Capítulo 18

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   Sei que estou melhorando.
   Mas estou longe de estar boa como as outras caçadoras. Treinei bastante no último mês, mantive minha mente focada. Percebo que estou mais ágil, meus reflexos estão mais rápidos e eu não canso tão fácil como antes. O treinamento com as caçadoras me faz bem. Quando estou treinando, esqueço a loucura que minha vida se tornou.
   Mas não por muito tempo. Não posso me dar o luxo de esquecer completamente, ainda não estou livre. As coisas que eu descobri ainda me rodam; Nix, vingança, guerra... Mas não são minha prioridade, não ainda quando eu ainda sou obrigada a viver em seu palácio.
   Minha mira com arco e flecha é boa, mas tive muitas dificuldades. Eu não conseguia me manter focada, mas trabalhei nisso com meditação. As caçadoras sabem como fazer com que nossa mente se mantenha  leve e focada, isso é essencial não só para lutar, mas também para não surtar. Mas apesar de ser boa com essa arma, sou mais letal com a lança, consigo fazer melhor os movimentos e acho mais prático de manusear, além de que pode ser controlada a longas distâncias. No começo eu era péssima com espadas, mas Ártemis me ajudou muito com isso, e apesar de não ser tão boa agora, também não sou ruim.
   Minhas mãos doem, minhas costas parecem pesadas e vejo mais olheiras embaixo dos olhos, sinais do cansaço. Mas eu gosto disso, gosto dessa sensação de adrenalina de todo dia.
   Apesar de Ártemis ter me ajudado no começo, não posso dizer que nos aproximamos por causa disso. Ártemis ainda evita uma certa aproximação comigo, não sei o porquê. Ela não é muito carinhosa comigo, mas também não é rígida demais. É como se eu fosse um meio termo, não tivesse um propósito aqui, ou meu treinamento não seja importante, ela só me ajuda no básico. Ártemis parece preocupada, raramente aparece no acampamento e quando aparece, convoca sempre uma reunião com as caçadoras da assembleia.
   Eu sei que algo está errado. As caçadoras treinam mais pesado, algumas voltaram cedo das missões. Tento não me preocupar, mas não consigo. Tudo está estranho, não sei se é minha mania de procurar coisas onde não tem nada, de querer correr atrás do que eu não entendo. Mas são tantas coisas que eu tenho que pensar, que prefiro focar no agora.
   Para não sufocar. Para não surtar. Então me concentro na luta que estou prestes a travar com a caçadora Ellie. Ela tem a minha altura e parece ter quarenta anos. Seus olhos são azuis e seu cabelo loiro curto na altura do queixo. Descobri semana passada, que ela é uma caçadora desde a primeira revolução industrial. Hoje preciso mostrar o que aprendi no último mês, em uma luta oficial. As caçadoras se aglomeram para ver a novata lutando.
   — Você consegue – diz Helena me dando uma lança de bronze. A ponta cintila com a luz do sol. – você é rápida. Se mantenha em movimento. Faça ela correr.
   Meu sangue lateja de adrenalina. Minha pulsação estão tão alta que mal escuto as vozes ao meu redor. Minhas mãos tremem um pouco e eu já começo a suar de nervosismo. Respiro fundo.
   Ellie dar voltas como uma leoa, segurando adagas, uma em cada mão. Sua espada está presa na cintura. Como eu não tenho a imortalidade, ela não tem a permissão de me matar, apenas ferir. Espero que nenhum dos dois aconteçam.
   Seguro a lança com força e desajeitadamente a posiciono. De primeira coloco a ponta para trás, mas logo percebo e ajeito, entrando na posição certa. A perna direita para trás, a esquerda flexionada para frente. O braço direito curvado pra trás, segurando a parte traseira da lança e o braço esquerdo segurando no meio, perto da ponta.
   Aumento a concentração e apuro meus sentidos. Ellie me olha com um sorriso estranho, não sei se para me acalmar ou se ela me ver como uma presa fácil. E então tudo começa. Ela avança na minha direção e eu sigo o conselho da Helena e procuro me movimentar sempre. Ellie corre com as adagas em punho e desfere um golpe, mas por instinto eu bato com a lança na mão dela e me jogo para o lado antes que eu seja atingida pela outra adaga.
