Chocolate quente

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Uma manhã de sábado nublado. Uma enorme vontade de ver o lago. Um coque bagunçado. Uma calça de moletom preta, uma blusa de frio cinza com capuz e um tênis esportivo. Pronto. O meu dia havia começado. 

Daniel estava na sala, como de costume: lendo um livro, com uma xícara de café em mãos e o óculos embaçado. É, ele é a minha poesia viva preferida. Simplesmente gracioso, todo concentrado e perdido no mundo da literatura. Lembro-me de quando éramos crianças: enquanto me encantava jogar futebol com papai, me sujar na lama, pular na piscina e depois correr atrás das borboletas, ele se sentia realizado ao tentar ler um pequeno gibi. É verdade que este fato também me era presente, mas em menor quantidade. Ah, papai foi deveras o melhor, nunca se fez ausente, e a cada novo nascer do sol, estava lá, nos ensinando  pequenas coisas da vida… coisas que trazemos conosco até nos dias de hoje. Mas confesso que nem sempre coloco-as em prática.

- Natal na barca? - perguntei ao ver a capa.

- Sim - respondeu-me sorrindo.

- A criança não está morta. - peguei a xícara de café de suas mãos.

- Filha da puta! - fechou o livro e o tacou em mim.

- Cuidado que o café está quente, palhaço. - desviei do objeto tentando não derrubar o líquido - E muito doce, credo. - eu disse ao beber um gole.

- Foda-se. - ele riu.

- É feio falar palavrão, tato! - bebi mais um gole do café.

- Por quê você sempre faz isso, sua idiota?!

- O que? Pegar a sua xícara? Preguiça de ir até a cozinha. - fiz-me de desentendida.

- Tu estás muito engraçadinha hoje. - ele disse. - Me refiro ao fato de que sua ilustre pessoa sempre conta-me sobre o final do livro, estragando a graça do todo.

- Te equivocas. Eu nunca o faço!

- Faz sim. - ele riu - Isto é algo inegável.

- Tudo o que faço é lhe revelar um dado de uma situação imutável escrita na última página, antes do último ponto final.

- E então? Acabas de se declarar culpada!

- Eu não disse isso! - respondi. - Se assim fosse, você não continuaria a leitura.

- Talvez.

Silêncio.

- Tato, sabe por quê você sempre continua? - perguntei-lhe e ele negou. - Porque não importa a ninguém qual será o fim. O que nos prende é como chegaremos até lá. - eu disse - E quer saber de uma coisa? No fundo, tudo é mutável. E este livro é bizarro!

- Todos os seus livros são!

- Não é meu! - eu disse - É da Lygia Fagundes Telles. Reclamações é com ela!

- Engraçadinha você, não?

- Nunca! - respondi - Mas pode continuar. O livro é muito bom!

- A criança realmente está viva?

- Talvez. - respondi - Ao ver da mãe, sim!

- Como isso é possível, se a narradora diz o oposto? A morte neste caso é algo certeiro.

- Fé, meu caro! - o respondi e lhe dei um beijo molhado em sua bochecha.

Levantei-me e caminhei até a porta. Assim que a abri, o escutei chamar-me.

- Por que você fugiu da gente a semana toda? - perguntou-me.

- Eu precisava de um tempo.

- Sempre a mesma coisa!

Intensamente VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora