Capítulo 10

6 3 0
                                    

  A semana passou rápido apesar do trabalho no palácio. Passei algumas vezes no estúdio para ajudar Sabrina, embora tivessem sido poucas.
  Era tarde de sexta-feira quando terminei o último dia de fotos num piquenique com Enzo e a mãe. O imperador Rubens não se fazia muito presente nos momentos em família e eu sentia que isso acontecia sempre.
  Os dois se divertiram tanto juntos – e a mim no processo. Com o pouco que contou de sua infância, me peguei um pouco triste imaginando se não era um filho querendo recuperar o tempo perdido com a mãe.

  Enzo me acompanhou no caminho de volta até onde o carro me buscaria. Melissa ficou no mesmo canto apreciando a vista do lago e o que sobrou do lanche.
 

— Obrigado por se dedicar a esse trabalho. Acredito que precisou abrir mão de outros já encaminhados.
  Opto por ser sincera.
  — Eu tive, mas pra isso contratei uma assistente. Ela tá terminando na minha ausência.
  — Ah, muito bom. Vejo você na semana que vem?
  Não sei se ficava feliz ou triste por negar. Ele nem era má companhia.
  — Sobre o álbum... — começo e travo ligeiramente quando cruzamos o olhar, incapaz de focar em qualquer coisa. Desvio os olhos para o chão. — É que eu arrumei uma viagem de última hora pra semana que vem — explico e acrescento antes que ele tenha a oportunidade de se preocupar com o tempo perdido: — Deixarei boa parte dele pronta antes de partir e termino quando voltar.
  Enfim, retomo o fôlego ao fechar a boca.
  — Sem problema. Divirta-se e esqueça por um momento disso tudo, acho que a senhorita precisa mesmo.
  Encaro-o sem entender. De todas, aquela era a última reação que esperava. Mais uma pessoa para palpitar sobre minha disposição em me manter ativa.
  As pessoas não entendiam que a fotografia era o que tornava minha vida, no mínimo, interessante.
  — Todas as vezes que te encontrei, você estava trabalhando ou tinha algo pra fazer. — Explica. — Isso num intervalo de duas semanas.
  Abro um sorriso de zombaria, não era como se eu vivesse nessa correria...
  O meu sorriso some.
  — Talvez eu me ocupe um pouquinho demais com o trabalho.
  — Um pouquinho? — ele ri e eu o acompanho.
  Seguro a vontade de replicar: o que posso fazer se procuro algo de útil para mim enquanto vocês políticos sentem prazer em sentar a bunda o dia inteiro fazendo nada além de aprovar leis que só prejudicam o povo?
  — Você é sempre muito observador? — questiono.
  — Quase sempre. Hoje estou bastante. Por exemplo, sei que minha mãe não quer voltar agora pra não ter que encarar o Rubens e seu temperamento difícil.
  Ele estava mesmo me confidenciando aquela fofoca? Não que eu saísse espalhando, era a fofoqueira que ouvia sem espalhar, mas...
  Contei tanta coisa da minha vida, aquilo não era nada comparado. Apenas um fato que a maioria das famílias tinham. No fim, estávamos quites.
  — Pensei que ela só estivesse lá pra fugir um pouco das responsabilidades.
  Seria o tipo de coisa que eu faria.
  — Também, mas é muito mais por causa dele.
  — Lamento por isso.
  Pelo menos me aliviava o fato de não ser eu a estar contando sobre o funcionamento da minha família.
  — Ela aceitou isso — dá de ombros.
  Sinto o rosto torcer de leve. Odiava a ideia de decidir algo e precisar levá-la ao túmulo.
  As pessoas viviam mudando, porque toda a pouca aceitação com voltar atrás?
  — Como pode falar que ela aceitou uma vida assim? Não faz sentido. — Balanço a cabeça. — E se ela desfazer essa escolha?
  O príncipe parou e olhou para o caminho pelo qual acabamos de vir.
  — Eu já tentei mudar as coisas. — E claramente não conseguiu nada. O príncipe me encara com a resposta para a segunda pergunta na língua: — Meio difícil, além disso a escolha não foi dela.
  — Mas... — Abaixo um pouco a voz, mesmo sabendo que ninguém estava próximo. — Ela é a imperatriz e casou com o seu pai. O que tinha mais direito sobre o trono do que seu padrasto.
  Não era tão difícil de compreender.

