Capítulo 19

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  Nossos corpos estavam secos quando entramos no empresarial, porém as roupas e cabelos continuavam úmidos. Apertei o passo para chegar no balcão da recepção.
  — Oi, sou filha do Hugo Medeiros... ele tá por aqui?
  Apresento a identidade pelo aplicativo e gesticulo para Bruno fazer o mesmo.
  — Só um momento. — A recepcionista troca umas palavras no interfone, verificando os documentos e fala para mim, sorrindo: — Rayane vai levar vocês no oitavo andar.
  Ela indica a jovem um pouco mais nova que eu, de pé próxima ao corredor que dava para os elevadores. Chamo o rapaz com um movimento de mão e ando em direção à jovem. Ela nos espera de mãos atadas carregando um sorriso simpático no rosto, semelhante ao da recepcionista.
  Nós nos cumprimentamos e entramos no elevador quando ele chega ao térreo. Dou uma olhada no espelho e Bruno me encara por ele. Aponto a cabeça para seu reflexo como se perguntasse o que tinha sido e recebo um balançar negativo da cabeça. Não paramos um segundo ao chegar no oitavo andar.
  De novo, guardas estavam a postos do lado de fora da porta e meu coração acelera com a possibilidade de Enzo estar lá dentro.
  — O que exatamente é esse compromisso? — Bruno cochicha ao meu lado.
  — Meio que tô servindo de modelo pra linha da minha madrasta ultimamente. É isso que eu vim fazer hoje. — Explico no mesmo tom. — Vou pedir pra meu pai te levar no restaurante enquanto eu tiver lá.
  O roncar no estômago reclama a falta do almoço e afasto o pensamento para evitar o mau humor.
  — Seu pai? — Pergunta com uma careta. — Ele sabe sobre nós?
  — Só minha mãe. Não cometa a burrada de falar algo pra ele... por favor.
  — Como quiser.
  As portas do estúdio abrem e procuro por Suzane ao adentrar. Encontro-a no canto acompanhada pela imperatriz e seus dois herdeiros. Droga, droga, droga!
  Meu olhar cruza com o de Enzo no exato momento em que vislumbro a direção deles. A estilista se levanta rápido e olha de mim para Bruno. Eu sabia que queria decifrar quem era aquele amigo.
  — Jô, onde você estava? Eu já tava morta de preocupação!
  Contenho o retorcer de lábios.
  — Desculpa, ele parou pra tirar foto até das calçadas. — Minto e Bruno se remexe atrás de mim tentando segurar a risada. Luto contra a vontade de lhe dar um coice. — Eu tentei ligar mas você não atendeu. Meu pai tá aqui?
  — Ele está no sexto, já deve chegar.
  Uma mulher se aproxima trazendo toalhas e me ajuda a sair da jaqueta. Pego a toalha para tentar secar mais o cabelo e meu pai entra no estúdio. Vindo diretamente para mim e me abraçando.
  — Eu disse que ela vinha. — Comenta e eu abro um sorriso. — Minha filha cumpre a palavra.
  — Ah, com certeza. — Bruno solta, tossindo para disfarçar e eu o fuzilo com o olhar. Ele mostra o celular. — Foi com Renan.
  Uma mentira descarada. Meu pai observa o rapaz e sorri para Bruno.
  — Recifense, não dá pra negar com esse sotaque.
  Ponho-me entre os dois.
  — Pai, você pode levar esta bendita criatura pra almoçar? — falo antes que Bruno dissesse algo.
  — Claro, mas eu trabalho com nomes, querida. Você sabe disso.
  Reviro os olhos e respondo:
  — Bruno.
  — Moura, senhor. — Completa e olha para mim. — Bruno Moura.
  Sacudo a cabeça e os deixo conversando. Exalo o ar pela boca devagar e murmuro:
  — Como não matar alguém em cinco horas.
  Volto-me para Suzane e seus convidados, cumprimentando os outros.
  — Desculpem o atraso. — Sento no sofá e peço licença para pegar uma barrinha de cereal na mesinha. Abro a embalagem e encaro Enzo antes de dar a primeira mordida. Sorrio e saúdo: — Oi, migo.
  Seu rosto ilumina quando finalmente lhe dirijo a palavra. Alguma parte do meu estômago vibrou com aquela reação.
  — Olá, como vai?
  — Perfeitamente bem e você?
