Acordei logo cedo com o canto das aves lá fora. O sol ainda não havia nascido por completo, mas restas de luz já entravam entre alumas aberturas da madeira na janela. Olhei para o lado e percebi que Felipe já não estava mais na cama.
Me vi direcionando os pensamentos a minha família, que havia deixado para trás. Uma dor no peito surgiu. Sentia falta deles, de estar com eles. Mesmo tentando distanciar esses pensamentos a maioria das vezes, era inevitável não pensar, não sentir e não desejar voltar.
Me levando da cama e vou em direção ao banheiro. Preciso focar na minha vida atual, e me satisfazer com essa mudança, afinal estou em um lugar bom, com pessoas que gostam de minha presença...
- Vai entrar ou vai ficar tapando a porta? - disse Felipe atrás de mim. Bem, nem todas gostam da minha presença assim. - A propósito, se apressa que você irá comigo hoje para a venda.
Concordei com a cabeça e entrei no banheiro.
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A venda não era tão grande, mas havia diversas coisas. Desde as frutas e hortaliças que eram plantadas ao redor da casa, até alguns objetos e livros. Já havia visitado poucas vezes, mas nunca tinha entrado por toda ela. Pelo menos poderia sentar e ler alguns desses livros para passar o tempo.
- O que posso fazer? - perguntei a Felipe que estava sentado sobre uma cadeira atrás de uma bancada. Ele me olha com desdém, e depois olha ao redor das prateleiras.
- Ali atrás tem uma porta, dentro tem uma pequena despensa. Pegue um pano e limpe essas prateleiras. - disse e voltou a fitar para um livro que estava sobre seu colo.
- Não sabia que você lia. - disse.
- Não sabia que você era surdo. - falou. Eu não me importei com aquilo, era normal ele falar comigo dessa maneira. Até sorri com o modo que ele falou.
Eu não sabia muita coisa sobre ele. Não era o tipo de pessoa que se abre dessa forma, principalmente pra alguém como eu. Ele tinha uma boa aparência, era alto e forte, pelo menos mais que eu, tinha cabelos curtos e castanhos, tinha lábios grandes, seu maxilar era marcado, e os olhos negros.
Mesmo o evitando a maioria das vezes, eu sabia que ele era uma boa pessoa, cuidada de sua irmã e era atencioso com seus pais. Claro que tinha esse jeito diferente comigo porque eu era um desconhecido, e talvez até uma "ameaça".
Arrepiei ao terminar de concluir essa frase. Eu poderia mesmo ser uma ameaça? Se eu fugi de meu reino para não levar ameaça para minha família, porque decidi ficar aqui? Chega até ser egoísmo de minha parte não pensar no bem estar deles, que me deram um lar quando eu mais precisava, e pensar apenas na minha segurança.
Talvez Felipe estivesse coberto de razão em achar que eu era uma ameaça, porque eu era. E eu não podia controlar isso, não sabia como, pelo menos ainda não.
Fique parado dentro da salinha ajoelhado no chão pensando em toda essa confusão, até sentir uma mão em meu ombro. Me levanto assustado.
- Calma garoto... O que faz ai parado? - disse Felipe me fitando com um olhar de curiosidade como se esperasse uma resposta.
- Não é nada... Só fiquei tonto, deve ser da poeira. - menti.
- Sei. Você é estranho! Muito estranho. - disse e saiu.
Terminei de limpar as prateleiras por volta do horário de almoço. Diana sempre mandava alguém vir deixar o almoço do Felipe, e dessa vez mandou o de ambos. Almoçamos lá mesmo sem trocar muitas palavras e continuamos o serviço em seguida.
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Já era noite e havia acabado de chegar em casa. Ainda era estranho chamar de casa, mas aqui é o mais perto de um lar que eu tenho atualmente. O jantar já iria ser servido e eu estava sentado com Paula na mesa. Ela me mostrava alguns rabiscos que tinha feito e eu analisava muito feliz.
