Não sei quantas vezes acordei assustada.
Se eu for contar com essa, acho que mais de seis vezes. Toda vez que eu fecho os olhos, a Milena morrendo, o homem ficando podre, a possibilidade de uma guerra; tudo me atinge em forma de pesadelos e fazem meu coração acelerar e eu ficar atordoada. Meu sangue esquenta e eu acordo em um impulso incômodo.
Eu fico mais agoniada quando percebo que não estou mais no conforto de casa. Sinto minha garganta seca e minha cabeça doendo, meu coração está se acalmando, mas ainda sinto o sangue quente nas minhas veias. Minha cabeça lateja, ameaçando trazer meus pesadelos para a realidade. Viro para a janela e vejo os resquícios do amanhecer, a Aurora laranja e vermelha no horizonte desbota no céu ainda acinzentado com traços azul claro, as nuvens carregadas já se dissipam em forma de anéis grossos.
Hemera está trabalhando, Penso.
A cama está confortável, o friozinho da noite ainda me cobre, mas não quero perder tempo. Se eu ficar deitada, vou continuar pensando naquelas coisas, e tudo o que eu quero é distrair minha mente. Levanto-me e me espreguiço, meus músculos se esticam, contraem e relaxam. Quando olho para a parede na minha frente, percebo uma sombra estranha feita por algo atrás de mim.
Levanto a mão, mas a sombra não se mexe. É de alguém aparentemente sentado, grande e magra. Meu pai ainda está deitado, não pode ser ele. Meu coração que ainda estava tentando se acalmando, volta a bater rápido.
Viro-me depressa, entrando na defensiva. Do outro lado do quarto, um homem está sentado em uma poltrona carmesim, ele me encara com olhos cinzentos e inexpressivos. O homem é alto, tem o cabelo preto jogado sobre os ombros, o rosto redondo e a boca grande, seu nariz é pontudo, as feições dele lembram as de um pássaro. Mas ficam bonitas nele.
Por impulso, eu grito e meu pai levanta em um pulo, olhando para os lados e perguntando o que está acontecendo. Ele para assim que ver o homem. Esse último não faz nada, fica imóvel olhando para mim, como o corvo fazia nas primeiras vezes que eu vi ele.
Meu pai se aproxima de mim, me empurrando devagar para trás, se colocando entre mim e o homem.
— Quem é você? - meu pai pergunta, ainda sonolento. - Você é algum Deus?
O homem com cara de pássaro se levanta e o jeito como ele o faz é estranho. Seus braços são longos e os dedos retorcidos, parece que ele estava sentando na poltrona por uma década e agora parece que esqueceu como se levantar. A parte de cima das costas dele é esguia e um pouco grande, sua omoplata é grande e arqueada dos lados. Ele usa um manto preto que cobre todo o seu corpo e de mangas longas, muito abertas no pulso, como sinos.
Ele caminha na nossa direção de um jeito estranho, arrastando a perna, como se tivesse quatro delas. Meu pai cerra o punho e me empurra mais um pouco. O homem percebe nossa defensiva e para, com um sorriso no rosto. Ao menos o sorriso é bonito, com covinhas.
— É uma pena que vocês não me reconheçam – ele diz. A voz dele é estranha, como um piado, é fina e alta. E sai de sua boca um pouco arranhada, como se ele não falasse por muito tempo.
— Não vou perguntar de novo - meu pai diz.
— Vocês não me reconhecem nessa forma - ele diz. E é só quando me dou conta. Olhos cinzas e inexpressivos, cabelos negros e costas arqueadas, a forma estranha de andar, como se não soubesse usar o próprio corpo. A cara que lembra uma ave.
— Raven – sussurro.
— Lady Sara – ele diz fazendo uma pequena reverência.
O meu, digo, o corvo da Nix está na forma humana. Afasto meu pai para o lado e ele olha confuso para o Raven.
— Você é o corvo? Mas...
— O que você está fazendo aqui? - pergunto chegando perto dele. - porque está assim?
— Eu literalmente moro aqui - ele diz com um pequeno sorriso. - Lady Nix consegue transformar animais em humanos e vice-versa, e foi isso que ela fez comigo, mas é temporário, a não ser que eu peça para que seja permanente. Enfim, o meu objetivo é te ajudar.
É como a maldição dela, que transforma deuses em humanos, mas só que o Raven lembra quem ele era, diferente de quem é pego pela maldição e menos potente.