  — Vou bem.
  A mãe dele assiste à cena com um sorriso contido mas alegre, já Beatriz me encara com uma expressão severa. Não me deixo intimidar, não rodeada de pessoas que eu gostava.
  A princesa vestia o roupão que cobre a roupa e seu rosto estava maquiado. Ela provavelmente queria me matar mais ainda por conta da demora.
  — Jô, a Ângela tá no camarim. Quando terminar de comer vai lá, vamos começar com as outras primeiro.
  — Claro. — Respondo e paro por um instante. — As outras?
  Um acenar de cabeça e como se ouvisse minha pergunta, a porta do camarim abre para uma fileira de modelos.
  Distante do padrão de Beatriz e Joyce, as garotas eram de todas as etnias, tamanhos, características únicas e comuns. Foi impossível não segurar a animação. Embora todas fossem profissionais, não eram da "perfeição" estética das duas modelos que conheci e nada disso lhes tirava a beleza.
  As garotas se ajeitam para começar. Engulo o último pedaço, fazendo careta de dor quando ele passa arranhando as paredes da garganta e esôfago. Enzo segura uma risada e eu levanto da poltrona.
  — Até já.
  Cumprimento as outras meninas ao passar e abro a porta do camarim. Ângela esperava deitada num sofá. Ela se prontifica e gesticula para as roupas que eu deveria vestir no instante que me vê.
  — Finalmente.
  — Tava fazendo bico de guia turística.
  Ela assente e entro no vestiário. Troco as roupas ainda úmidas pelo conjunto para as primeiras fotos. Sentei na cadeira e calcei o salto plataforma conforme ela seca meu cabelo. Escovo os dentes antes da maquiagem e em trinta minutos eu voltava ao estúdio.
  Suzane aplaudiu a nós duas quando aparecemos. A princesa estava sob os holofotes posando e o grupo à espera observava da lateral. Algumas pareciam nervosas.
  — Esse foi um recorde de tempo, meninas. — Alguns olhos pousaram em nós. — Entre na fila, Joana.
  Faço o que manda e troco um olhar com a garota na minha frente. Uma jovem albina que me ofereceu um sorriso pequeno e tenso.
  — Nervosa? — eu quis saber.
  — Primeiro trabalho para um público grande — admite. — Medo de sair péssimo.
  — Só fiz isso duas vezes na vida e tava a um passo de comer os dedos. O mais próximo que cheguei antes foi atrás da câmera. — Dou de ombros. — No fim, me diverti e deu tudo certo. Talvez eu tenha esquecido como faz e me contenha no início, mas assim que me sentir à vontade, as coisas vão melhorar.
  — Fingir que esse trabalho é algo bem conhecido ajuda?
  — Tô disposta a tentar e você? — Ela fica pensativa. Olho por cima do seu ombro. — Sua vez.
  — Obrigada. Sou Cristal.
  — Joana.
  A garota dá um pequeno aceno com a mão e segue em frente. Como as demais, ela foi perfeita.
  Beatriz passa por mim, o nariz empinado e não desvio o olhar da modelo posando. Entro no cenário ao mesmo tempo que Cristal sai. Ela sussurra um deu certo ao cruzar comigo e sorrio em resposta.
  Com as dicas que Joyce dera na última vez, foi mais fácil posar sozinha. Um pouco de timidez no começo, mas na terceira foto eu estava mais solta.
  Tantas idas e vindas, trocando roupas e tirando fotos me cansaram. Segurei a risada flagrando meninas cochichando sobre o belo príncipe ou comentando comigo em quase todas as conversas que tive com elas. O diálogo mudava na presença de Beatriz e a princesa se mantinha distante. Todas eram tão legais que desejei passar o dia conversando com elas.
  Num momento apenas eu e Beatriz permanecemos no camarim. O clima desconfortável tomou posse e aumentou quando as maquiadoras resolveram sair todas ao mesmo tempo. Pego meu celular a fim de mandar mensagem para Bruno.
  — Ele fica mais feliz quando tá com você. — A princesa quebra o silêncio pairando sobre nós. — O meu irmão. Ele pensa que não sabemos aonde vai durante a semana, mas já está óbvio.
  Meu coração acelera e luto para manter a expressão serena. Fico desconcertada diante da risadinha que ela solta.
