Capítulo 16

231 28 21
                                    

   Desço um lance de escadas e finalmente encontro o corredor das portas. Caminho por ele observando os outros símbolos. Em um, vejo o símbolo de um tridente e em outro uma espiga de trigo. Dos deuses Poseidon e Deméter, a deusa da agricultura. Em outra porta vejo um martelo e uma bigorna, acho que leva às forjas do deus Hefesto. Reparo que no fim do corredor, tem a maior porta. Ela é dourada, com vários entalhes em ouro, com uma fechadura esculpida delicadamente. O símbolo dela é uma montanha com pequenas construções no topo. A porta que leva ao olimpo.
   Eu queria poder explorar, mas nenhum deus me daria permissão para tal. Então esqueço e foco na porta que leva ao acampamento. Espero que a permissão da deusa ainda esteja valendo. Eu abro ela e a própria escuridão começa a tremer e a caverna aparece do outro lado. Sinto lufadas de vento e o ar agradável, mas quando estou quase entrando, escuto uma voz me chamando.
   — Sara – diz uma voz feminina. Reconheço a voz forte e suave, poderosa demais.
   — Nix – digo sem me virar. Sinto meu peito pesado. Como se o ar apertasse meus pulmões.
   — Quero conversar com você! – ela diz de forma fria. Algo na voz dela me deixa paralisada. Ela diz como uma ordem, não um pedido.
   — Sobre o quê? – pergunto criando coragem para me virar e encarar ela.
   Seus olhos negros me encaram, seu rosto está inexpressivo. O capuz está abaixado e seus cabelos negros descem em suas costas e seu peito, deixando seu rosto mais belo e delicado. Tudo nela parece ter sido feito com cuidado, para intimidar quando preciso, e ser belo sem dificuldade.
   Prendo a respiração com a sua presença, sinto o ar ao meu redor cortante. Ela se encosta na parede, algo que nunca imaginei que faria. Fica estranho, como uma pessoa normal.
   — Não tivemos uma conversa decente desde que você chegou – ela diz com uma calma surpreendente na voz. Seus olhos analisam meu rosto e eu faço o mesmo. Não consigo encarar seus olhos, eles parecem vasculhar a alma. Encontro alguns traços dela em mim, agora que analiso de perto. Mas ainda assim me sinto tensa, fecho a mão e abro devagar, tentando aliviar a tensão. Porque tenho tanto medo dela?
   De súbito, brota em mim várias emoções, raiva pela Milena, tristeza pelo o que aconteceu, gratidão por ter me dado a chance de ir pro acampamento. Não sei qual delas irá me dominar agora, mas tento me controlar. Essa é minha chance de ter uma boa conversa com ela.
   — Sei que fiz uma coisa ruim – ela diz desviando o olhar por um momento. – matei a filha de Morfeu como uma troca de favores...
   — O nome dela era Milena – digo com o coração pesado, meu estômago revira. Minha voz sai baixa e trêmula.
   — Mas mentiria se dissesse que me arrependo – sinto meu corpo esquentando, como uma onda de raiva que passa por mim. – o fato é que eu não quero que sinta raiva de mim pelos motivos errados.
   —  Como não? Você mandou uma pessoa inocente, por nada! – explodo. Mas ela não se abala.
   — Trazer seu pai não foi nada? – ela pergunta calma, com uma sobrancelha arqueada e isso me deixa com raiva. – o plano era trazer só você. Não somos culpadas pelo o que nos tornamos, Sara. Você mais do que qualquer um deveria saber, afinal, podemos ser classificadas como assassinas, não?
   Sua voz vaga pelo corredor carregado de poder. Sinto o ar escapando dos meus pulmões, isso me acerta como um tiro de canhão. Minhas pernas tremem e meu corpo ameaça se romper no meio. O peso na consciência luta contra a raiva, querendo me dominar. Ela é alta, de modo que tenho que levantar a cabeça para poder encarar ela. Nix cruza os braços.
   — E porque eu tinha que vim? – pergunto, esperando mudar de assunto. Quero que ela ceda e fale logo de uma vez.
   — Porque vocês insistem nessa dúvida? Já não falei o motivo? – ela franze um pouco as sobrancelhas. Deixando seu rosto estranho.
   — Mas não parece sincero! – digo.
   — Então o problema não é comigo, é com o que você acha que é verdade ou não – Nix caminha na minha direção. Eu dou um passo para trás, e minhas costas batem na parede atrás de mim. Ela hesita um pouco e para alguns centímetros na minha frente.
   Reparo em seu olhar, diferente. Por um instante vejo um vazio, como o infinito e a escuridão da noite, mas logo se ilumina, como se lua estivessem neles. Seus cílios longos fazem sombras belas ao redor dos olhos, deixando-os profundos. Ela ergue a mão na minha direção e eu prendo a respiração, sinto calafrio no corpo todo e eu tateio a parede, procurando pela porta como se eu pudesse escapar por ela a qualquer momento.
   Até que ela toca meu queixo e minha bochecha e eu solto a respiração devagar. Seu toque é suave e sua pele é fria e macia, ela irradia poder. Nix está tão perto que sinto seu cheiro doce. Sua boca se fecha em uma linha tênue e ela contrai os lábios. Meu corpo fica mais leve e algo dentro de mim parece se desprender, sinto como se meu coração fosse pular fora do peito. Logo percebo o motivo; É a primeira vez que toco nela. Não pelo fato de ela ser uma deusa, e sim por ser a minha mãe.
