Capítulo 15

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   — O que aconteceu? – pergunta meu pai.
   Conto para ele tudo o que eu fiz no acampamento. Ele ri quando falo sobre a Helena e diz que não sabia que a deusa Momo tinha uma filha semideusa. Conto para ele sobre minha luta com a Ártemis e ele se espanta, seus olhos se arregalam e ele empalidece o que me faz rir. Até que conto que quando me machuquei, Ártemis me curou de imediato.
   Estamos no quarto, jantamos no mesmo salão onde tomamos café da manhã e viemos para cá. Tomamos banho e estamos deitados conversando. Temos muita coisa para conversar. Me ajeito na cama e fico de barriga para cima. O ar entra frio pela janela, mas o edredom que mantém aquecida.
   — Irei voltar – digo por fim.
   Ele virá o rosto já minha direção rapidamente, com as sobrancelhas arqueadas.
   — Sério? – pergunta.
   — Eu gostei – lembro da adrenalina correndo nas minhas veias, do suor descendo pelo meu corpo depois da luta, meu sorriso de gratificação logo depois, isso me deixa animada. As cenas passam pela minha cabeça, deixando uma sensação boa. – me senti livre e com a mente vazia. Pela primeira vez, não fiquei pensando em... – travo a voz. – tudo isso  você precisa ver o jeito que elas lutam, pai! Elas fazem a violência parecer arte!
   Meu pai solta uma risada. Devo estar parecendo uma criança quando vai em um brinquedo de parque pela primeira vez, então também sorrio. Mas percebo que a risada dele parece artificial, seus olhos não acompanham a alegria. Ele está preocupado.
   — Não precisa ficar preocupado, eu vou ficar bem – digo. – as caçadoras são cuidadosas, não vou...
   — Não é isso que estou pensando – ele me interrompe. Meu pai se vira na cama e rola para a beirada, onde se senta, encara a janela e por fim o céu noturno. – conversei com a sua mãe – ele diz com um grande pesar na voz.
   Eu me levanto apoiada nos braços e me sento na cama, com as pernas cruzadas. Ele se senta de forma curvada, vejo suas costas subirem e descerem com a respiração funda.
   — Trocamos poucas palavras – ele continua. – eu tinha que ser breve, então perguntei logo sobre nosso propósito aqui – isso me deixa alerta, é o que eu quero saber. A conversa com a Hemera sobre o que ela suspeita em meu propósito aqui ecoa na minha cabeça. – ela apenas disse que não queria que você ficasse solta no mundo, que lá fora não é mais um lugar seguro – não sei se rio ou me preocupo. – que aqui ela pode te proteger e te fazer crescer.
   — E você acreditou nela? – pergunto. Isso é estranho. Será que é o verdadeiro motivo? Aproximação? Proteção?
   — Não de primeira – ele diz. – mas ela parecia tão sincera.
   — E aquele conselhos sobre confiar em deuses? – pergunto com sarcasmo.
   — Você esqueceu isso quando quis ir pro acampamento com a Ártemis, não? – ele vira e me encara. Antes que eu abra a boca pra responder, ele continua. – eu não disse que confiei nela. Ainda duvido de suas intenções, mas o fato é que é o máximo que podemos tirar dela.
   Suspiro. Ele tem razão. Não vamos conseguir muita coisa. Então o que podemos fazer por enquanto é fingir que acreditamos nisso. O aviso da Hemera martela na minha mente. Sou tão importante como ela diz?
   — Perguntei sobre o que aconteceu para que ela fosse pega pela própria maldição – ele levanta e me encara. – mas tudo o que obtive foi uma resposta vaga de que ela foi descuidada, mas não vai vacilar novamente.
   Isso abre outra questão que eu não estava pensando. Como ela foi pega pela própria maldição? Quem a amaldiçoou? Então me lembro de manhã, quando a deusa Nêmesis invadiu o salão, ela estava furiosa com a Nix sobre alguma coisa que aconteceu com Hades. Terá sido ele? Será que Nix se vingou? Estremeço. Cada possibilidade abre uma questão pior.
