Dançando

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Pov - Mary Margareth.

Refletir sobre os fatos nunca foi o meu forte. Negar a existência de algum sentimento culposo me parecia uma excelente opção. Me trancafiar no meu "eu" não me soava como sinônimo de egoísmo – mas era, sempre foi. Sempre preferi ver a vida como um bem lucrativo. O fracasso não me descia em hipótese alguma. Emma até teve razão em me odiar. Não gosto de lembrar a última discussão que ela ouviu. David era um homem incrível, mas o medo de vê-lo cair e nos deixar na miséria me impedia de dizê-lo. Era mais fácil xinga-lo e tentar acabar com o seu sonho de ser dono da melhor safra de vinho. Sonho esse que se tornou realidade poucos meses depois da sua morte.

Cá estou, encostada no carro, sentindo a brisa do vento sobre a minha pele, refletindo sobre algo que jurei deixar no esquecimento. 

O meu orgulho e a minha vaidade me afastou do meu marido enquanto ele ainda era vivo, e seguiu me afastando dos meus filhos. Idiota. Esta palavra poderia me definir perfeitamente. Julguei as atitudes de Emma, sem perceber que eu a levei para tal caminho – joguei a minha própria filha em um mundo confuso, perdido... A deixei só no caos da sua mente.

Às árvores ao redor se movem com calma. O céu me parece belo. O dia não é tão cinza quanto eu creia ser. 

A vida vem me dando segundas chances e não posso mais deixá-las se esvairem pelos meus dedos como finos grãos de areia que se arrastam, deixando uma pequena marca em minha palma. 

Emma e Daniel cresceram e se afastaram de mim. Daniel nem tanto, mas Emma havia ficado quase intocável – não tinha como ultrapassar a sua barreira protetora. O meu filho só me confiou a sua doença porque não queria causar dores na irmã – não posso dizer que fora puramente por confiança a mim... isso ele tem com ela. 

Posso sentir os músculos do meu coração se contorcendo aqui dentro do meu peito. Dói saber que eu estava perdendo a mim e aos meus. Está na hora de derrubar essa armadura que sempre usei. Está na hora de aceitar que é preciso mudanças para o crescimento pessoal, espiritual.

O ar me parece leve, mas ainda sim, pesa. É o medo, a angústia, a esperança. Dar a cara a tapa e assumir as nossas falhas parece mais assustador que a própria morte. 

"Eu sei que lá no fundo, a tanta beleza no mundo, eu só queria enxergar"

Não percebo como fugi do momento, mas desperto com o toque de Daniel em meus braços. 

Vamos, mamãe? 

Apenas aceno positivamente para entrarmos no cemitério. Tento segurar as emoções, mas não é preciso. Acredito que a vida está esperando o oposto disso. Caminhamos por entre os espaços vagos próximos aos túmulos. Sinto a ansiedade de meu filho por conta da sua respiração afobada. Seguro em suas mãos – estamos juntos, hoje e sempre. 

O meu coração erra uma batida quando chego ao local. Por mais que não seja a primeira vez que eu vá ali... É a primeira que eu vou para seguir em frente. 

Eu e Daniel nos ajoelhamos. Esperei e deixei o meu filho se sentir à vontade. 

Eu sinto a sua falta! - o meu filho falou quase que num sussurro. - Parece egoísmo, mas eu te culpei tanto quando nos deixaste... não era justo. Nós precisávamos tanto de você, pai. - respirou fundo. - Ninguém estava preparado para a sua morte. Eu prometi a mim mesmo que protegeria a minha irmã, mesmo sendo ela a mais velha. Eu sabia que Emma não seria forte o suficiente... O problema é que eu também não fui. Eu cai primeiro, mas cai sozinho. Evitei levá-la comigo. - fez uma pausa - Eu te amaldiçoei tanto... Só Deus sabe o quanto. Me sinto um babaca por isso. Mas fazer o que, não é? Se o amor pode nos deixar loucos. - pude vê-lo secar uma lágrima. - perder um herói pode nos deixar desmotivados... perder você me fez ser um imbecil em todas as minhas presses. Eu só queria te culpar, te xingar... Eu só queria que de alguma forma você voltasse e falasse que tudo não passou de um pesadelo. Voltasse para jogar bola conosco. - estava me partindo o coração vê-lo falar coisas que eu nunca imaginei. - Doeu perceber que tu não me ajudaria a escolher um time de futebol, não me ensinaria a paixão pelos vinhos, não iria mais receber um abraço apertado seguido de um "eu te amo" no dias dos pais. - suspirou - Doeu perceber que nunca mais iria voltar para casa. Ainda dói e talvez doa para sempre, mas que agora, doa em paz. Eu te amo, papai.

Intensamente VadiaOnde histórias criam vida. Descubra agora