Capítulo 8

335 34 28
                                    

  Ainda tento absorver o que aconteceu.
   Minha mente martela com o que a Momo acabou de falar. Uma vingança envolvendo deuses e humanos?
   Resolvi tantas questões descobrindo as coisas sobre minha mãe, mas agora novas se formam, parece que não tenho tempo para descansar sem ter segredos me rondando. Me lembro do que a Hemera falou “uma revolta se aproxima, não está sentindo a guerra chegando?”.
   Preciso contar essas coisas para o meu pai, preciso sair desse lugar. Pensar nisso me faz ter uma vontade mínima de sorrir, se houver uma guerra entre Deuses, não há lugar para me esconder. Não achava que a Momo fosse tão perspicaz, mas até agora a Nix não negou nada, então é provavelmente verdade. Me pergunto para onde Nix enviou ela, espero que a Momo esteja bem.
   — O que está acontecendo? – escuto alguém sussurrando do meu lado.
   Viro-me depressa e repreendo um grito quando vejo meu pai do meu lado. Eu não vi ou ouvi ele chegando, se eu não tivesse certeza de que ele é um humano, teria achado que ele havia se teletransportado.
   — O que você está fazendo aqui? – pergunto.
   — Vim atrás de você – ele responde. – mas o que é isso?
   — Não sei bem – falo o mais baixo possível, que eu quase não escuto. – parece uma reunião de deuses.
   Ele não fala nada, percebo que seu olhar está focado na Nix, que está indo para a plataforma do seu trono. Meu pai se ajeita e fica do outro lado da coluna, observando igual a mim. Ainda bem que as colunas são grossas e nos cobre.
   A deusa da noite se vira para Hemera.
   — Traga o infeliz – ela diz com a voz rígida.
   Hemera assente e sai do salão a passos largos. Nix sobe a plataforma do trono e vira-se de frente, ela não olha para nenhum Deus, apenas encara a porta, com um olhar penetrante, vejo seus olhos oscilando entre o branco luminoso e o normal.
   — Que história é essa de vingança contra deuses? – pergunta Selene ainda incomodada.
   — Sabemos que você foi amaldiçoada, mas para que estamos aqui? – pergunta Éolo.
   Nix não olha para eles, ignorando-os. Percebo que os dois ficam com raiva e cochicham entre si. No mesmo instante, Hemera entra no salão, com a mão levantada. Logo atrás, vejo um homem sendo arrastado no ar pelo poder da Hemera. Os lábios dele sangram, mechas pretas do cabelo bagunçado, ele não consegue se mexer, parece um peixe em um anzol.
   A roupa que ele usa é só um calção e uma camisa branca fina e toda manchada, com marcas de vômito e lama, seu rosto está machucado e o olho inchado. Ele é gordo e forte, parecer ter idade por volta dos cinquenta e poucos anos. Ele parece mais um bêbado qualquer de bar. Nix não demonstra pena, percebo que seus olhos se estreitam.
   Os outros deuses parecem confusos e o murmúrio aumenta, ninguém sabe o que está acontecendo e nem quem é esse homem. Hemera para na base da plataforma e se vira ficando de frente para todos, ela abaixa a mão e o homem cai de joelhos. Ele grita de dor com o impacto.
   Eu olho para meu pai e ele sente meu olhar, virando para mim confuso. O homem olha ao seu redor, assustado, e todo mundo encara ele, também confusos. Ele para o olhar e empalidece quando dar de cara com a Nix, ela encara o homem com a respiração pesada. Ele abre a boca de surpresa e arregala os olhos. A deusa da noite caminha em sua direção a passos pesados.
   — Vo-Você – ele gagueja e sinto o cheiro de álcool forte saindo de sua boca. – o que está acontecendo? - ele treme e mexe a cabeça como se estivesse se lembrando de algo doloroso. - eu não que-queria fazer aquilo, desculpa, eu estava bêbado e desesperado, eu...
  A deusa da noite grita, abrindo a boca para liberar o máximo de sua raiva. O ar parece ser cortado, as paredes tremem, por um instante, parece que toda a realidade se contorce, e em um segundo ela está na frente do homem, ele paralisa, a respiração dele fica fraca e difícil. Nix encara ele com seu olhar fuzilante.
   — Desculpas não vai fazer o dano ser desfeito – a voz dela sai trêmula, mas pesada, soando como um trovão.