  — Eu nunca vi Enzo assim antes. Passo por ele em casa e o pego assobiando. Percebi isso desde que cheguei. Eu sabia que tinha algo de diferente e queria descobrir o quê. Hoje encontrei minha resposta.
  Pisco e levanto as sobrancelhas.
  — Por essa eu não esperava. — Comento em voz baixa e tento me conter mas o filtro não funciona. — Por que você não gosta de mim?
  — Não sinto nada em relação a você, só gratidão. — Ela responde com sinceridade, eu não quis acreditar. Filha de políticos, ela devia saber mentir. — Gratidão por Enzo, ele precisa disso. Talvez transpareci meu chateio por terem te colocado no meu lugar aquela vez.
  — Por que ficou chateada? Você não tava desfilando fora do país?
  — Eu estava, mas quando me vi trocada e quantos elogios ganhou sem nem ser do ramo... Não consegui aceitar. — Invejosa, então. — Além de que, tem ideia do que a Suzane significa pra mim? Ela, antes de todo mundo me reconheceu como modelo aqui. Suzane me lançou e depois senti que fui jogada de escanteio por ela, eu pensei... pensei que você era mais uma concorrente.
  Invejosa e egoísta. Nada que eu também não seja.
  — Também teme essas garotas? Elas são incríveis e promissoras.
  Beatriz balança a cabeça.
  — Estou aprendendo que todas merecemos brilhar.
  Concordei com seu ponto e a porta abriu. As maquiadoras voltam seguidas do grupo de modelos. A expressão de Beatriz volta a ficar séria.
  O burburinho aumenta e diminui. Minutos depois, uma modelo de cabelo curto, cheio de cachinhos despontando no topo da cabeça entra correndo e se agarra à porta fechada. Seu rosto vívido, os olhos esbugalhados.
  — Ele sorriu pra mim!
  Risadinhas ecoam entre as meninas, até eu me engracei com a garota e imaginei a cena. Sim, todas sabiam de quem ela falava. Inclusive Beatriz que ergueu a cabeça curiosa com a reação. Nós trocamos um olhar pelo reflexo e ela espremeu a boca numa linha fina para segurar o próprio riso.
  A sessão final foi em grupo, todas juntas e misturadas. Foi muito mais que divertido. Com dança, cantoria, abraços e sorrisos verdadeiros.
  O meu colega de profissão se aproxima do rapaz responsável pelo som e olha para mim.
  — Joana, o direito de escolher a música da vez é todo seu.
  Franzo o cenho e dou de ombros.
  — Sei lá, põe qualquer música.
  Eles os fazem e quando reconheço a melodia. Era boa no começo, mas de tanto tocar eu enjoara.
  — Menos essa!
  Aparentemente eu não estava sozinha nessa, pelo resmungo que várias bocas ecoaram.
  Fui completamente ignorada pelo fotógrafo que retornou a seu posto e sinalizou com a mão.
  — Ação.
  Aperto bem os olhos.
  — Meninas, me ajudem.
  Imploro e começo a mudar as posições. Uivos de elogios, conselhos gritados e então todas se juntaram de novo.
  Ao fim das fotos eu estava com dor de cabeça por conta da fome, dos flashes e holofotes. Fui direto ao camarim para vestir minhas roupas. Agradeci a Ângela por tê-las colocado na secadora, me despedi das meninas ali dentro e voltei para o estúdio.
  Suspirei de alívio ao cruzar com Beatriz e notar um esboço de sorriso em seu rosto, ela não me odiava.
  — Que horas são? — Pergunto chegando ao lado de Enzo, a conversa com a irmã dele o tempo todo martelando meus pensamentos.
  — São exatamente... seis e trinta e dois. — Ele responde olhando no relógio de pulso. — Parece que alguém finalmente perdeu a vergonha.
  — Finalmente? — Pergunto sorrindo e batendo o ombro no dele. — Tem umas garotas caidinhas por você lá dentro, é sua chance, campeão.
  Ele limpa a garganta e enfia as mãos nos bolsos.
  — São bonitas, mas não estou interessado.
  Faço biquinho e exalo o ar baixinho.
  — Eu queria bancar seu cupido alguma vez na vida. — O príncipe olha para mim por um instante e segue calado. — Como foi chegar em casa sábado?
  — Rubens era o único acordado e ficou abismado quando sentiu o cheiro de álcool. Não me arrependo de nada.