— A fazer o que?
— A se adaptar a isso tudo - ele me responde. – Lady Nix sabe de minha aproximação com você nos últimos dias e acha que eu sou a melhor opção de conforto.
— Você sempre foi um humano na forma de pássaro? – meu pai pergunta.
Raven mantém a calma, não parecendo se importar com as várias perguntas que estamos fazendo para ele.
— Muito pelo contrário Sr. Sintuell - Raven responde. – eu sempre fui um corvo, antes mesmo de Morfeu me dar de presente para Lady Nix, foram raras as vezes em que ela teve que me transformar em humano, e essa é uma das raras exceções – as palavras deslizam mais facilmente de sua boca, ele está se acostumando.
—Você era do Morfeu? – pergunto, mas não espero ele responder e formulo a própria resposta. – é claro, por isso a habilidade de me fazer ter visões.
— Sim - ele sibila.
— E o que elas significam? - pergunto. Sei que é uma pergunta meio tola, mas quero realmente saber. É uma metáfora? Visão do futuro? Um sonho?
— Eu sinceramente não sei, apenas dei a você o dom das visões, é como dar um carta sem saber o que está escrito, como um intermediário. Mas você vai saber o que significam, cedo ou tarde - ele diz. - preciso que vocês me acompanhem agora.
Vou ficar sem respostas, como sempre. Mas isso vai ficar para outra hora, meu dia vai ser corrido, ainda tenho que achar um jeito de sair daqui.
— Preciso escovar os dentes, mas não tem escova lá dentro, nem sabonete e nem...
— Agora tem sim - ele me interrompe, virando os olhos na direção do banheiro. - providenciei enquanto vocês dormiam, não sei quase nada sobre a necessidade de vocês, mas fiz o que pude.
Lanço um olhar de desconfiança pra ele e vou para o guarda roupa, pego uma calça jeans, com uma blusa vermelha de mangas curtas. Umas das coisas que eu admiro em quem quer que seja que tenha notado as roupas aqui, é que tenha pensado que eu não iria querer usar vestido o tempo todo e tenha colocado roupas mais modernas.
Vou ao banheiro, deixando meu pai para trás com o Raven humano. Isso soa estranho. Quando entro, me deparo com shampoos, sabonetes e pentes jogados no chão, por sorte, nenhum está aberto. Organizo eles em uma fileira na pia, e encontro no meio das coisas, duas escovas, uma vermelha e outra verde, junto a três tubos de creme dental. Eu tomo um banho bem demorado, lavo o cabelo com um shampoo e me ensaboo, finalmente me sinto limpa e confortável.
Escovo os dentes e passo creme no cabelo, penteado-os, partindo-o na lateral da minha cabeça, jogando a outra parte por cima dela. Visto a calça e a blusa, colocando essa última por dentro da calça, junto com uma bota de camurça que vai até um pouco acima do meu calcanhar. Demoro cerca de vinte minutos para fazer tudo, mas não tenho noção de tempo. Quando saio, Raven me encara com a boca um pouco aberta. Seus olhos brilham, e eu vejo a boca dele se mexendo em um pequeno "uau".
Meu pai entra no banheiro logo em seguida, com uma muda de roupa. Ele não demora muito e sai do banheiro vestindo uma calça jeans e um casaco de lã marrom, sob uma camisa cinza. Raven assente e nos conduz. A porta que na noite passada eu não consegui nem mover, agora se abre com facilidade, apenas com o toque do Raven. Ontem quando eu saí do quarto sozinha, eu fui para a direita, mas dessa vez ele nos conduz pela esquerda. Ele caminha devagar, mancando um pouco, mas bem melhor do que quando se levantou da poltrona. Deve está se adaptando ao corpo humano.
Subimos uma escada em espiral. Sem dizer uma palavra, nós andamos desconfortavelmente. De repente, sinto uma vontade súbita de puxar assunto, fazer algo que não seja apenas caminhar, seguindo um corvo que agora é um homem.
— Qual a sensação de ser um humano? - pergunto. Não sei se Raven escutou, pois ele não demonstra nada, apenas continua caminhando.
Ele solta uma pequena risada.
— Não muito bom - ele diz. - essas pernas longas e esse corpo alto, é complicado. O corpo humano é muito limitado, mas admito que tem seus privilégios.
— Tipo? - pergunto.
— Posso me aproximar de mulheres bonitas - ele hesita e continua. - como você.