   Sempre quis esse momento e aqui estamos. Ela acaricia meu rosto e coloca devagar uma mecha de cabelo atrás da minha orelha. Eu não consigo me mexer e sei que não é por magia, e sim porquê estou gostando. Sinto como se seu toque fosse tudo o que eu precisava. Ela me acaricia com o polegar e eu simplesmente esqueço a raiva.
   — Sabe que eu nunca te abandonei, não é? – ela pergunta e eu não respondo. Apenas encaro seus olhos. – toda noite, eu observava você, vi seu crescimento de longe, e me controlava para não aparecer pra você. O quão estranho seria para uma criança se uma deusa aparece dizendo ser a mãe dela? – ela solta uma pequena risada, leve demais e rápido demais, duvido se realmente aconteceu.
   Sinto um nó na minha garganta. Ela tira a mão e é como se eu saísse de um transe. Ainda sinto seu toque, marcado na minha pele, gelado e forte. Minha cabeça parece leve, como se eu tivesse dormido em nuvens.
   — Estou quebrada demais, mas achei um jeito de me reconstruir – ela diz se virando. – e não queria que você sentisse ódio de mim. Sei que não fui presente, mas foi para te proteger. Nenhum deus primordial teve um filho semideus antes, e eu achei que como forma de proteção, você deveria ter uma vida normal. Você não escolheu ser o que é, então não merece as consequências disso.
   A voz dela é calma, mas está aumentando, ficando mais grave.
   — Se eu fui traída e sofri o que sofri, o que poderia acontecer com você? – ela pergunta, mas sei que não quer a resposta. Ela vira o rosto e me encara. – não vim aqui pra pedir pra você me amar. Mas se tiver que me odiar, quero que pelo menos saiba a minha versão da história.
   Ela então ergue a mão e gira o pulso levemente. Um portal se forma no fim do corredor e ela caminha na direção dele. Sua capa balança atrás de si. Eu reúno coragem e digo com a voz trêmula.
   — Se me ama tanto, porque não me diz tudo o que você planeja? Eu sei da guerra, sei que você quer vingança... – minha voz se perde no ar e eu respiro rápido.
   Por um instante, me odeio por perguntar isso. A Nix, minha mãe, finalmente se abriu comigo. Não falou o que eu queria ouvir, mas falou o que eu precisava. Mas não tenho coragem para dizer o mesmo, não sei se sinto o mesmo. Ainda tenho que absorver tudo, assimilar minhas emoções.
   — Justamente porque eu te amo! – ela diz.
   Mas algo não combina nessa frase. Talvez o tom de voz, ameaçador e misterioso, ou o fato de ela me amar tanto ao ponto de não confiar em mim. Não sei mais no que acreditar. Em que confiar ou em quem. Antes de atravessar o portal, ela se vira e me encara, não vejo mais o brilho em seus olhos. Eles parecem sombrios e opacos.
   — Sei o que você quer – continua. Sua voz está dura agora. – não me faça te ver como inimiga, Sara. Se você se intrometer nos meus planos, irá pagar como qualquer um – seu rosto está inexpressivo, consigo sentir o ódio irradiando dela, não mais a calma. O ar fica mais gelado e as paredes parecem se curvar diante dela. A luz parece vibrar quando ela fala. Nix se vira e encara o portal. – se você procurar se envolver com coisas que estão fora de seu alcance, será tão culpada quanto qualquer outro pelo o que vai acontecer. – E então some através do portal.
   Me pergunto se essa conversa realmente aconteceu. Sinto meu corpo pesado novamente, com uma sensação estranha. Parece que sou capaz de desmoronar se eu me mexer. Meus pensamentos estão bagunçados, como se uma névoa cobrisse meu cérebro. Coloco a mão na parte do meu rosto onde ela me tocou e fico sentindo a minha pele, lembrando da sensação. Respiro devagar, enquanto meu coração se acalma.
   Minha alma ainda está agitada.
   Não sei quantos minutos se passam, minha mente voa em vários pensamentos. Mas finalmente caio em mim e saio do transe. Atravesso a porta do acampamento e saio da caverna. O sol já está nascendo, vejo resquícios atrás das montanhas e logo sou envolvida por lufadas do ar limpo.
   Respiro profundamente, esperando que o ar exploda meus pulmões. Algo grande está acontecendo, algo que eu não compreendo. Algo que é um perigo, não só para mim. Estou mergulhada em mistério e não posso fazer nada. Mas irei fazer. Irei escapar, livrar meu pai e eu disso. Irei agir como minha própria deusa da salvação.
   Desço pro acampamento determinada. A cada degrau, uma parte de mim parece se afogar. Tento tirar minha mente da minha própria escuridão.
   Uma guerra se aproxima.
   Uma guerra em que nem mesmo os deuses estão impunes.
   Uma guerra inevitável.
   Uma guerra trazida pelo desejo de vingança da noite.

Nix - A dama da noite Vol.I Onde histórias criam vida. Descubra agora