  — Por mais que as mulheres tenham conquistado muito, é terrível notar que ainda há esse bloqueio. Principalmente na política. Minha mãe acreditava que a geração dela mudaria isso de vez, mas... — ele parece envergonhado ao admitir: — Homens se protegem até nos piores casos. O poder de Rubens se sobrepõe ao dela agora, a minoria acredita no potencial da minha mãe, mas os aliados dele tem mais força.
  Quis gritar incontáveis palavrões. Era a mais pura verdade.
  — Se bem me lembro, só tivemos uma mulher na presidência antes de vocês voltarem. Minha mãe disse que fizeram muito pior com o país desde então, mas só tiraram ela. — Um silêncio prolongado se faz e solto um suspiro voltando a pensar nas coisas que acabou de me dizer. — Espero que isso não persista por muito tempo.
  — Eu também. — Um leve exalar antes de ele prosseguir: — Felizmente, apesar de toda a dificuldade, os tempos mudaram bastante e nem todos pensam da maneira conservadora como os do parlamento.
  Ainda bem. Abro um sorriso genuíno.
  — Você é um desses?
  — Claro.
  Mantenho o sorriso de lábios no rosto por tempo suficiente para parecer uma aprovação. Então sumo com ele sacudindo a cabeça.
  — Não se atreva a fazer propaganda pra mim.
  Seu semblante transparece a contrariedade, mas Enzo se diverte.
  — Preciso vender meu peixe.
  — Pagando de bom moço? — Volto a caminhar soltando um ruído zombeteiro. Enzo vem no encalço achando graça da resposta: — Você acha mesmo que eu, Joana Medeiros, acredito nessa ladainha de político? Meus avós me passaram experiência demais pra isso.
  Os pais da minha mãe eram da política e me ensinaram o que puderam antes de falecerem.
  Nós paramos no ponto de espera e observo a calçada onde ficavam os visitantes ao longe. O mesmo lugar do qual tirei fotos há semanas.
  — Confio na senhorita, mas o álbum está em um lugar seguro, certo? — muda de assunto.
  — Num cofre, literalmente. Eu não me arriscaria em deixá-lo tão desprotegido com dois irmãos pouco amadurecidos.
  — Agradeço o esforço. Você é a mais velha?
  — Sim. Um é filho do meu pai e outro de Suzane.
  — Entendi. A senhorita tem sorte.
  — Como assim?
  Volto meus olhos para os dele. O carro chega e fico parada esperando sua resposta.
  — Seus pais chegaram a um acordo e você teve liberdade pra fazer suas escolhas — explica rapidamente. — É isso, tenha uma boa viagem.
  Enzo abre a porta, tirando a necessidade do motorista que acabara de abrir a própria para vir até nós. O homem acaba saindo alegando precisar ir ao banheiro. Entro com a sensação de ter uma pulga atrás da orelha.
  Olho o príncipe através da janela fechada aproveitando que não me via graças ao vidro fumê. Penso em abaixar o vidro para me despedir, no entanto, quando aproximo o dedo do botão, Enzo parece lembrar de algo e dá a volta por trás. Sigo-o com o olhar e me assusto quando adentra o carro.
  — Vou pegar uma carona se não se importa. Preciso passar em um lugar.
  — Imagina. — Abro e fecho a boca, ponderando entre tirar minha dúvida ou não. — Vossa Alteza nunca escolhe nada?
  Retorno à conversa anterior e ele logo entende.
  — Preços que herdeiros pagam, por mais que odeiem. Tudo o que faço é monitorado por outros para evitar polêmicas. — Conta e analiso todos os nossos encontros pensando se seus movimentos foram sempre calculados.
  Eu não me sentia bem pensando que até durante aquele momento o rapaz pudesse estar se autoregulando. Quem sabe o motorista estivesse de olho para repassar. Tudo o que eu vi não era Enzo de verdade? Exatamente quais partes eram ditadas? Bom, considerando que ele estava me vendendo uma imagem de bom moço até minutos atrás...
  Antes que eu pudesse enlouquecer com todas as perguntas e análises sobre o rapaz, ele seguiu falando:
  — Tive apenas uma irmã, mas nenhuma coragem de passar tanta responsabilidade pra ela quando Bea não deseja. Além disso, sou a única lembrança que o meu pai deixou ao país junto de seus feitos.
  Fico em silêncio pensando não ser muito fã do que aprendi sobre certos feitos de Dom Luís até que a pulga volta.