Eu paro de caminhar e sinto meu rosto esquentando, devo estar corada. Meu pai não gostou do elogio.
— Não vem achando que é só porque é um humano agora, que vai conquistar minha filha - ele retruca.
Eu rio, pra disfarçar a vergonha e o Raven também.
— Você está sendo obrigado a nos servir? – pergunto, com a consciência pesada de que alguém tem que ficar trancada em um palácios o dia todo me olhando, por obrigação.
— Não – ele diz. - Lady Nix iria deixar vocês a vontade pelo palácio, mas Lady Hemera sugeriu que eu ficasse por aqui, para que vocês não se perdessem ou caso precisarem de alguma coisa, eu aceitei de bom grado. Afinal, o lugar para onde Lady Nix foi, não é muito bom.
— Esse negócio de Lady fulano, Lady sicrano está me deixando irritada - digo revirando os olhos. - Além disso, não me chame de Lady Sara.
— Como quiser – Raven diz. - Lady Sara.
Passamos por um corredor e chegamos a um salão enorme. Uma mesa longa, de quase dez metros está disposta, com apenas duas cadeiras em lados opostos. Várias guloseimas pousam sobre a mesa, como bolos, Pães quentes e sucos. Saladas de frutas enchem tigelas de vidro, com gelatinas. A visão me deixa instantaneamente com fome.
— Lady Nix permitiu que, após comerem, vocês decidam o que fazer.
— Ela está no dando liberdade? - pergunto com ironia. Raven desvia o olhar e não responde.
Sento em uma cadeira de frente para meu pai. Raven fica em pé, perto da porta, olhando para nós, sempre desviando os olhos quando eu o encaro. Como devagar, saboreando os pedaços fofos do bolo de chocolate.
— O que você vai fazer? – sussurro para meu pai.
— Ele disse que a Nix foi para um lugar não muito bom – ele responde comendo salada de frutas. – tenho algumas especulações de onde seja. E ontem, aquele monte de deuses reunidos, eu quero saber o que ela planeja. Temos que ficar mais um pouco e descobrir o que ela planeja.
— Até quando? Alguém vim aqui nos matar? – digo com a voz fina. E sinto raiva por isso, pareço uma criança mimada.
— Ninguém vai nos matar, Sara, não enquanto estivermos aqui.
A raiva sai de mim como uma explosão.
— Está apoiando a gente ficar aqui? – pergunto. Faço o máximo para me controlar. – sabia que ela planeja uma guerra?
Isso perturba ele.
— Como assim? – meu pai pergunta, me encarando confuso.
Antes que eu possa responder, escuto uma porta se abrindo abruptamente, como uma explosão, alguns andares abaixo de nós. O chão treme, e consequentemente, a mesa e as paredes. Escuto uma voz gritando.
Como em um reflexo, eu me levanto rapidamente. Eu vou na direção da porta para ver o que é, e o Raven me impede de sair. Ele parece confuso, certamente não estava preparado para isso.
Ele fica de frente para a porta, esperando algo. Ele faz um sinal com a mão, para que eu e meu pai nos afastemos. O silêncio reina, deixando uma tensão no ar. Todo o barulho que escutamos é de nossas respiração.
— Estamos sendo atacados? – pergunto em um sussurro, imaginando um Deus atacando o palácio da Nix.
— Não sei – é tudo o que o Raven responde.
Como uma bomba, programada para explodir depois que ele terminasse de falar, a porta se abre fortemente, junto com uma voz gritando:
— NIX!!! - A porta dupla explode, lançando o Raven que estava mais perto, no ar, junto com pedaços de madeira e fumaça.
Ele cai em cima da mesa, sob os pratos e tigelas, lascas de vidros voam. Eu e meu pai não somos atingidos, felizmente estamos longe. A fumaça me impede de ver adiante. Vejo, na porta a silhueta de alguém. Meu pai corre para ajudar o Raven. Começo a tossir, o ar entra com força em meus pulmões.
Eu sinto um instinto de me defender. Tento invocar os tais poderes que eu tenho, sentir algo embaixo da minha pele, alguma coisa na minha mente, mas não sinto nada. A pessoa na porta, começa a caminhar. Como se a fumaça estivesse sendo influenciada pela pessoa, o caminho se abre, e eu percebo que é uma mulher. A fumaça ao redor dela se dissipa, deixando-a visível.
