer ficar por conta dele. — Ela faz uma pausa para me analisar. — Se quer ser livre, precisa colocar suas asas pra voar. Mudar de vida, cidade...
— Eu nunca vou mudar se continuar me prendendo.
Grito como uma criança teimosa e corro para o quarto, batendo a porta ao passar. Ignoro seu aviso sobre a falta de respeito e, praticamente desesperada, pego o celular para chamar o meu pai.
— Pai — minha voz embarga no instante em que pronuncio a palavra.
— O que foi? — Seu tom soa preocupado diante do meu de quem começa a chorar.
— Deixa eu ir morar com você, por favor. Eu imploro. Por favor, deixa eu...
— Claro, mas consegue respirar e me explicar o que está acontecendo? — pede com preocupação crescente.
Desenrolo em palavras os eventos das últimas horas e na manhã de segunda eu ainda tremia ao enfiar minhas coisas onde coubessem.
Ainda restavam pertences antes de eu parar para tomar café da manhã, mas depois arrumaria caixas para transportá-los.
Odiava a ideia de partir e deixar minha mãe ali, mas também odiava pensar em conviver sob o mesmo teto que ela outro dia a mais. O clima estava claramente pesado na cozinha.
— O caminhão vem buscar a mudança dia dois e seguiremos no carro. A gente vai levar um pouco também, ainda bem que temos os dois car...
— Eu não vou com você.
Interrompo antes que terminasse o que dizia e ela para de lavar a louça se virando. O rosto contraído de dor parecia ser motivado por um soco no estômago.
— Por que não? — quis saber com cuidado.
— Porque como eu disse: meu pai e meu trabalho estão aqui. Dia quatro tenho um trabalho pra fazer e você sabe muito bem pra quem é. Já falei com meu pai e esses dias estou me mudando pra casa dele.
— E pretende morar a vida toda lá? Até parece que Suzane vai aceitar. Uma coisa é a filha do meu marido dormir uns dias, mas morar é totalmente diferente.
Dou de ombros com indiferença.
— Ela entenderá. E eu não disse que passaria a vida lá, é só enquanto junto dinheiro pra arranjar minha própria casa.
Ouço seu ruído irritante de escárnio.
— A vida é tão linda mesmo... — ironiza. — Fique com parte da venda dessa. Eu devia ter feito igual teus avós e deixar se virar, mas sou besta.
Contenho a pontada de dor e culpa com suas palavras disfarçando tapas, foco na esposa do meu pai.
— Você nem conhece ela direito pra tá falando assim. Suzane sempre me acolheu bem.
Ela estala a língua alto e impaciente, me dá as costas.
— Tá resolvido então. — Encerra o assunto. — Passo lá antes de ir embora pra me despedir.
Ou nas palavras que ela não escolheu dizer: passo lá antes de ir embora apenas para confirmar que meu aviso não foi equivocado.
Assinto e saio para escovar os dentes. Despeço-me antes de sair para o trabalho e ela só dá um aceno.
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Princesa da Alvorada
RomantizmO ano é 2047 e há 26 anos o Brasil deixou de ser uma república presidencialista para voltar ao sistema de monarquia parlamentarista, através de um plebiscito. Em pouco tempo do novo sistema de governo, um massacre acometeu a família imperial no mesm...