capítulo 9

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   A cama amortece o impacto.
   Mas infelizmente, ela não é capaz de amortecer o impactos do últimos acontecimentos. Tudo o que eu vi e ouvi, está me rondando, como moscas sobre algo podre. Podres como aquele homem. Penso, e isso faz lágrimas acumular nos meus olhos. Não por pena, mas pelo o que eu vi. Três mortes, dentro de um mês, apesar de achar que esta última foi merecida.
Mas sinto raiva também pelo modo como fui tratada. Afinal, para que diabos ela me quer aqui? Minha mente ainda tenta ligar tudo o que aconteceu com o fato de que uma guerra ainda se aproxima. A reunião não era só pra matar aquele homem, claro que não, tem algo mais profundo. Mas não posso fazer nada para descobrir no momento.
   Me sento na cama e tento ignorar as milhares de coisas que a minha cabeça pensa e remodela, querendo criar algo em que se apegar, apenas para não encarar o medo.
   Olho para meu pai e ele está deitado na cama, olhando para o véu azul que desce do teto, banhando a cama em seda confortável. Ele parece perdido, caminhando sozinho pelo seu mundo particular. Ele ainda está tentando assimilar o que aconteceu. Agora tenho certeza mais do que nunca, de que ele ainda gosta da Nix. Apesar de isso ter se abalado quando a Milena morreu, então não sei exatamente até onde esse sentimento vai.
   Mas não compartilho do mesmo sentimento, tudo que sinto é raiva dela. E um pouco de pena. Ela me abandonou, apesar de eu saber que por motivos óbvios, ainda não consigo engolir isso, me trouxe pra cá, um lugar desconhecido, sem me dar explicações, e matou uma pessoa só para ter o que queria.
   Agora me dou conta de algo, quando a Momo citou os deuses para mim, eu não vi ela citando Morfeu, ou seja, o que quer que tenha acontecido, ele não está do lado da Nix. Será se ele irá confrontar a Nix pelo o que ela fez com a filha dele?
Levo um susto quando meu estômago ronca e é quando percebo que estou fraca, vomitei os resto do almoço e estou morta de fome. Mas a comida ficou na biblioteca, pois foi lá onde combinamos que íamos jantar.
   Caminho até a porta grande e a empurro, mas ela não abre, nem se mexe. Coloco força com as duas mãos e com as costas, mas ela não se mexe nem um centímetro. Dou socos e chutes na porta, mas ela nem arranha. Bufo de frustração.
Espera, que cheiro é esse?
   Sigo o cheiro de carne até uma mesa perto da janela que eu não havia notado. Em cima dela, encontro um banquete.
Em pratos pequenos de porcelana elegante, estão vários tipos diferentes de comida.  Uma fatia de peixe com queijo cremoso e espargo por cima e uma sopa de legumes, soltando vapor no ar frio. Um prato está cheio de uma carne suculenta e grossa, acompanhada de batatas fritas douradas e um milho de cogumelos, cebolas e ervas.  Dentro de um pequeno balde cheio de gelo está um litro de vinho e de água, e duas taças e alguns talheres repousam do lado.
Meu estômago ronca de felicidade ao ver aquilo.
   Meu pai também sentiu o cheiro, porque ele vem até a mesa. Eu quero conversar com ele, mas quando me dou conta, já estou atacando a comida. Meu pai corta a carne, o suco vermelho sangra, manchando a porcelana branca. Mas não tenho tantos modos quanto ele e como com a mão. Devoro a carne e como todas as cebolas caramelizadas.
   Bebo metade do litro de água sozinha, ela desce pela minha garganta liberando uma sensação de alívio, abrindo caminho para o que estava me sufocando. Meu pai come pouco, reparo na mandíbula serrada e na maneira lenta em que ele come, seu olhar vago denuncia sua preocupação.
   — Ele merecia aquilo - digo. Minhas palavras pairam no ar eu sinto um quase arrependimento por dizer isso, mas continuo. - não se culpe.