   Ela se afasta um pouco dele e encara a multidão.
   — Eu acordei quinze dias atrás em uma floresta, sem memória e com um passado desconhecido, depois de horas tentando sair dali, eu finalmente encontrei uma vila, pequena e simples – ela caminha ao redor do homem com a mão na cabeça dele, suas unhas grandes quase penetram o crânio dele, ele estremece. – eu não sabia o que fazer, e quando fui pedir abrigo e comida, todos daquele lugar imundo me negaram.
   “ Não sei o que eles acharam que eu era, mas me negaram tudo o que eu pedi. Por vários dias eu dormia embaixo de árvores, passando frio e fome, tudo o que eu comia, era resgatado do lixo. Mas eu não podia sair dali, tinha medo de me perder na floresta, além de que eu não tinha para onde ir. Depois de muita persistência, encontrei emprego servindo de empregada em algumas casas, em troca de um punhado de comida ou de uma peça de roupa.”
   Nix para atrás do homem e força a cabeça dele para trás, fazendo ele encarar seus olhos intensos.
   — Você se lembra, quando trabalhei na sua casa? – ela pergunta, ele assente levemente, ainda tremendo. – sua esposa e as amigas delas me forçaram a comer junto dos porcos e ainda riram, achando que eu estava dando em cima de você quando o que aconteceu foi o contrário.
   Olho para o meu pai e percebo seu olhar vacilando, ele estar com raiva. Até agora tudo faz sentido, por isso a noite sumiu, ela estava na forma humana, sem lembranças ou poderes, perdida em um lugar qualquer no mundo. Sinto pena dela, não porque ela havia perdido seus poderes, mas sim porque ela foi humilhada e negada de humanidade. Deve ser estranho, em um momento você é uma deusa primordial poderosa, e de repente você está vagando na terra implorando por uma chance de viver.
   — Naquela noite eu estava decidida a fugir daquele lugar maldito – ela continua. – segui o conselho de uma velha e fui em uma direção na floresta que de acordo com ela, ia dar em uma estrada velha e pouco usada. Mas na metade do caminho, percebi que estava sendo seguida.
   “Estava e escuro e eu não sabia se era um animal ou uma pessoa. Mas logo matei a minha dúvida da pior maneira possível. Senti suas mãos asquerosas me pegando pelo pulso, e logo em seguida seu hálito horrível de cachaça.”
   Enquanto fala, a voz dela fica mais alta e forte. Seus olhos ficam mais brancos e a mão que está segurando a cabeça do homem começa a pressionar mais o crânio. Meu pai estremece, e alguns deuses estreitam os olhos, prestando atenção em cada detalhe.
   — Eu tentei me livrar de você, gritei por socorro, você me bateu pois você era mais forte – ela larga a cabeça dele e se afasta ofegante, como se tocar ele fosse repugnante. Uma única lágrima solitária desce pelo seu rosto, vindo de sua raiva e tristeza.
   O homem também chora, murmurando palavras de desculpa. Ele se apoia com as mãos no chão, fraquejando.
   — Eu apanhei muito naquele momento, e eu achava que ia ficar só nisso, mas você foi mais impiedoso. Você me nocauteou com uma pedra e eu cai desmaiada no chão – ela treme e sua voz vacila. As lágrimas descem aos montes pelos seus olhos, que ficam mais brancos e intensos, como a luz cheia na escuridão intensa da noite. – Quando eu acordei, eu estava na mesma floresta – ela parece não acreditar no que vai dizer e hesita, caminhando novamente para perto dele. O homem continua implorando por desculpa. – minha roupa estava rasgada e meu corpo dolorido. Minha parte íntima estava sangrando e doendo muito, MUITO – ela grita e sinto a coluna estremecer. O impacto da voz dela atinge todo mundo.
   E é só quando me dou conta do que aconteceu com ela. O crime mais impiedoso do mundo, que não merece perdão. Sinto lágrimas descendo pelo meu rosto, e por instinto, eu sinto a dor dela. Ninguém merece passar por isso, não importa quem seja. Esse homem é um monstro e não importa quantas desculpas ele peça, nada vai desfazer esse erro imenso. Esse pecado brutal. Cravo as unhas nas palmas das mãos, com raiva.