  — Encrenqueiro. Passei na sua casa hoje — falo brincando com a palavra "casa".
  — Sério?
  — Aham.
  — Que pena, se eu soubesse te chamava pra jogar bola.
  — Odeio jogar futebol. Mas engraçado é que antes de eu fotografar sua festa de aniversário, meu meio-irmão pediu pra eu perguntar a você se jogaria com ele.
  — Farei uma visita, então.
  — Duvido você entrar no condomínio sem ser parado por um monte de gente.
  — Sabe que duvidar de mim é a melhor forma de me instigar mais ainda, não sabe?
  — Isso é algo para acrescentar à lista de coisas que devo saber sobre você, Enzo.
  Seus olhos estreitam e o príncipe se vira para mim. Os ombros dele curvam para frente e para trás.
  — O que mais tem nessa lista?
  — Nunca parar o carro pra ajudar alguém na pista local, com certeza é um príncipe tentando se disfarçar com óculos e apenas isso. — Ergo o polegar de lado. — Caso contrário se chama Clark Kent, o que não é nada mal se for alguém como o Henry Cavill.
  Contraio a boca com satisfação. Uma risada baixa e bonita sai de sua garganta. Enzo fecha os olhos por um instante.
  — O óculos dele era de grau. Você fez o bem sem olhar a quem.
  — Essa frase faz muito sentido agora. — Lembro do horário e o que marquei para fazer. — Eu preciso ir, até a próxima.
  — Vou marcar minha visita com sua madrasta.
  Interrompo o passo e me viro para ele, incrédula.
  — Espera aí, você não vai fazer essa visita mesmo, vai?
  — Por que não?
  — Vou preparar um estoque de comida para te ver perder pro João.
  — Se eu perder... É porque deixei seu irmão ganhar — sorrio e retomo o passo quando acrescenta:— A propósito você dança muito bem.
  — Ah tá. — Zombo me virando e rio sem interromper a caminhada.
  O elevador chegou rapidamente e desço até o andar do restaurante. Compro um sanduíche e mando minha localização por mensagem para Bruno. Minutos depois, ele chega e aceno de onde estava sentada.
  — Você fica linda quando tá maquiada.
  — Obrigada. — Recosto na cadeira e jogo o cabelo por cima do ombro, brincando com alguns cachos. — Mas é minha beleza natural.
  — Claro que não. Sua beleza natural é muito maior que isso.
  Ele me arranca um sorriso tímido e puxa outra cadeira. Bebo um gole do suco.
  — Disse a mesma coisa pra garota daquela mesa ali?
  Aponto e ele olha na direção da jovem que eu diria ser da minha idade, sentada um pouco distante de nós e que toda vez olhava para ele, sorrindo um pouco.
  — Ciúmes?
  — A única coisa que sinto ciúmes é das minhas câmeras, de pessoas? — Rio com escárnio. — Jamais e espero continuar assim.
  — Pode ao menos fingir um pouquinho?
  — Pra quê? Te encher de esperanças e depois esmagar tudinho com a bota? É masoquista assim?
  — melhor atirar em mim logo não?
  Reviro os olhos e junto o lixo. Levanto da cadeira e caminho até a lixeira com ele me seguindo em silêncio.
  Ajeito a jaqueta antes de deixar o refeitório. No estacionamento, Bruno parecia inconformado quando voltei a olhar em seu rosto. Escondo um sorriso entrando no carro e coloco a chave na ignição.
  — Por que me beijou? — pergunta quando já estávamos na rodovia dirigindo até o Gama.
  Eu não sabia o que tinha me influenciado naquele momento e consequentemente, permanecia sem resposta para a pergunta. Demorei um tempo para dizer:
  — Eu não sei.
  — E é assim toda vez? Simplesmente não sabe por que beija as pessoas, só vai lá e faz?
  — Não quero falar sobre isso.
  Um aceno curto e ele volta a olhar a paisagem correndo pela janela. Entro na garagem coberta do prédio e encontro minha vaga. Seguimos em silêncio até a porta do apartamento. Dizer que não estava arrependida de tê-lo trazido era mentira.
  — Ainda estou montando então não tá totalmente pronto.
  — Gostei da combinação nas paredes.
  — Obrigada, eu que escolhi.
  — Claro, o lugar é seu.
  Engulo a resposta afiada para seu tom. Começo a andar pelo apartamento e empurro a porta da varanda para permitir que a corrente de vento refresque o ambiente.