Uma mulher alta, como todos os outros deuses, vem na minha direção. Ela é a deusa mais bela que eu já vi até agora, mais até do que a Hemera ou Nix. Ela tem cabelos castanhos ondulados, olhos roxos – sim, roxos - que brilham em êxtase, como explosões. A pele macia e o rosto oval, quadrado no queixo. Ela usa um vestido roxo, com detalhes em listras pretas. O vestido é aberto em duas fendas, uma em cada perna, e coberto atrás em uma cauda que vai até seus tornozelos. Ele tem duas alças finas, e é aberta nos ombros, e depois descem em uma manga longa.
Ela caminha com confiança, olhando para mim com um ódio afrontoso nos olhos. Ela para alguns metros na minha frente e olha ao redor.
— NIX! – ela grita aos ventos. – CADÊ ELA? – a mulher se vira pra mim. – Você, onde está a Nix?
A voz dela é fria e forte, como um sussurro sob uma tempestade de inverno.
— Eu... Eu, não sei – gaguejo, consigo sentir a raiva dela comprimindo o ar, as paredes parecem tremer apenas pela sua presença. Meus olhos ardem e sinto meu peito pesado.
— Eu te conheço? – ela pergunta, me olhando curiosa agora. - sua aura se parece com a dela.
— Hãm, eu sou a filha dela – sibilo, como se isso fosse vergonhoso. Minha voz sai fraca.
— Então a noite tem mesmo uma filha semideusa – vejo os resquícios de um pequeno sorriso debochado. – que interessante – ela se vira para onde Raven e meu pai estão.
O homem pássaro está se levantando, com as costas machucadas por conta dos cacos de vidro. Mas ele parece não se importar. Meu pai o ajuda a sair de cima da mesa, mas seus olhos estão vidrados na mulher.
— Cadê ela? – vocifera a mulher.
— Ela não está – Raven diz. – ela foi para o... – ele hesita e não termina a frase.
— Então é verdade? Ela está metida com isso – a mulher fica com mais raiva. Seu tom de voz aumenta. – o que ela pensa que está fazendo? – a mulher agora parece falar consigo mesma.
Enquanto ela anda pelo salão falando consigo mesma, corro para ajudar o Raven. Eu pego uma cadeira e sento ele devagar, tomando cuidado para não pressionar as costas dele. Depois de alguns segundos tensos, ela para e se vira para o Raven.
— Você! Me diga, o que ela planeja? – a mulher vem na nossa direção a passos largos. – o que realmente aconteceu? Diga, pássaro – ela se aproxima e coloca as mãos no pescoço do Raven, com as unhas grandes quase penetrando em sua carne.
— Solte ele – digo, com medo. – do que você está falando? - analisando bem, pareço tola dando uma ordem para uma deusa.
Ela vira a cabeça na minha direção rapidamente, como se eu tivesse xingado ela, o que chega perto disso, é um insulto receber ordens de uma simples mortal. Seus olhos me fuzilam, e um calafrio passa pela minha espinha, querendo me romper. Ela poderia me pulverizar agora, com apenas um olhar.
— Você deve saber de alguma coisa, cria de deusa – ela solta as mãos do pescoço dele e avança na minha direção. – afinal, apareceu tão de repente no meio disso tudo. Eu quero saber, onde está nossa mãe? O QUE ELA ESTÁ FAZENDO?
Nossa mãe? Qual das filhas da Nix ela é? Raiva dela volta a explodir. Seus olhos brilham, como uma Aurora boreal. Fico assustada e recuo alguns passos para trás e meu pai se põe entre mim e ela, como se isso fosse realmente impedir algo.
— O que você quer? – Raven pergunta, fazendo esforço para se ajeitar na cadeira. – porque você quer ela?
A mulher se vira para ele.
— O Olimpo quer respostas – ela diz olhando para o Raven. – Zeus está furioso, ele quer saber o que aconteceu com Hades e Selene, e eu sei que a Nix está por trás disso.
— O Olimpo não quis saber quando a Nix sumiu – Raven diz com fúria em sua voz.
— Ela sempre foi dramática – Ela diz fazendo pouco caso. – não achávamos que a falta da noite iria afetar muito os humanos, pensávamos que ela só queria um tempo e que iria retornar em pouco tempo. Zeus daria um prazo de vinte dias para que caso ela não retornasse, ele mandaria alguém atrás dela. Afinal, uma deusa primordial não seria irresponsável.