   Os deuses ficam surpresos e alguns exclamam de raiva. Nem eles esperavam por isso. Hemera abaixa a cabeça e a pantera de Ártemis rosna furiosamente, em sincronia com a raiva da deusa da caça. Meu pai faz sinal de que vai sair do nosso esconderijo, mas eu o seguro. Ele tenta se soltar mas eu não deixo. Ele me olha com um olhar de raiva e tristeza e logo em seguida coloca as mãos no rosto e escorrega pela coluna até se sentar.
   É pesado, eu sei. Meu coração se aperta.
  — Eu não sabia o que fazer e apenas caminhei sem direção, com o corpo dolorido e a mente fraca, eu vaguei até achar um bar de beira de estrada – o resto da história eu já sei, Hemera encontrou ela e a fez voltar a ser uma deusa.
   Eu vi a Nix machucada, mas não podia imaginar que ela havia sido violada de uma forma tão brutal. Sinto a raiva tomando conta do meu corpo e minhas pernas fraquejam com o que acabei de ouvir. Sento-me igual meu pai, apenas ouvindo o que ela diz.
   — Você não sabe o que eu senti – escuto ela dizendo friamente. – mas vou fazer você sentir pior.
   Por impulso coloco minha cabeça de novo para fora da coluna e vejo a Nix se aproximando do homem, as lágrimas não descem mais, apenas a raiva domina seu corpo. Ela chega perto dele, que choraminga alto, olhando assim até parece que ele merece piedade, mas eu entendo a Nix, e ele não merece piedade alguma.
   Ela coloca as mãos na cabeça dele e ele grita de dor. Não sei o que ela está fazendo, mas parece ser bem dolorido. Ele tenta segurar as mãos dela, mas não consegue se mexer. Ele chora e grita mas a Nix parece determinada.
   — Isso foi o que eu senti, esse vazio, essa sensação de dor e desespero, esse desprezo pelo próprio ser – ele grita ainda mais e ela encara ele. Então percebo o que ela está fazendo, está transmitindo a dor dela para ele. Não a dor física, mas a psicológica, que é pior e mais perturbador.
   Em segundos, a pele dele começa a ficar cinza e esverdeada, sinto o cheiro de carne podre. Parte por parte, a podridão vai se alastrando pelo corpo dele. Suas veias incham, parecendo mangueiras embaixo de sua pele. Ele se contorce mas ela não para, os ossos de seu corpo começam a aparecer e a rachar. Sinto ânsia de vomito e coloco a mão na boca para impedir de gritar, quando as entranhas dele aparecem.
   — Pra você eu fui só um pedaço de carne – ela diz gritando, para sua voz se sobressair sobre os sussurros dos deuses. – agora irei acabar com seu corpo inútil. Você era mais forte, agora eu sou.
   Ele não chora mais, seu olhar está vago. Ela então tira as mãos da cabeça dele, e enfia no peito dele. Sem mais nem menos. O homem não consegue gritar, suas cordas vocais já se foram, mas ele arregala os olhos opacos, com a carne vazia e cinza e verde ao redor. Nix segura o coração dele dentro do peito e ele tenta respirar com o resto de pulmão que ainda lhe resta.
   Os barulhos que ele solta são perturbadores.
   — Você machucou meu corpo e eu fiz o mesmo – ela encara ele, com os olhos completamente brancos. – mas a minha alma também foi machucada, e você não vai se livrar disso morrendo. Irei fazer você morrer mil vezes se preciso, irei no inferno atrás de você.
   Ela aperta o coração dele e ele solta um som abafado que era pra ser um grito, mas o que sai é um rosnado engasgado. O coração dele se despedaça, virando um pedaço de carne murcha e o sangue escorre pelos dedos da Nix quando ela tira a mão de dentro do peito dele. Ele cai no chão em um banque, com a pele murcha, e o resto de carne que ainda tem no seu corpo, se desmonta em um amontoado de carne podre. Sangue escorre ao seu redor, formando uma poça.
   Não consigo aguentar e vomito, o que me faz forçar o estômago, já que não comi nada. Coloco a mão na coluna para me equilibrar e recuperar os sentidos. Hemera não demonstra pena e vejo um vislumbre de um sorriso em seu rosto. Ninguém na verdade, demonstra nada, já devem ter visto coisas piores nos milhares anos de vida.

              <                                    >

   Nix olha para Héstia.
   — Queime – diz.
    A deusa do fogo da um passo pra frente e estende as mãos, no mesmo instante, o resto de corpo do homem pega fogo, com chamas altas que vão até quase a altura do teto, fazendo eu me afastar um pouco com o calor alto e surpreendente.
