Chego na mesa e esfrego a toalha contra os olhos na tentativa de parar o ardor depois de mergulhos no mar.
— Cuidado com tio Tu. — Faço cara de quem pergunta do que meu primo está falando. — Tuba Tubarão. — Explica e arregalo os olhos, mas sorrio para ressaltar o fingimento. — É só num passar dos arrecifes.
— Já teve muito ataque? — quis saber sentando e tomando o resto do refrigerante que deixei no copo antes de entrar no mar.
— Se teve, sim. De uns tempos pra cá, diminuiu. Não só de acidentes, mas também os animais. O que é triste porque isso significa a quebra dos ecossistemas.
Assinto um pouco triste. Minha mãe dizia ser mais fácil avistar animais silvestres em algumas áreas fora de zoológicos na época dela. Às vezes chego a pensar que ela vivia na selva.
Até hoje quando os vejo fora e dentro de área protegida é um evento. Toda vez que faço essa comparação na presença da minha mãe ela volta atrás e explica que no seu tempo também nem era tão "mata" assim. Que acontecia raramente, porém com mais frequência que agora.
Ainda assim não consigo deixar de imaginar províncias em suas versões mais arcaicas. E pensar no tempo dos meus avós? Pior ainda. Nem internet como a conhecemos existia, eles literalmente andavam quilômetros carregando compras.
Guilherme suspira.
— Sinto falta de tomar uma e fazer passinho com eles.
Ergo as sobrancelhas com a extraordinariedade da informação. Raquel, a esposa dele, apenas ri balançando a cabeça como se dispensasse toda aquela bobagem.
— Mãe — chamo e ela inclina a cabeça em minha direção pedindo para continuar. — Tira umas fotos pra mim?
Entrego o celular e faço poses. Antes de eu viajar, Sabrina insistiu tanto para que fizesse aquilo, não aguentaria voltar sem nenhuma imagem e arriscar ouvi-la reclamar durante uma semana. Talvez bem mais que isso.
Me afasto dos outros para ir ao mar e usá-lo nas fotos. Se eu ficasse feia, ao menos a paisagem me salvaria.
O prato de peixe frito esperando na mesa quando retornamos, fez minha boca encher d'água. Me acomodei na cadeira reclinável sob o guarda-sol. A rajada de vento traz areia e cabelo com grãos presos ao meu rosto. Volto o olhar para trás, querendo evitar ciscos.
Com o movimento paro a fim de observar o paredão de prédios metros atrás de nós. Como teria sido o litoral que ostentava coqueiros, antes de exibir construções imensas? E todas aquelas barraquinhas, pessoas indo e vindo.
Raquel e minha mãe cantarolam um brega soando da caixa de som em alguma outra mesa ocupada.
— Já tá com namoradinho, Joana? — Gui pergunta e arregalo os olhos, sem acreditar à medida que as palavras são ditas.
Na minha infância, ele tinha minha idade atual e agora perguntava esse tipo de coisa? O mundo está envelhecendo.
— Quem é você e o que fez com o Gui? — Solto uma risada bufada. — Não creio que você, o velho mais jovem que conheço, tá me perguntando isso.
Ele faz uma careta de indignação.
— Velho?! Só tenho quase quarenta.
— Um coroinha de respeito — nomeia Raquel alisando as costas do marido.
— Envelheceu muito desde que vim da última vez. — Abro os braços para indicá-lo. — Olha só que pergunta tá fazendo.
A expressão dele contrai de leve, ofendido.
— Tu tem quase vinte e ainda é uma bebê chorona.
— Cala boca e pra sua informação, chorar é um hobby.
— Já que insiste na minha velhice... — E então imitando – ou ao menos tentando – a voz trêmula de um senhor, disse: — Cadê seu respeito com a terceira idade?
Reviro os olhos, recebendo uma nova repreensão fingida.
— Vai me levar pra feira de manhã cedo também?
— A audácia da criança — minha mãe solta, em seguida dá um tapa leve no meu braço. — Eu não te criei assim.