Ele quase engasga com um pedaço de carne na boca.
   — Eu sei, mas a questão é mais profunda - ele diz com a voz trêmula. Eu sei exatamente como ele está se sentindo. Ele abre a boca para continuar mas não consegue, e então torna a fecha-las.
Me ajeito na cadeira e tiro a sandália, jogando-as em um canto. Espero ele terminar de comer e beber um pouco de vinho.
   — Você ainda gosta dela, não é? - pergunto para ele, mas parecendo que foi para o vento, pois minha voz sai vaga.
Ele enrijece um pouco e bebe um gole de vinho.
   — Meu sentimentos são controversos - ele diz colocando a taça na mesa e encarando o líquido avermelhado dentro. - eu estava muito apaixonado por ela antes de termos você, mas assim que ela sumiu, nas raras vezes que nos encontrávamos, muitas vezes eu ficava mudo, não sabia o que falar, pois eu não sabia o que sentir. Meu sentimento foi diminuindo, claro, mas não foi embora.
   Ele fala com um tom de tristeza e lembrança. Antes eu estava preocupada com o que eu estava sentindo, estava cega para tentar ver o que ele estava sentindo. Briguei com ele sem ao menos tentar ouvir seu lado da história.
   — Ficar tão próximo dela novamente, ainda mais agora que você descobriu quem é, ainda é estranho - eu encaro ele com um olhar de uma mãe que encara o filho contando um dia triste na escola. - não sei o que ela quer com você, mas tentarei descobrir.
   Ele me lança um olhar, que tenta ser confortante, de amparo, mas que me é estranho, como se ele estivesse tentando acreditar em suas próprias promessas. Essa história de tentar nos tirar desse palácio é estranho, soa como se eu estivesse em uma prisão. Mas não duvido que seja muito diferente disso. Mesmo com comida decente e um quarto bonito, isso aqui ainda é minha cela.
   — Eu acho que odeio ela - digo me levantando devagar com a barriga cheia e indo para a cama.
   — Ódio é uma palavra muito forte - meu pai diz com a voz pesada.
   — Amor também - digo já sentando na beirada da cama.
   Ele não me responde e apenas respira fundo. Ficamos assim, nesse silêncio estranho. Apesar das várias coisas que quero falar com ele, não sei por onde começar e também acho que não é um bom momento pra falar de guerra. Estou cansada, meus músculos já estão começando a doer por conta dos exercícios que eu pratiquei e depois de tudo o que eu vi, só quero esquecer tudo.
   Tento repassar tudo o que eu vi para puxar um assunto simples, apenas para quebrar esse gelo estranho, não quero falar de guerra agora, já temos preocupações demais. Então me lembro da Momo.
   — Pai - chamo e ele vira o rosto na minha direção. - hoje eu conheci a Momo - ele abre um pequeno sorriso, acho que ele também conhece ela. - ela foi muito gentil, parecia ser uma deusa confiável.
   — É como eu já te disse - ele explica. Por um momento me sinto de volta ao passado. Às tardes em que passávamos falando sobre mitologia. - Nenhum deus é confiável, tudo o que os humanos sabem sobre eles é o que os deuses querem que os humanos saibam. Esqueça o que você ler na internet ou em livro de história, os deuses são imprevisíveis, escondendo-se sobre incontáveis máscaras.
   Sinto uma sensação de nostalgia e eu deixo escapar um sorriso. É tão bom conversar com ele. Percebo que se sente a vontade conversando sobre isso, sempre foi assim. Um peso cai sobre minha consciência e logo concluo que tenho que pedir perdão por tudo o que eu disse.
   — Desculpa - digo. - por tudo o que eu falei. Você não teve nenhuma culpa na morte da Milena. Eu estava errada, muita coisa estava acontecendo e ainda está na verdade, mas não era motivo pra dizer aquelas coisas.