Ela era uma criança maravilhosa, me lembrava um pouco as crianças do Reino quando o Charlie lia livros de histórias para elas. Ficavam felizes com tão pouco. Eu não imaginava na época o quanto esses detalhes de poder ouvir uma história ou conseguir ler por si só era tão importante. Mas agora vivendo essa realidade de perto consigo perceber o quanto isso é importante e pode mudar o dia de alguém para melhor.
- Mãe, quando crescer quero ser tão inteligente quanto o Arthur. - dizia Paula com um sorriso cheio de esperança no rosto.
- Você vai ser minha pequena. - responde Diana.
Eu simplesmente adorava a maneira como eles se tratavam e viviam, tão simples, mas tão felizes. Quero um dia poder ajudá-los de alguma forma.
- E como foi na venda hoje, Arthur? - pergunta Diana.
- Correu tudo bem. Me distrai um pouco, e pude ajudar de alguma forma. - falei satisfeito.
- Que bom que gostou. Fiquei preocupada com a forma que o Felipe te trataria.
- Eu não vou socar ele, Mãe. Não se preocupa. - disse Felipe entrando.
- Foi tudo bem, fique tranquila. Eu entendo o lado dele. Ele só quer proteger vocês. - falei tentando apaziguar o assunto. - Ele me ensinou o trabalho direito.
Pedro ainda não havia chegado em casa, o que era comum. Às vezes ele chegava ainda pela tarde, outras vezes o trabalho era mais pesado e demorava mais pra voltar. E como o jantar era servido cedo, nem sempre ele estava conosco.
Após o jantar costumávamos sentar no balanço que havia em frente a casa para ouvir Pedro ou Diana contar histórias, contos e coisas que eles já viveram. Era um bom passatempo. Eu gostaria de poder contar um pouco das minhas histórias, mas pra eles eu havia perdido a memória, então isso se tornava impossível. Me contentava em apenas ouvir suas versões.
Esta noite só sentou fora eu, Paula e Felipe, pois Pedro havia acabado de chegar em casa e Diana estava com ele para o jantar. Paula estava deitada no balanço com a cabeça no colo do seu irmão. Ela parecia dormir já.
- Acho que ela já dormiu. - tentei iniciar uma conversa.
- Percebi. - disse ele olhando para o seu colo.
Era notório que ele não queria conversar, pelo menos não comigo. E eu não o julgava por isso.
- Quanto tempo você acha que ficará aqui? - perguntou me fazendo ficar surpreso.
- Bem... Eu não sei. Eu gostaria de poder lembrar pelo menos onde eu morava... - as palavras saiam com certa dificuldade. Eu não me sentia bem mentindo. - É muito complicado.
Ele me analisava atencioso enquanto eu falava, como se estivesse querendo alguma resposta sem ser a da pergunta que tinha acabado de fazer. Fiquei nervoso com a maneira que ele me olhava, meu coração começou a acelerar forte. Era como se ele conseguisse ver através de meus olhos que eu estava mentindo.
Minha mão começou a suar frio e minha cabeça a pensar várias coisas ao mesmo tempo, que chegava a ser incapaz de digerir qualquer que seja o pensamento que estava nela. Escuto um barulho forte que me tira rapidamente do transe interno que estava começando a ter.
Uma árvore havia caído. Não era uma árvore grande, pois não fazia muito tempo que tinha sido plantada. E não estava ventando forte para isso.
- O que foi esse barulho? - disse Pedro vindo depressa para onde estávamos.
Olhei assustado para ele e para sua esposa que estava logo atrás. E em seguida para Felipe que me olhou parecendo assustado. Eu não sei que sensação estranha era essa que estava sentindo, mas eu posso jurar que eu senti o tronco da árvore se rompendo. Havia sido eu?
- Não sei. - disse Felipe.
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Dois Caminhos (romance gay)
RomanceLivro 2 A história continua! Arthur é um Jovem Príncipe que descobriu ter herdado a magia de sua mãe, uma bruxa. Assustado, ele foge do castelo onde morava e começa a viver com uma família simples em um vilarejo longe de seu reino, onde todos desco...