Guilherme emite uma risada de quem não acredita muito na alegação e volto a comer enquanto ouço as conversas dos três.☆
— Se esse corte não ficar bom, vocês vão arrumar um jeito de consertar — aviso, sentindo as batidas do coração descompassarem.
Já estava quase desistindo de fazer o corte no caminho até o salão.
— Você confia em mim? — Minha mãe pergunta me lançando olhares rápidos pelo retrovisor. Demoro um pouco para assentir e ela continua: — Então, confie agora. Vai ficar linda.
— A própria barbiezinha — solta Mariana afinando a voz.
Começo a rezar propositalmente baixo de modo que ainda pudessem escutar e Mari gargalha no banco do carona.
— Eita, menina medrosa.
— Prezo muito pelo meu cabelo, acha que é fácil manter essa belezura aqui? — Questiono apontando os cachos largos, porém ainda definidos. — Tô com medo de dar errado e eu precisar passar meses convivendo com a tragédia.
Minha prima assente silenciosamente como se entendesse o motivo do nervosismo.
— Prometo que não vai. — Sua atenção se volta para minha mãe. — Vira na próxima esquina.
Em minutos eu arrastava os pés para dentro do estabelecimento. A parte interna do salão era bem trabalhada no branco, sendo quase todos os móveis daquela cor. Exceto trechos de parede, cobertos por um papel marrom contendo desenhos padrões e sequenciais.
Um destaque bonito para quebrar a predominância da ausência de cores. Havia também espelhos por toda a parte e dois televisores, apenas um deles estava ligado. Observei a estante presa à parede com esmaltes de todas as cores possíveis. Separados por tons, quase formavam um degradê.
O que era bonito aos olhos, era terrível ao nariz. O cheiro de produtos parecia impregnar em todo o meu ser dentro daquele lugar refrigerado, irritando meu nariz. Parte de mim admirava o lugar e a outra só pensava em fugir.
Eu folheava uma revista para tentar acalmar o coração e parar os tremores quase imperceptíveis quando Tânia, a cabeleireira, anunciou minha vez.
Entreguei a revista à minha mãe e relanceei a porta cogitando a possibilidade de sair correndo. Não, agora não tinha mais volta.
Sentei na cadeira e soltei o ar que prendia quando encarei meu reflexo, os olhos quase arregalados de medo. Um inexplicável, como ir ao dentista para avaliar a situação bucal.
Expliquei o corte para Tânia antes que começasse e cerrei os punhos praticamente enterrando as unhas grandes, pintadas de vermelho pelas habilidosas mãos de mamãe, na palma.
Fechei os olhos, dando espiadas antes do fim. Meu coração acelerou assim que olhei no espelho e vi a franja ainda molhada. Ela estava meio grande e nada bonita. Minha mãe percebendo o desespero tentou me tranquilizar. Deu tudo errado, pensei de imediato.
— Quando secar vai ganhar corpo. Relaxa.
— É, mulher. Vou secar, deixa eu só cortar mais um pouquinho. — A voz de Tânia era carregada de um sotaque pernambucano muito agradável aos ouvidos.
Mais do que já cortou? Assinto em silêncio e espero. Apenas depois de ela secar, pude respirar normalmente. A expressão de desespero que carregava adquiriu um semblante de admiração com a mudança. Mari acertou em cheio quando sugeriu que eu deveria fazer aquilo.
Ela não me deu uma aparência infantil e nem velha demais, combinou comigo. Até que fazer mudanças era divertido e essencial, penso.
— E do nada ela ficou radiante — observa Tânia, falando como se eu nem estivesse ali.
Pouco me importo, focada em brincar com a pequena extensão de cabelo sobre a testa, rindo como uma criança que acaba de ganhar um presente do qual gostou.
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Princesa da Alvorada
RomanceO ano é 2047 e há 26 anos o Brasil deixou de ser uma república presidencialista para voltar ao sistema de monarquia parlamentarista, através de um plebiscito. Em pouco tempo do novo sistema de governo, um massacre acometeu a família imperial no mesm...