   Ele me joga um sorriso bonito e seus olhos se iluminam, mas vejo no fundo deles que meu pai está cansado. Não fisicamente, mas psicologicamente. Ele se envolveu com uma Deusa, teve uma filha com ela, descobriu que toda a mitologia grega era real, teve que se preocupar em deixar a filha ter uma vida normal, teve o amor da vida dele perdido e agora tudo pelo o que ele lutou se foi. Eu sei de tudo, o passado dele voltou com força.
   — Não precisa se preocupar - ele diz. - você sempre terá meu perdão, meu amor.
   Levanto-me e abraço ele. Seus braços me envolvem e pela primeira vez em muito tempo, eu me sinto completamente segura. Não consigo segurar as lágrimas e elas descem devagar. A sensação que eu sinto agora é de que, não existe perigo capaz de me tirar essa segurança paternal. Nem mesmo uma deusa.
   — Agora vá tomar banho - ele diz afrouxando os braços.
   — Por acaso eu estou fedendo? - pergunto com ironia. Fazendo uma pose dramática com as mãos na cintura.
   — Prefiro não comentar - ele diz e nós dois rimos.
   Próximo da porta que dar ao corredor, tem uma outra na parede adjacente, ela é menor, feita de madeira lisa de carvalho, com entalhos de uma lua e várias estrelas. Abro-a e entro no banheiro.
   O chão é de um azulejo cinza e as paredes de tijolos de mármore branco. Tem uma pequena janela no alto da parede paralela ao da porta. Não tem banheira, apenas um chuveiro alto, um espelho grande de corpo todo e uma pia de cerâmica cinza com detalhes branco em pingos. Um vaso sanitário branco está paralelo ao chuveiro.
Só isso e nada mais, nem um sabonete, nem shampoo, nem condicionador, nem nada.
Entro no banheiro e fecho a porta. Tiro a roupa preta e o cinto dourado, colocando-os em cima da pia. Não tem nenhuma outro suporte para coloca-las.
   Faço xixi e ligo o chuveiro. A sensação de alívio me atinge em cheio, ainda mais com a água morna do chuveiro, massageando meus músculos. Sinto a água descendo pelo meu corpo, percorrendo um caminho gostoso enquanto alivia minha tensão. Tento não pensar onde estou e no que ainda vai acontecer, tento não pensar no fato de não ter um mísero sabonete aqui.
Esfrego os dedos no cabelo e nas dobras do meu corpo, limpo o rosto e mesmo sem sabonete, me sinto limpa e mais leve.
   A roupa que a Hemera me deu está fedendo a fumaça e podridão, mas não tenho nenhuma outra. Grito pro meu pai trazer para mim o lençol da cama e ele aparece alguns segundos depois com um lençol azul, eu enrolo no corpo e saio do banheiro.
   — Você não vai vestir aquela outra roupa? - ele pergunta perto do guarda roupa.
   —Está fedendo - respondo. - vou ter que usar isso como vestido - aponto para o lençol enrolado no meu corpo.
   — Mas nesse guarda roupa tão grande deve ter alguma roupa - ele vai até o guarda roupa e quando eu vou gritar para avisar que não tem nada, já é tarde demais.
Ele abre a porta e encara lá dentro.
   — Uau - sussurra.
   Me aproximo e vejo o que ele tanto admira. Quando abri ele pela primeira vez estava vazio, mas agora está cheio de roupas. Vestidos longos e curtos das mais variadas cores, com dobras e entalhos brilhantes. Logo na gaveta de baixo tem vários braceletes e pulseiras e colares de pérolas e diamante reluzente, com pingentes das mais variadas figuras. Abro as outras portas e vejo não só roupas femininas, mas também masculinas para meu pai.
   Em uma gaveta há apenas calças e jaquetas, algo que eu gosto de usar. Fico admirada passando a mão pelas sedas macias e do algodão fino.
   Escolho uma calça surrada para vestir e uma blusa azul de alças finas. Meu pai pega um punhado de roupas e se enfia dentro do banheiro.