  — Qual é seu nome? — Ele olha na minha direção sem entender a pergunta e reformulo: — Completo. Qual é seu nome completo?
  — Ah, é Enzo de Albuquerque.
  A Casa Imperial do pai dele era Orleãs e Bragança. Pensar nisso só aumenta a dúvida ainda mais.
  — Não entendo. Se Vossa Alteza é a lembrança do antigo imperador, então por que não leva o sobrenome dele?
  O motorista entra no carro e olho em sua direção por um breve momento. Ele espera em silêncio a ordem do príncipe.
  — Deixe primeiro a moça e depois digo para onde vamos.
  Um segredo para proteger a integridade dele evitando que eu espalhasse sua localização ou nada demais?
  O motorista assente e Enzo coloca o cinto de segurança, o que me faz lembrar de pôr o meu. O príncipe se vira para mim quando o motorista dá partida e passa um tempo observando a paisagem da minha janela antes de responder:
  — Eu não sei, de verdade. Nunca cheguei a questionar por que me registraram apenas com o sobrenome dela. Desse jeito parece até que ele é meu pai, por serem da mesma família. — Melissa e Rubens eram primos distantes. Eu lera certa vez na internet a polêmica que havia sido na época, mesmo com graus de diferença. — Às vezes queria que ela tivesse colocado o sobrenome do meu pai, para lembrar que não sou filho dele.
  — Ah. — É tudo que consigo responder depois de me deparar com uma versão meio melancólica dele. — Vai ver ela queria esquecer da dor de perder o seu pai e como não tinha te registrado aproveitou para... Sei lá, quem sabe recomeçar.
  Falo na tentativa de reconfortá-lo, mas ao transformar o pensamento em palavras, eu não sentia algo concreto.
  — Recomeçar com aquele homem? — solta em tom de deboche — Acredito que somos nós que escolhemos um recomeço, não os outros que impõem.
  Minha curiosidade acerca dos podres escondidos daquela família aumenta. Eu era como uma turista que passa por um lugar e aprecia a bela vista sem conhecer a sua história.
  Olho para o motorista pelo retrovisor e ele mantém os olhos na via, mas desconfio que seus ouvidos estão bem abertos. Volto a observar Enzo e dessa vez, ele encara a própria janela, suspirando antes de voltar a falar.
  — Como eu disse, apesar de as mulheres terem conquistado muito ainda existe um tabu, que atingiu minha mãe em cheio. Ela teve que aceitar um marido para não perder o trono que meu pai lutou pra manter.
  Então o casamento deles não era baseado no amor, isso eu já imaginava. Só não sabia que era assim desde o começo.
  Lamento em silêncio mais uma vez pela imperatriz, não sei se desejava uma vida daquela. Agradeço mentalmente por minha mãe não ser literalmente uma rainha. Eu já teria perdido a cabeça, especialmente se ela fosse fã de guilhotinas.
  Em silêncio me dou conta de que o príncipe devia confiar em mim o bastante para me confidenciar essas coisas. Antes que eu me deixe iludir por isso, lembro que o motorista também ouviu. E tudo era um movimento calculado.
  — O senhor gosta daqui? — tento puxar assunto para quebrar o silêncio desconfortável.
  — Sim. Embora que por mim viajaria pelo mundo todo em um barco.
  — Barco? — aperto o nariz. — Aposto que ficaria enjoada a maior parte do trajeto.
  — Acostuma — dá de ombros. — Como faria se quisesse viajar o mundo?
  — Avião. Apesar de ser chato, é rápido. Eu desembarcaria e pegaria um carro. Se fosse na Europa, andava a pé e usaria transporte público dependendo do lugar.
  — Já viajou ao exterior?
  — Fui na Disney.
  Ele junta as palmas da mão, levando para perto do pescoço, o rosto ilumina de leve. Imaginei que eu parecesse um filhote felpudo naquele exato momento.
  — Que princesinha. — Brinca e abro um sorriso tímido. — Visitei algumas vezes, mas na maioria delas com uma dúzia de fotógrafos acompanhando cada passo. É cansativo até quando você quer relaxar.
  Eu realmente não queria essa vida.
  — Alguns fotógrafos são das trevas. Costumo dizer que sou da luz. — É a minha vez de dar de ombros. — No fim, é tudo trabalho e digno.
  Ele ri da comparação e o motorista se remexe no banco aproveitando que estávamos em linha reta, com poucos veículos para se atentar.