   Eu giro a lança de uma mão para outra, deslizando ela entre meus dedos e antigo a barriga dela com o lado sem ponta, empurrando-a. Ellie cambaleia para trás e eu corro na sua direção com a lança erguida, mas ela é rápida. Uma de suas adagas voam até se cravar no chão à minha frente, onde eu tropeço e a lança cai da minha mão. Então um punho me acerta na lombar e provoca ondas de dor pelo meu corpo inteiro. Meus joelhos tremem e eu caio.
   Ellie sorri e isso me deixa irritada. Minhas pernas se movem sozinhas; engancho o pé na perna dela e puxo pra frente, o que a faz despencar. No segundo instante estou em cima dela, apesar da dor excruciante nas costas. Um murmúrio se forma entre as  caçadoras, de surpresa. Mas algo muda. Ela joga a cabeça para a frente me atinge no nariz com força. A dor faz lágrimas descerem, o sangue escorrendo. Ela me joga para trás e eu caio sentada com a mão no rosto.
   — Aproveite cada segundo da imobilização do oponente – ela diz pegando a adaga no chão.
   As caçadoras aplaudem.
   Eu me levanto com a visão turva por conta do nariz. Minha cabeça lateja e eu tento respirar fundo, mas é difícil, arde muito. Eu pego a lança no chão e minha raiva explode. Não posso perder assim tão facilmente, tenho que pelo menos mostrar que sou difícil de derrotar. Eu corro na direção dela com a lança erguida, dou um pulo no ar, pronta para ferir ela, mas Ellie é mais rápida.
   Ela desvia no último segundo e chuta a minha mão. Eu solto a lança e ela cai no chão. Antes que eu perceba o que acabou de acontecer, Ellie pula por cima de mim em um mortal incrível. Ela cai perto da lança e a pega. Ellie se levanta e me lança um sorriso debochado. O que acontece em seguida é muito rápido.
   Ela ergue a lança entre as minhas pernas e bate com uma força surpreendente na perna direita, o que me faz tremer, a dor lateja pelo meu osso. Então na mesma velocidade, ela bate na perna esquerda, levantando a lança para o lado, o que me faz cair rolando no chão.
   Meu rosto bate no chão e eu vejo tudo preto por um segundo. Antes de a minha visão voltar, sinto algo afiado na minha garganta. Até que eu vejo ela em pé, com a lança erguida e a respiração ofegante. Se ela mover mais um centímetro, a ponta da lança entra no meu pescoço.
   As caçadoras ovacionam. Um sorriso se forma no rosto dela, que gira a lança entre os dedos e grava no chão perto do meu pé.
   — E eu nem precisei usar a espada – diz erguendo a mão para me ajudar a levantar. Eu aceito a ajuda e me levanto. A dor que passa pelo meu corpo, me faz esquivar um pouco. – você precisa treinar mais, mas se saiu bem.
   Eu tento dar um sorriso, mas meu rosto dói e eu saio mancando do campo. Já é quase de noite, o sol já começa a sumir atrás das montanhas. Tenho que voltar para o palácio da Nix. Para a minha realidade. Helena vem na minha direção com um sorriso enorme no rosto. Ela é filha da deusa Momo, é comum ver ela sorrindo.
   — Você foi incrível – ela diz com um brilho nos olhos. – na minha primeira luta, eu quebrei dois dentes, você saiu na vantagem – e então desaba a rir.
   Apesar das dores, me sinto bem. É confortante saber que estou ficando boa, que dei trabalho. Algumas outras caçadoras me parabenizam. Helena me guia até o nosso canto preferido; um banco de areia na margem do rio. A visão de lá é linda, o rio banha nossos pés e temos uma boa visão do vale entres as montanhas que é o acampamento. Sentamos lá e eu sinto um alívio. Meus músculos doem, mas eu gosto da dor.
   Eu encaro o rio, com a luz reluzindo em suas águas claras, uma brisa suave passa por mim. Aqui é tão calmo. Então as coisas começam a vim pra minha cabeça; o aviso da Nix, a possibilidade de uma guerra, uma vingança. Isso ainda me atormenta. Não tem um só dia em que eu não pense nisso. Desde aquele toque, desde que ela me avisou para me intrometer do que quer que seja, meu coração pesa só de lembrar disso. Respiro fundo e deixo tudo acumulado na minha cabeça.
   — Porquê você está aflita? – pergunta Helena. Eu pisco os olhos, saindo do meu transe pessoal.