Como assim não se importaram com o sumiço de uma deusa primordial? Eles achavam que a falta da noite não iria afetar os humanos? Os deuses são burros? Tento me colocar no lugar da Nix, desaparecer e ainda fazerem pouco caso disso. Eu sinto raiva por isso. Acho que Zeus teve foi medo, de se intrometer nos planos da Nix.
— Hades e Selene sumiram? – meu pai pergunta curioso. - ela estava aqui ontem - sussurra e só eu escuto.
— Eu sei mais sobre vingança do que qualquer um por aqui – ela se volta para meu pai. – dois deuses, entre eles um dos três grandes, desaparecem na noite em que ela retorna, isso parece meio suspeito. Além de que, me sinto forte, alimentada por um desejo de vingança imenso. E eu sinto isso aqui, agora, como se algum ato de vingança tivesse sido feito aqui.
Meu estômago se contorce com as lembranças do homem virando um monte de carne podre. Sinto a bile subindo pela minha garganta e faço um esforço tremendo para não vomitar o que acabei de comer. Nix realmente se vingou dele nesse palácio. Eu olho para meu pai e ele parece concentrado em outras coisas, quase consigo ver as engrenagens da cabeça dele funcionando.
— Você é a Nêmesis? – ele pergunta.
Ela revira os olhos.
A deusa da vingança e da justiça. Lembro de história que diziam que a beleza dela se comparava com a de Afrodite, e as histórias não estavam erradas. A deusa está sendo alimentada pelo desejo de vingança da Nix, ela não deveria estar feliz?
Não quando isso prejudica outras pessoas, ela também é a deusa da justiça. Tem o dever de equilibrar os dois lados, manter a ordem. Como se lesse meus pensamentos, ela diz:
— Eu tenho que resolver essas questões – ela anda de um lado para outro, a passos pesados. – um dos três grandes desaparecido – ela para e olha para o horizonte, arregalando os olhos como se lembrasse de algo. – se Hades sumir, quem irá tomar conta do submundo?
— Obviamente, eu - diz uma voz que eu conheço muito bem. – graças ao meu irmão, tenho controle naquele lugar. Aliás, não fiquei sabendo que você ficou preocupada assim quando eu sumi, muito menos Zeus. O Olimpo fez pouco caso.
Nix passa pela porta, que magicamente, volta ao normal, os pedaços de madeira retornam ao lugar, as dobradiças se fundem a parede e em segundos, ela fica intacta, nem parecendo que foi explodida. Ela entra seguida pela Ártemis, que está ensanguentada, com manchas douradas. É a cor do sangue do deuses, e ela não parece machucada.
A pantera não segue a deusa da caça e isso me deixa menos tensa. Ártemis me lança um olhar estranho, como se estivesse me analisando e logo em seguida presta atenção na Nix.
— Finalmente – Nêmesis diz. – Temos muito o que conversar.
Nix não se importa e a ignora completamente. Ela chega perto do Raven e coloca um dedo embaixo do queixo dele, levantando a sua cabeça. Seus olhos se encontram, e a Nix sussurra algo que eu não entendo muito bem, tudo o que consigo ouvir é “ Vá atrás da Hemera...”
A roupa dele rasgada nas costas se reconstitui e as feridas se cicatrizam em segundos. O Raven então se levanta e me olha, com um olhar que eu interpreto como “se cuida”, antes de correr na direção da porta. Ele parece bem, sem nenhuma sequela. Ele dar um pulo e em pleno ar se transforma no corvo. As suas mãos encolhem e nos antebraços surgem penas, seu osso se curvam de forma estranha. Um bico surge no lugar do seu nariz e seu rosto encolhe, sua pele é substituída por penas negras e ele sai voando pela porta.
Agora estamos só eu e meu pai, cercados em uma sala por três deusas.
— Antes que diga alguma coisa, tudo o que você acha que é, é verdade – Nix diz se sentando na cadeira onde o Raven estava. Ela cruza as pernas e parece limpar alguma coisa do manto.
— O que você fez? – pergunta Nêmesis. – Isso é loucura Nix, LOUCURA.
— Está preocupada com o fato de que ele sumiu ou de que você acha que era você quem deveria ter feito algo? – Nix pergunta como uma forma de desdém. – se te conforta, saiba que você não teria muito o que fazer por mim. Eu tive que agir como a minha própria deusa da vingança. Afinal, desde quando você deve obrigações ao Olimpo?
— Não estou servindo a eles, estou aqui pela vingança - Nêmesis rebate.