   — Mas Nêmesis estava furiosa e queria logo uma conversa com a Nix, então antes de ela me dispensar, perguntei sobre como ela estava se sentindo com tudo isso que aconteceu – ele virá o rosto agora. Meu coração se aperta com a lembrança da revelação dela ontem, no salão do trono. Da brutalidade que ocorreu. Isso afetou meu pai, ele ainda gosta dela. – e aconteceu algo estranho, ela me lançou um pequeno sorriso, dizendo que isso era a menor das preocupações.
   — E porque isso te preocupou? – pergunto franzindo as sobrancelhas.
   — Porque o olhar dela estava vago, opaco e etéreo, ela estava estranha, sua voz era rígida, muito diferente de antes – ele diz com a voz em quase um sussurro. – seu sorriso era como uma ameaça.
   Um calafrio passa pela minha espinha. Porquê uma ameaça? Se se importar com a recuperação de um trauma desses é a menor das preocupações, então tem algo maior acontecendo. Não gosto de imaginar o que pode ser.
   Não sei se conseguiria conversar com a Nix, tentar entender tudo. Acho que não, ela não iria me contar o que planeja. Não sou ninguém pra ela nesse momento. Então conto o que eu sei para o meu pai. Tudo sobre a minha conversa com a Hemera, desde o fato de ela achar que a Nix quer que eu seja uma arma, até o fato de ela achar que a Nix possa querer me usar para libertar o deus Érebo.
   Ele enrijece, mas não diz nada. Apenas encara um ponto no chão, pensando, analisando e absorvendo tudo. Ele morde o lábio inferior sempre que está assim. Ele estreita os olhos, quando chegar em alguma conclusão, como faz agora.
   — Acho pouco provável que ela queira usar seus poderes – ele diz. – você contém poderes herdados de dois primordiais; Nix e o Caos. E sempre estiveram trancados, nunca foram treinados e sua mãe sabe do risco que isso trás ao ser libertado. Acho que você contém forças que seriam difíceis para até ela controlar.
   Algo dentro de mim se anima, uma pequena parte. Não posso ser controlada. Pelo menos não com meus poderes. A outra parte sente medo, pode acontecer coisas ruins se eu me descontrolar. Posso machucar ou matar alguém, ou até mesmo morrer.
   — Eu conseguiria derrotar a Nix? – pergunto curiosa.
   — Disse que seria difícil pra ela – ele levanta um canto da boca em um sorriso discreto. – mas não chega a tanto.
   — Então posso ser um risco? – tento imaginar essa possibilidade. De ser um risco para os deuses. Por isso ela usou a trava mental em mim, para me proteger e a todos. Não seria muito sábio da parte dela destravar isso. Não agora que já se passaram anos e os poderes provavelmente aumentaram.
   — E sobre o Érebo – ele continua me tirando dos meus pensamentos. – ele é perigoso demais, Nix precisou de Zeus e Hades para ajudá-la a prender ele. E ele não deve estar nada contente com isso, não perdoaria a irmã. O que quer que ela planeje, é pior e com certeza não tem a ver com ele.
   — Então é impossível que ele esteja envolvido nos planos dela?
   — Pouco provável – ele conclui
   Se ele estiver certo, tudo o que a Hemera suspeita é falso. Ou pode ser falso para meu pai. Hemera é uma deusa inteligente, não acho que iria se deixar enganar com achismo. Meu pai finalmente se deita e encara o teto. Eu continuo sentada, olhando pra janela.
   A lua ao fundo destaca o céu estrelado, poucas nuvens negras vagam pelo céu, e um vento gelado entra no quarto. Preciso contar uma última coisa para ele.
   — Hemera vai nos ajudar a sair daqui! – digo, esperando que ele não escute. Confiei em uma deusa e não sei se fiz o certo.
   — O que? – ele levanta exaltado. – como assim?
   — Ainda na nossa conversa, ela me propôs isso – viro o olhar para ele. – ela disse que a Nix está diferente e como eu disse, Hemera suspeita de várias coisas, ela tem medo de que algo maior aconteça. Ela não quer confiar totalmente na Nix até saber o que está acontecendo.