   Logo desisto de ficar analisando as roupas e me jogo na cama. Meu corpo se choca no colchão grande e macio e logo sinto meus músculos finalmente relaxarem. Deito-me de barriga para cima e fico olhando o véu azul, perdendo-me em meus pensamentos.
Minhas lembranças voam por tudo o que eu vi e ouvi, tudo que aconteceu. Mas para justamente na Winney. Não posso dizer que agora ela faz muita falta, pois não estava lembrando dela até agora, mas faz diferença. Queria que estivesse aqui comigo, vendo tudo pela qual ela passou a infância dizendo que era baboseira enquanto eu acreditava cegamente.
Imagino o que ela faria se estivesse aqui. Estaria reclamando do mal tratamento, mas com certeza, estaria querendo explorar esse lugar. Admiro esse espírito aventureiro dela. O que ela está fazendo agora? Meu coração se aperta lembrando dela e do que eu fiz para essa amizade acabar. Balanço a cabeça e afago esses pensamentos. As lágrimas se acumulam nos meu olhos, mas não as deixo cair, não agora.
   Olho ao meu redor e percebo que não tem outra cama para meu pai, então ele vai ter que dormir comigo. Ele sai do banheiro vestindo um calção de seda revelando suas pernas grossas e uma camisa branca com mangas longas.
   —Ainda bem que nem precisamos de sabonete para ter um banho decente, não é? - Caímos na gargalhada e de repente sinto toda a tensão se dissipando.
   Ele se joga na cama, mas como ela é grande, tem uma boa distância entre a gente, a ponto de que ele não cai em cima de mim, nem chega perto.
   — Amanhã vai ser melhor do que hoje? - pergunto encarando o teto.
   — Se eu estiver ao seu lado, todo dia é melhor do que o outro - ele aproxima de mim e me dar um beijo na testa. - boa noite meu amor.
   — Boa noite - sussurro com a voz fina, sinto minha garganta bloqueada e o peito pesado.
   Não acho que amanhã será melhor do que hoje, nem mesmo que se estivermos juntos tudo vai ficar bem. Sinto algo no ar, um brisa pesada, inerte e fria, como se uma tempestade se aproximasse. Sinto uma sensação de vazio no estômago, algo está me deixando ansiosa, mas não sei dizer o que. A tensão e o medo me fazem sufocar, dissipando cada esperança que eu tinha. Não sei se vou embora daqui, não sei se nós vamos embora daqui, e algo me impede de acreditar nisso.
   Eu vi o que a Nix é capaz, não sei se ela teria coragem de fazer isso comigo ou com meu pai, mas tenho certeza de que nenhuma outro Deus hesitaria em fazer. Eu não sou boba, sei porque estou aqui, sem que a Nix me mantém protegida para que ninguém me mate ou me sequestre para abusar dos meus "poderosos poderes". De uma certa forma ela me mantém protegida, mas isso não diminui a raiva que eu tenho dela.
   Meu pai se afasta e se enrola em um lençol cinza, deixando-me com outro mais grosso e macio. A respiração dele fica mais fraca e constante, e ele começa a roncar baixinho, então percebo que ele dormiu. Olho para a janela e para a cortina aberta, dando para o céu estrelado e escuro, com nuvens deslizando embaixo da Lua. Algumas partes mais no horizonte, está azul escuro, lutando para tomar a escuridão dominante. Apesar de fantástico, não consigo admirar, nem achar beleza. Tem dias que nos sentimos tão vulneráveis, que somos capazes de olhar para o céu noturno e não ver a estrelas, apenas a escuridão entre elas.
   Então, finalmente, liberto meu coração e rompo a barragem, deixo minhas emoções me dominarem e minha mente pensar o que ela quiser, me afogo em pensamentos e ansiedades, deixando minhas lágrimas descerem.

Nix - A dama da noite Vol.I Onde histórias criam vida. Descubra agora