— Então não questione baseado no interesse deles, os dois deuses sumidos não pertencem a eles – Nix encara Nêmesis com um olhar a capaz de tirar a alma de um deus do corpo e a deusa da vingança hesita, percebo que ela teme a mãe. Mas como não temer? - você está certa em está aqui, mas está usando os motivos errados, as consequências, minha querida, irão te servir.
Até agora a Nix ignorou a mim e a meu pai completamente, não lançando nem um olhar. Ele presta bastante atenção na conversa, como se fosse um juiz e estive em um julgamento, analisando o defensor e o acusador. Eu me sinto confusa. O que a Nix estava fazendo? Deuses desaparecidos? Uma guerra se aproxima. Algo diz dentro da minha mente. Não sei porque, mas as palavras são mais rápidas e saem da minha boca.
— Qual Deus será o próximo? – pergunto ao vento, esperando que ela não escute.
Nix franze as sobrancelhas e gira a cabeça na minha direção. Todos os outros também o fazem.
— Digo, esse desejo de vingança se aplica também aos deuses? – continuo, com uma coragem estranha. As palavras saem facilmente, eu nem chego a pensar nelas direito. – porque realmente você está fazendo isso tudo? Porque veio atrás de mim exatamente agora? – o que era pra ser uma acusação agora se torna um desabafo.
Ela não responde e olha de soslaio na direção do meu pai. De repente uma ave grande e branca, pousa na janela. Um falcão. Ele começa a piar alto, chamando a atenção da Ártemis. A deusa se aproxima perto do pássaro e coloca o ouvido perto do grande bico da ave, que começa a piar como se falasse algo. Ela parece preocupada, franzindo as sobrancelhas, entendendo tudo o que ele diz.
Segundos depois o pássaro sai voando, depois de um aceno que a deusa da caça dar.
— Tenho que ir – ela diz.
— Pra onde? – Nix pergunta.
— Acampamento das caçadoras – Ártemis responde. – duas das minhas guerreiras voltaram de uma missão importante.
Nix assente. Nêmesis vai para a janela e se encosta no batente, claramente incomodada. E é quando percebo de que se a deusa da vingança está assim, as coisas não estão boas.
Ártemis sinaliza com a cabeça e se vira. Mas quando ela está quase chegando na porta, Nix diz:
— Espere – ela aponta para mim com um sinal de cabeça. – Leva a Sara.
Isso me atinge como um tapa. A possibilidade de sair com a Ártemis me assusta, ainda mais para um acampamento cheio de mulheres que fazem tudo o que ela manda.
— Está falando sério? – ela olha para mim como se eu tivesse duas cabeças. – porque?
— Eu a privei de seus poderes, mostre a ela que isso não pode ser a única coisa capaz de fazer ela ser forte – Nix diz.
— Tem certeza? – Ártemis pergunta me analisando. Ela não está mais com a expressão debochada, na verdade ela parece cansada. – Quer saber, deixa pra lá. Venha.
Eu hesito. Não sei se é uma boa ideia. Mas seria legal aprender a lutar, sobreviver por conta própria. Lembro de quando a Nix me encontrou no apartamento da Milena e eu não pude fazer nada, assim como agora pouco, quando a Nêmesis entrou aqui. Eu me senti inútil, e ter certas habilidades corporais tendem a ser úteis. Além de que, Tenho que ficar fora dos domínios da Nix, armar um plano para fugir daqui, e melhorando minha agilidade e rapidez, acho que será mais fácil.
— E meu pai? – pergunto.
— Ontem ele disse que quer conversar comigo – Nix diz. – essa é a chance.
Eu olho pra ele, que parece não concordar muito com essa ideia.
— Não – ele diz. – não vou arriscar a vida da minha filha.
— Eu quero ir pai – digo, com um pouco de vergonha.
— Porque? – ele me lança um olhar confuso, surpreso com minha decisão.
— Não vou ficar presa aqui o dia todo – respondo, tentando não revelar minhas reais intenções. – também não quero mais me sentir inútil, quero saber o que posso fazer.
Ele hesita, encarando algum ponto no chão. Nêmesis revira os olhos, impaciente. Ártemis olha para meu pai, esperando a resposta. Meu estômago se contorcendo e sinto calafrios por todo o corpo. Minha respiração sai devagar e preciso respirar fundo para me controlar. Realmente quero isso? Ir em um acampamento de caçadoras?