  — Com certeza, a senhorita é da luz. Mas por curiosidade... conhece algum das trevas?
  — A minha assistente. Ultimamente ela tem tirado algumas fotos minhas em momentos pessoais... acho que preciso converter ela pra luz qualquer dia desses, como uma boa fotógrafa.
  Eu falava como se a Fotografia fosse um reino mágico de fadas.
  — Como aquela que está no meu álbum?
  Ele se refere a foto com meu primo e coro levemente com a lembrança da imagem.
  — É. Ela andou tirando outras, vou começar a não dar minha câmera pra ela segurar.
  — Por quê? Na verdade, você é uma ótima modelo.
  Quando ele falou isso foi o suficiente para eu ter que virar meu rosto para a janela, totalmente envergonhada.
  Será se posso mandar uma mensagem para o meu irmão pedindo que ligue e diga que meu pai me quer às sete em casa?
  — Obrigada — digo e levo uns segundos para continuar. — Não gosto de ser fotografada.
  — Somos dois. Não é à toa que na maioria das vezes saio disfarçado. Ou apenas fico em casa.
  Rio com a ideia de disfarce dele. Aprendeu na escola Clark Kent.
  — O que foi?
  — Desculpa, mas se sua ideia de disfarce é um óculos de sol...
  — Você nem me reconheceu — me interrompe para se defender.
  — Eu nem ligava muito pra sua família.
  Vejo uma sobrancelha do jovem arquear.
  — E agora, liga?
  Solto o ar.
  — É claro! Como eu ia trabalhar com vocês mal sabendo os seus nomes? — Levanto o indicador. — Pra ter uma ideia, tive que reaprender os pronomes de tratamento.
  O príncipe pareceu não acreditar.
  — Espera aí, isso é sério?
  Assinto e olho para o retrovisor flagrando um olhar de divertimento do motorista.
  — Jesus, por isso que não entendi quando você não me reconheceu. Eu me preocupei à toa.
  — Você se preocupou? Com o quê?
  — Sim, quando vi que tinha parado uma pessoa jovem, achei que ia surtar e pedir foto e quem sabe até espalhar que não sei trocar pneus.
  Não me controlo e gargalho dentro do carro. Por sorte, Enzo não me deixa rir sozinha.
  — De fato, contei pra minha assistente que tinha ajudado um rapaz que não sabia trocar pneus — respondo tentando controlar a respiração. — Ah, hoje ela sabe quem era.
  Ele murcha com um ligeiro estremecer, mas se recompõe rapidamente.
  — Imaginei. A sorte estava ao meu lado naquele dia, recebi ajuda de uma pessoa que não me conhecia e ainda aprendi a trocar pneu.
  — Realmente. Tava ali fazia muito tempo?
  — Não, apenas o suficiente pra desistir de tentar algo e pedir ajuda. Pode crer, levou pouco tempo.
  — Acredito em destino, já saí um pouco tarde naquele dia e poderia ter decidido ir pela rodovia ao invés da pista local. E antes daquilo, já tinha aceitado trabalhar em sua festa.
  O rapaz coça o queixo.
  — Poxa... tem coisas que não dá pra negar, eram para acontecer.
  — O que tava fazendo por aquelas bandas de manhã, aliás?
  — Queria passear por aí. Sozinho. Esquecer que estava prestes a completar vinte anos.
  — Você é velho — caçoo olhando para ele. A única sobrancelha volta a erguer.
  — Velho? Quantos anos você tem?
  — Isso não vem ao caso.
  Desvio o olhar para a avenida novamente.
  — Sinto muito, senhorita... vem sim.
  Estalo a língua desanimada.
  — Faço vinte em setembro.
  — Tão novinha... tem idade pra ser minha filha.
  — Deus me livre.
  — Por quê? — indaga, levando a mão ao peito como se tivesse sido ofendido. — Eu seria o melhor pai do mundo.
  — Eu já sabia que amo o meu pai, mas descobri que eu amo a minha mãe e viver no quase anonimato, senhor Ego Inflado.
  O ar escapa de seus pulmões numa risada entrecortada.
  — Senhor Ego Inflado? Eu poderia te levar pra guilhotina por isso — brinca.
  Acho irônico eu ter pensado naquilo há apenas alguns minutos.
  — Você não poderia e não estamos na França do século dezoito, Alteza — rebato, desdenhando do título. — Se tem uma coisa que entendo, é de História. Por isso não caio em politicagem.