   — Ela está mesmo diferente – concorda sem olhar pra mim. Sua voz está baixa. – mas não sei se devemos confiar nela. Porque a Hemera nos ajudaria a sair daqui? Ela não ganharia nada!
   — Eu não sei, mas... – eu me aproximo dele e coloco as mãos em seus ombros. – não temos outra opção. Não sabemos o que vai acontecer se ficarmos aqui e nem se sairmos. Se for pra morrer, prefiro morrer tentando.
   Ele morde o lábio e franze as sobrancelhas, formando uma rugas na testa. Percebo pelo seu olhar que ele está cansado, já é visível as marcas do tempo em seu rosto. Ele não é velho, mas não tem a mesma energia de antes. Ainda mais agora, que ele tem que estar preparado para o que está vindo. Seu olhar hesita e ele assente devagar.
   — Preciso de um favor seu! – digo com a voz firme. – o senhor passa o dia aqui, então quero que descubra mais sobre o palácio, as saídas e para onde vão esses corredores. Os deuses que costumam passar por aqui, os horários em que cada uma está aqui, o que elas fazer... Hemera disse que tem que achar um dia e uma boa para nós ajudar, mas até lá vamos montar nosso próprio plano.
   — E você? – ele pergunta preocupado. A ruga se forma novamente entre suas sobrancelhas e eu solto uma leve risada.
   — Irei pro acampamento, treinar, ficar mais ágil e aprender a sobreviver em situação complicadas e ambientes hostis. Não podemos escapar sem nem conseguir nos protegermos direito. Não sabemos os perigos que podemos encontrar, agora que muitos deuses sabem sobre mim. Também tem o fato de que o acampamento pode ser uma boa rota de fuga, só tenho que descobrir como.
   — E você não acha que aqui é mais seguro? – ele pergunta suspirando.
   Eu encaro seus olhos verdes, iguais aos meus. Tiro as mãos dos ombros dele e me deito. Não sei mais aonde é seguro. Mas sei que devo aprender a me proteger e a lutar pra sobreviver. As coisas ao meu redor, são imprevisíveis. Sempre foi um segredo pra mim o que eu sou e todo esse mundo, agora que estou envolvida nele, não posso fazer nada além de encarar e ver no que vai dar.
   Suspiro devagar e digo:
   — Não quando o maior perigo mora aqui.

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   Acordo pouco antes do sol nascer.
   Meu pai ainda está dormindo profundamente, seus roncos comprovam isso. Eu me levanto e me espreguiço, meu músculos se esticam e relaxam ao se contraírem. Eu tomo banho e escovo os dentes, visto uma blusa verde sem mangas e uma calça de couro presta, junto a um sapato preto e branco. Prendo o cabelo em rabo de cavalo.
   Saio do quarto com os passos leves, tomando cuidado para meu pai não acordar. Viro para a esquerda e tento me lembrar do caminho que leva ao corredor das portas. O palácio está silencioso, mas sinto o ar pesado. É estranho, como se algo nos vigiasse o tempo todo. Estremeço um pouco e caminho mais rápido. Não sei que horas são, devem ser quase seis horas da manhã.
   Viro em um corredor em que eu nunca havia entrado antes. Há apenas uma tocha acessa, encima de uma porta de ferro no fim do corredor. A chama faz sombras macabras, e com a iluminação escassa, o corredor parece fundo, como se as sombras pudessem te engolir.
   Na porta, tem vários cadeados grandes e símbolos formando um círculo grande. Sinto-me tentada a entrar, parece que a porta me chama. Escuto sussurros, mas não sei se é apenas o vento. Um calafrio passa por mim. Encaro a porta por alguns segundos, como se estivesse em um transe, analisando-a, mas não crio coragem para ir até ela. Até que me viro e saio de perto. Não sei o que tem atrás dela, e não estou com vontade de descobrir.

Nix - A dama da noite Vol.I Onde histórias criam vida. Descubra agora