— Jure pelo rio Estige que você não matará minha filha – meu pai diz para Ártemis com a voz pesada.
A deusa parece ofendida. Ela hesita e olha para a Nix, como se esperasse que a deusa da noite a livrasse disso. Fazer uma promessa para o rio Estige, é a maior promessa que um Deus pode fazer, e o descumprimento, trás horríveis consequências. Ártemis bufa e contorce a boca.
— Eu prometo pelo rio Estige que não matarei sua filha, enquanto ela estiver no meu acampamento – Ártemis diz convicta.
Eu olho para meu pai, e ele me encara com um olhar carregado de preocupação. Ártemis sai da sala e eu corro, vendo-a já no final do corredor, por sorte, consigo alcançar ela.
A grande porta se fecha, deixando meu pai com a deusa da noite e a deusa da vingança. Que os deuses bons o protejam.
Ártemis caminha na minha frente, em nenhum momento ela olha para trás. Descemos uma escada e passamos por corredores longos e portas fechadas. Não sei o que tem dentro delas. Enquanto ela caminha, percebo que ela manca um pouco com a perna esquerda. Vejo que ela está manchada com sangue dourado. Ela brigou com algum Deus? Somente eles tem o sangue dourado. Estremeço.
Entramos em um corredor estranho, opulento e acarpetado que parece se prolongar para sempre, com os mesmos espaços entre uma porta e outra. A portas são iguais, vermelhas, com entalhes marrons de madeira, uma das únicas coisas que as diferem são símbolos, como em uma tem um bastão com uma cobra enrolada. O símbolo da medicina, reconheço. Também exceto por algumas coisas, como ramos de papoulas vermelhas serpenteando em ondas hipnóticas sob uma das portas. Quando avançamos, sou atingida por um golpe de ar tão frio, que arrepia minha pele.
Continuamos, o ar esfria à medida em que avançamos pelo corredor. Finalmente, viramos uma curva. O frio parece emanar de um quarto, flocos de neve são soprados um por um pela fresta sob uma porta.
— Tem algum tipo de Ar-condicionado superpotente aí dentro? – pergunto.
— Esqueceu que a Lady Nix abomina qualquer tipo de tecnologia mortal? – Ártemis diz, sem se virar. – cada uma dessas portas é um portal; aquela do gelo vai dar nos domínios da Quione, deusa do gelo e da neve. Essa por exemplo – ela aponta para um porta com um símbolo de arco íris entalhado na madeira. - vai dar no palácio da deusa íris.
Eu olho admirada para tudo isso. Cada porta uma forma de escapar. Reconheço alguns símbolos, como o tridente do Poseidon. Esse corredor pode me levar a vários lugares onde posso fugir, mas como se lesse meus pensamentos, ela continua:
— Mas ninguém pode atravessar elas, nem mesmo a Nix, sem o consentimento do Deus a qual a porta corresponde, não podemos entrar nos domínios um do outro sem mais nem menos – Ártemis diz e eu me despeço da minha esperança. Tenho que conquistar a confiança de algum Deus, se quero fugir pelos domínios dele.
Eu poderia escapar pelo acampamento, mas para isso a Ártemis teria que permitir a entrada do meu pai. Não posso deixar ele para trás.
Paramos em frente a uma porta, com um símbolo de arco e flecha entalhado na porta. Ártemis pega a maçaneta e abre, mas não consigo ver nada, apenas o breu. Eu tento colocar minha mão na escuridão, mas ela não passa do limite da porta, como uma parede invisível. Ártemis me lança um pequeno sorriso. Ela olha para a porta e começa a dizer:
— Eu, deusa Ártemis, deusa da caça e da lua, filha de Zeus e Leto, permito a entrada de Sara Sintuell, filha de Wesley Sintuell e da deusa Nix.
De repente, a escuridão começa a oscilar, criando ondas no ar, como uma cortina balançando ao vento. Então um foco de luz surge no fundo, barulho de pássaros ao longe e gritos, junto com gritos e risadas de mulheres. Então vejo logo atrás da porta, as paredes de uma caverna.
— Vamos – Ártemis diz já atravessando.
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Nix - A dama da noite Vol.I
FantasyTodos temos segredos e muitas vezes, nem nós mesmo os conhecemos. Sara sempre foi muito apegada ao pai, longe de uma figura materna. Quando criança, seu pai sempre a entretia contando histórias sobre a mitologia grega. Mas Sara se ver mais dista...