  Se o leve deboche o ofendeu, ele não demonstrou e duvidava que importasse de fato. Ficou claro que eu brincava.

  — Percebi, História não era minha matéria favorita no colégio. — Me impressiono com a facilidade de saltar entre assuntos, entretanto tento não transparecer conforme continua: — Acredito que seja porque me via obrigado a estudar aquilo e por me lembrar as futuras responsabilidades.
 

— Provavelmente. Mas se História não era a sua favorita, qual era?
  — Eu gostava de Matemática e Geografia.
  — Geografia eu gosto, mas Matemática? Tá repreendido em nome de Jesus Cristo, amém.
  — Matemática é fácil e legal de se estudar quando você pega jeito.
  — Levei mais de dez anos da minha vida tentando gostar de Matemática, não deu muito certo.
  — E ainda assim precisa lidar com as finanças do estúdio.
  Fecho a cara.
  — É outra história.
  Um segundo depois voltei a abrir e anuviar minha expressão.
  — Matemática é uma matéria que você passa a gostar quando tem as pessoas certas pra te ensinar. Se o professor é chato ou ruim de explicar, não ajuda muito. Meu professor era ótimo.
  Querido, com o dinheiro que você tem se eu não gostasse do professor, demitia e contratava outro mesmo que levasse a vida toda para encontrar o professor perfeito, penso.
  — Ou talvez eu nem me esforçasse em gostar da matéria — sugiro. — Quem sabe meu santo não bateu com o dela.
  Enzo sorri.
  — Isso também.
  O carro volta a ficar em silêncio e percebo nossa proximidade do estúdio. Suspiro, finalmente entraria de quase-férias.
  — Você é cristã?
  A pergunta me pega de surpresa.
  — Eu? — Recebo um aceno de resposta e me repreendo por ter dispensado a obviedade. — Mais ou menos. Nunca aderi uma religião. — Inclino a cabeça de lado. — Diria que a minha crença é uma mistura de várias religiões e o cristianismo entra nela.
  A oficial do Brasil era o catolicismo e segundo a Constituição de 2022, todas as outras deveriam ser toleradas. Mais uma vez, a lei ficava apenas na teoria.
  — Sou católico, você deve saber.
  — Isso, eu sei — aponto o dedo para ele e volto a olhar pela janela, arrancando-lhe outro sorriso.
  Seu sorriso era tão bonito que eu poderia fazer um mural com apenas recortes dele em qualquer fotografia que aparecesse.
  Tomo coragem para fazer uma pergunta, aproveitando a proximidade do estúdio.
  — Alteza... — Espero sua demonstração de estar atento. — Disse que te monitoram o tempo todo, mas e aqui... você se autorregula aqui quando conversamos?
  O semblante dele muda. Fica sem reação. Por um momento achei que fosse um robô e a bateria tivesse acabado. Enzo pisca e balança a cabeça devagar.
  — Não — responde simples e mais baixo que o tom anterior. Ele recupera a voz. — Não estou.
  Eu vi honestidade nos olhos castanhos e assenti satisfeita. Solto um agradecimento baixo e foco na paisagem.
  Depois de um tempo em silêncio, o carro chega à galeria e me preparo para descer, tirando o cinto.
  — Foi bom conversar com o senhor, porém é a minha hora de ir.
  — Tchau. Pela última vez hoje, juro. Te desejo boa viagem.
  — Obrigada. Bom trabalho e até a próxima.
  — Até.
  Desço do carro carregando a mochila com o equipamento e olho em direção às escadas que vão levam ao meu estúdio. Por um segundo me bate uma preguiça, mas resolvo subi-las.
  Olho para o estacionamento da porta do estúdio, o carro já tinha ido. Adentro o espaço e organizo as coisas antes de sair escolhendo duas câmeras para a viagem.
  Encosto na saída antes de ir e observo a sala de espera organizada com uma pitada de orgulho.
  Claro que tive grande ajuda, mas me mostrei capaz de mantê-lo e agora alcançava níveis que nunca imaginei possível. Não com poucos anos no mercado.
  Orgulho como nunca senti, aflorava sob minha pele e agradeci a sensação.
  O príncipe estava certo quando dizia que eu precisava de descanso, mas minha mente já levava por outro lado, merecia o recesso.

Princesa da AlvoradaOnde histórias criam vida. Descubra agora