  — Amanhã os outros móveis chegam. — Solto para evitar o silêncio. — Cozinha, meu quarto, banheiro, quarto de hóspedes e escritório, vulgo quarto da mamãe. Banheiro, sala de jantar e estar.
  Aponto os cômodos à medida que passamos por eles.
  — Parece ser o suficiente pra você.
  — É, e se eu quiser criar cachorro, posso.
  Bruno inclina a cabeça de lado
  — Por que não gatos?
  — Se eu criar gatos, o meu apê será uma porta pro caminho de dominação mundial deles.
  Ele limpa a garganta e para de andar pelo apartamento, começando a me encarar.
  — O que foi? — pergunto.
  — Você tá cansada.
  — Eu sei.
  Bruno balança a cabeça.
  — Não era isso que eu queria falar. — Ele dá uma pausa e continua: — Enfim, depois do evento aqui, volto pra casa.
  — E?
  — Não tem nada pra me contar ou decidir?
  — Eu já defini minha decisão.
  — Pode ser mais clara? Fica difícil quando diz uma coisa e depois faz o oposto.
  Silêncio enquanto penso como o responder. Curta e grossa? Ou sincera e amigável? Que seja como minha boca proferir.
  — Quando voltar, evite me chamar. Antes eu não queria nada com você, continuo não querendo. Amizade? Talvez. Foi muito bom te conhecer e não vou esquecer, mas prefiro essa distância entre a gente e só o tempo dirá se seremos amigos ou conhecidos.
  — Você tem certeza?
  — Eu tenho certeza absoluta do que quero, meu amigo.
  Disso eu tinha certeza, contudo se fosse passear em outras áreas da minha vida essa frase poderia ser considerada uma mentira.
  Aquilo encerrou o assunto. Eu o deixara em frente ao hotel e dirigi diretamente para casa.
  Casa. E pensar que algum dia eu consideraria aquela monstruosidade minha casa.
  Meu pai desceu as escadas quando eu estava jogada no sofá assistindo a um reality show. Provavelmente eu ainda não me sentia tão em casa naquele lugar, porque me ajeitei rapidamente.
  — Tá assistindo o jogo? — pergunta tentando ver o que passava na televisão.
  — Que jogo?
  — Gama contra o Luziânia.
  — Pai, olha para mim e diz se tenho cara de quem assiste jogo.
  O coroa levanta as duas sobrancelhas em aviso.
  — Se quiser me engolir é só dizer que trago tempero.
  Eu estava tão distraída em meus pensamentos e estresse que não percebi que tinha falado de maneira ríspida. Baixei a bola e murmurei:
  — Desculpe.
  — Desculpas aceitas — ele se aproxima e senta ao meu lado. — O que aconteceu?
  — Nada. — Eu não precisava falar de tudo que acontecia comigo e o meu caso com Bruno entrava na lista. Ele parece ter dado conta do recado porque não exigiu que eu falasse. — Como foi o trabalho hoje?
  Engalfinho-me na lateral do seu corpo.
  — O de sempre. Depois que foi embora fiquei por lá umas duas horas antes de vir. Daqui a pouco Suzy chega. Ela ainda tava trabalhando nas fotos. — Meu pai sacode o corpo para chamar minha atenção. — Quer dizer que posou com a Beatriz? Da última vez que falou nela, ouvi que ela não tinha ido com sua cara.
  — Retiro o que disse, inclusive. Ela foi mais legal comigo dessa vez e digamos que eu tenha perguntado por que ela não gostava de mim...
  — Você o quê? — Ele não consegue controlar a risada. — O que ela disse?
  — Que eu tava enganada e não me odiava, nem me amava ou outra coisa. Que só estava chateada por terem a trocado por mim. Tecnicamente, é tudo culpa de vocês.
  — Pobre Beatriz...
  — Acho que estou um pouco mais aliviada? Não sei se curto a ideia de alguém nutrindo ódio gratuito por mim.
  — Eu também não gostaria. Ah, a Suzane convidou eles pra virem aqui qualquer dia desses, acredita?
  Meu coração acelerou. Sim eu conseguia e ao mesmo tempo não. Provavelmente Enzo tinha articulado aquilo, para poder vir como prometera.
  Maldita hora que João falou para eu convidá-lo... Maldita hora em que não guardo as palavras na boca. Eu já deveria ter arrancado a língua petulante desde aquele começo de tarde quando beijei Bruno.