   Meu pai está olhando a parede, incapaz de ver o que está acontecendo e de reagir a algo. Preciso de tempo para absorver o que aconteceu e tudo o que eu descobri até agora. Nix foi pega pela própria maldição e virou uma humana, mas ainda não sei quem lançou a maldição nela. Ela foi humilhada e sofreu quando estava na terra e foi vítima de um abuso horrendo. Estremeço de raiva só de pensar nisso. E sei que uma guerra se aproxima, uma guerra trazida pelo desejo de vingança da noite.
   Nix para na base da escada e olha para a frente, segundo depois ela vira o rosto na direção da coluna onde estamos, com um olhar penetrante, sua boca está apertada em um linha fina.
   Eu me encolho atrás da coluna, mas não adianta. Logo sinto que as paredes ficam borradas, e tudo ao meu redor parece encolher, formando borrões. Uma pressão passa pelo meu corpo e sinto como se eu estivesse caindo de um prédio. Tudo fica escuro e comprimido por um segundo e logo em seguida volta ao normal, mas em um novo cenário.
   Estou no meio do salão, de joelhos, e meu pai também. Ele olha para mim assustado. Encaro ao redor e os deuses me encaram. Sinto o calor do fogo atrás de mim e o forte odor, que faz meu olhos lacrimejarem e minhas narinas arderem.
   — Bisbilhoteiros – diz a Nix de costas para mim. Ela sobe a plataforma e vira-se. Sinto o ar mais denso ao meu redor com o seu olhar profundo, capaz de congelar o inferno.
   O medo me consome, se alastrando pelo meu corpo, me fazendo estremecer. Mas com o medo vem a raiva, pelo o que fez com a Milena e tristeza pelo o que aconteceu. Recebo uma chuva de emoções e não sei qual deixar ganhar. Cerro os punhos para me controlar.
   Tento me levantar, mas não consigo, algo parece me prender no chão. Sinto a pressão sobre meu corpo, me mantendo de joelhos. Meu pai tenta fazer o mesmo, mas não consegue.
   — Percebi sua presença assim que entrei aqui, Sara – ela diz. É a primeira vez que eu ouço ela dizer meu nome, e é estranho, como se fosse falado em outro língua. Sinto os olhares sobre mim.
   — Não recebi o convite e decidi entrar de penetra nessa reunião – Rebato em desacato.
   Em um piscar de olhos, ela aparece na minha frente, a centímetros de distância. Seus olhos encarando diretamente os meus. Eles são negros, com uma aura cinza ao redor deles, e finos feixes de brancos, são lindos e parecem tão profundos, capazes de me destruir. Estremeço com a aproximação.
    — Agora você sabe de tudo o que aconteceu – ela diz. Sinto seu hálito forte e suave sobre mim, como a brisa de um luar na praia. – eu decidi que você deveria ter visto o que viu, quero que você saiba que o que eu vou fazer daqui em diante não será a toa.
   Ela precisou provar algo para mim?
   Meu pai e eu nos entreolhamos. E percebo o medo no seu olhar, ele mexe a cabeça, negativamente, entendo o que ele quer dizer, que não devo falar mais nada.
   — Nenhum de vocês dois têm importância aqui – ela diz subindo de novo na plataforma. – então não se intrometam em mais nada. Hemera, leve os de volta para o quarto.
   — Nix, eu... – meu pai tenta falar mas ele hesita no momento em que ela encara ele. – quero muito conversar com você, temos coisas para resolver...
   Ela não diz nada, mas percebo um canto da sua boca se levantando, acho que querendo formar um sorriso.
   — Você é o único humano pela qual ainda mantenho respeito, Wesley, não desfaça isso – Nix diz e eu olho para Hemera que está com a mão esquerda erguida, ela gira a mão da esquerda para a direita e já sei o que ela está fazendo.
   Os símbolos se formam rapidamente no chão em baixo de mim e do meu pai. Todo o processo de abrir o portal ocorre e eu me preparo para o impacto, em segundos sinto que estou caindo e vejo um vislumbre da Nix me olhando e das sombras estranhas que o fogo causa no seu rosto, deixando ainda mais sombrio.
   Não dar tempo nem de gritar e o portal se fecha e nós dois caímos de joelhos na cama redonda do meu novo quarto.

Nix - A dama da noite Vol.I Onde histórias criam vida. Descubra agora