   — Ah, o que? Como assim? – pergunto confusa.
   — Tem algo te incomodando, eu sinto isso – ela não está sorrindo. – assim como eu sinto algo estranho no ar.
   — Você também percebeu? – minha voz soa diferente, distante. Também um pouco de alívio, não sou a única que percebeu isso.
   — Todo mundo percebeu, a deusa Ártemis raramente aparece aqui. Ela anda muito ocupada, e a general Tânia está mais rigorosa.
   — O que você acha sobre isso?
   Ao longe, o sol já começa a descer para detrás das montanhas, fazendo sombras enormes nos campos. Helena não responde, ela encara o rio, pensativa. Apesar de ser divertida, percebi também que ela é inteligente. Assim como a mãe, que percebeu antes de todos o que a Nix queria.
   — Estão comentando sobre algo no Olimpo – diz Helena. – a deusa Ártemis comentou sobre os deuses estarem inquietos. Mas ninguém realmente sabe dizer o que é.
   Já faz um mês desde que eu vi um deus no palácio da Nix. O que é estranho, já que também faz um mês desde que vi a Nix, e os deuses só aparecem por lá quando ela está. Por excessão, de seus filhos, que tem permissão para entrar lá, assim como a deusa Nêmesis fez quando nos atacou no café da manhã. Hemera ficou de me ajudar a fugir, mas ela também desapareceu, não sinto nem mesmo sua presença.
   Eu me deito no banco de areia, sentindo o frio que o rio emana e a brisa, encaro o céu quando um barulho ecoa pelas montanhas. Eu me levanto em um pulo, assim como a Helena. Meu coração bate rápido e eu olho para os lados assustada. O barulho é alto e longo, como o de um berrante. Não sei de onde vem, mas é capaz de se ouvir por todo o acampamento.
   O berrante ainda toca mais duas vezes seguidas. Os pássaros saem das árvores assustados. O barulho parece fazer a água do rio se agitar. Ele é grave e profundo, faz o meu corpo tremer. Não sei o que está causando isso. As caçadoras que estavam nessa área, olham uma para outra. Seus olhos estão arregalados e eles cochicham entre si. Uma passa por mim e sem querer toca em mim, sinto no mesmo instante que ela está fria. As caçadoras seguem para a área das cabanas, vindo de todas as direções. Elas interrompem suas atividades e vão de onde vejo o barulho.
   Vejo em seus semblantes que elas estão nervosas, algumas sorriem e dizem algo como “finalmente”. Elas caminham hesitante e eu não entendo nada. Viro para Helena, e ela encara as caçadoras indo para as cabanas. Seu rosto está pálido, consigo até sentir o medo em seu olhar.
   — O que está acontecendo? – pergunto. Aproximo dela e toco seu ombro. – Você está bem?
   — O berrante – ela diz trêmula. Sua respiração está pesada. – precisamos ir.
   Ela começa a caminhar sem nem se importar comigo. Para não ficar para trás, corro e a alcanço. Com um pouco de raiva, pergunto novamente.
   — O que está acontecendo? Porque estão se reunindo? – olho para as cabanas e vejo que a maioria já está reunida ao redor da fogueira. É uma área grande, mas algumas ainda tem que ficar vendo das passarelas próximas.
   — O berrante tocou três vezes – diz olhando para a frente. – isso nunca aconteceu desde que eu cheguei, mas já ouvi as histórias. Isso não é nada bom.
   Tento controlar a raiva. Sinto vontade de dar um tapa nela. Mas respiro fundo e me controlo. Ainda consigo ouvir o barulho do berrante ecoando. O vento parece rodear as caçadoras reunidas, como uma proteção.
   — E o que significa quando o berrante toca três vezes? – pergunto em uma última tentativa.
   Ela demora alguns segundos para responder. Quando ela se vira para mim, seu rosto está mais assustado do que antes. Ela parece pálida. Não sinto a alegria contagiante dela.
   — Quando o berrante toca três vezes, quer dizer que temos que nos reunir aqui – ela diz com a voz um pouco trêmula. – a deusa Ártemis está nos convocando – ela hesita e olha para as caçadoras. Subimos uma pequena passarela na direção delas. A única coisa que se destaca, é a fogueira alta, cedida pela deusa Héstia. Helena respira fundo e conclui. – para uma reunião de guerra.

Nix - A dama da noite Vol.I Onde histórias criam vida. Descubra agora