  — Sério? Acha que eles vêm mesmo?
  — O seu amigo já confirmou que viria.
  Como eu havia imaginado. Aquilo era, com toda certeza, obra dele.
  — Ah. — Respondi e fiz uma pausa para poder raciocinar. — Eu vou... eu vou dormir, tá ficando tarde e amanhã não posso parar o trabalho. Tenho negligenciado demais ultimamente. — Começo a me afastar. — Pode receber os móveis no apartamento amanhã?
  — Sim, sem estresse. Durma bem.
  — Obrigada! — Beijo sua bochecha antes de levantar e sair saltitando entre os brinquedos do meu meio-irmão espalhados pela sala. — Alguém avisa pro João que a brinquedoteca fica no subsolo?
  Meu pai ri, balançando a cabeça antes de responder:
  — Já tentamos, mas entra por um ouvido e sai pelo outro.
  Subo as escadas sem dizer mais nada e praticamente corro até o quarto. Eu não estava nem um pouco preparada para aquela visita. Deus lá sabe quando seria.
  Quase dormia no momento em que meu pai chegou sem dizer nada. O barulho da porta sendo aberta me tirou do quase sono. Girei em sua direção e quando se certificou de que estava acordada, aproximou-se da cama.
  — Desculpa, pensei que ainda tivesse acordada.
  — Estava meio a meio. — Sento abraçando os joelhos e pergunto: — O que foi?
  — Vou sentir sua falta, quando se mudar.
  — Babão. — Mostro-lhe a língua. — São pouquíssimos quilômetros, nada de fora do Distrito. É como ir daqui pra capital.
  — Eu sei... eu sei. É diferente, mesmo quando separei da sua mãe você meio que... ainda morava comigo, entende?
  — Perfeitamente. — Respondo com um breve aceno. — Fico com medo de morar sozinha e não saber me virar.
  — Já sofri desse mal, você pega o jeito. Vive como um lobo solitário.
  — Ainda me sinto muito dependente de vocês.
  — Vai ser assim nos primeiros meses, depois você acostuma e quem sabe até goste.
  Abro um sorriso inseguro e ele me aperta num abraço.
  — A visita do pessoal se transformou numa festa de divulgação da nova coleção da Suzane, que acontecerá logo, logo.
  Solto um ruído com escárnio.
  — Tudo pra vocês é festa.
  — Só um jantar com várias pessoas importantes aqui mesmo. Nada muito balada ou algo assim, uma reunião mesmo.
  — Ai Jesus. Mais do que nunca eu preciso comparecer agora, não é?
  — Com certeza.
  — Não sei se gosto dessas comemorações... muitos flashes, muitas luzes e ruídos. Minha cabeça parece que vai explodir na maioria delas.
  — Se não quiser participar é só falar comigo e com a Suzane. Vamos entender o seu lado.
  Pensei sobre aquilo. Bom... eu me sentia mal nessas comemorações, mas quem sabe eram minha fuga da realidade e forma de arrumar amizades. Assim foi com a Joyce e com Enzo, apesar de que com ele tinha sido um trabalho e ajuda de beira de estrada.
  Mas e se caso eu parasse de ir nelas nunca mais o visse? Quem sabe eu fosse um pouco masoquista quanto a isso.
  — Uma dorzinha a mais ou a menos não faz diferença, né? — Ele me observa com aviso nos olhos iguais aos meus. — Além disso, tem gente por aí que chega a ser perseguida desde o nascimento por esse tipo de coisa. Três horinhas disso não matam.
  — Não adianta estar nisso por se sentir obrigada. Faça o que lhe faz bem e não o que provoca dor.
  — Eu entendi — ele levanta e começa a sair do quarto mas o interrompo. — Nada de música clássica, não é?
  — Talvez uma ópera — brinca. — É claro que vai ser música popular.
  — Vou requebrar até o chão na frente de todos.
  — Essa eu pago pra ver! — ele sai e fecha a porta.
  Continuo sentada encarando o tapete rosa e imaginando como seria se eu de fato requebrasse até o chão nesse jantar. Afastei qualquer possibilidade de realizá-lo com uma risada e voltei a deitar, deixando apenas a cabeça de fora do edredom.

Princesa da AlvoradaOnde histórias criam vida. Descubra agora