Eu estava caindo. Era tão fundo quanto o oceano. Caía lentamente, deixando o vento moldar aquelas vestes brancas como a neve. As nuances do passado me aguardavam, gritavam por mim e puxavam a barra do meu vestido. A água tornava a queda poética, meus cabelos cobriam meus olhos. Os prédios a minha volta tinham vidro e deixava que todos vissem minhas feridas. Deixava que todos vissem minha queda. Eu estava caindo, e não tinha como evitar a queda, eu estava caindo a cinco anos. Uma queda lenta e dolorosa. Uma luta contra a realidade.
- Lienne? Lienne, esta me ouvindo?
Ainda que não estivesse prestando atenção no que Sherron dizia, afirmei com um sorriso elegante. Voltei meu olhar a moça de meia idade, observei como ela arrumava os óculos redondos quando estava irritada com minha falta de atenção, como seus pés batiam no chão copiosamente em sinal de impaciência, como seus olhos me penetravam, tentando descobrir o que havia por trás dessa couraça surrada. Ela ainda não dizia nada com nada para mim. E por 50 euros a hora, duas horas por dia e três dias por semana ela já devia ter descoberto até o que eu penso.
Sherron sabia do meu passado de uma forma maquiada, tive que procurar uma psicóloga quando passava três dias em claro imaginando que o espírito de Herick estava me seguindo ou que Krocnovith ainda me caçava. Ficou difícil quando eu passava semanas me lembrando de como matei Marie, lembrando dos olhos vidrados de Zedd. E ficou inimaginável não procurar uma psicóloga quando eu rasguei o rosto de um cliente na unha em um ataque psicótico. Estava com ela a dois anos, já me estabilizava. Contar para alguém a verdade, mesmo que maquiada, me aliviava. Ter a visão de um profissional era ótimo, mas eu ainda não compreendia como todo aquele amor que eu senti podia ser uma mentira que minha mente inventou para me tirar de uma situação traumática.
- Você voltou a ter pesadelos Lienne?- perguntou olhando para o tablet em sua mão, onde anotava teorias sobre mim.
- Não. - respondi insegura. Ela olhou por cima do óculos, com aqueles olhos inquisidores. - Sim, quer dizer... Eu passei umas noites sem dormir e dormi ontem, então tive um pesadelo.- revelei contrariada.
- Os calmantes que te receitei para dormir já acabaram?- questionou desconfiada.
-Não, ahm. Não. Eu... É que esses remédios me deixam lesada no outro dia e deixa meu estômago ruim. - justifiquei.
Mas na verdade eu não tomava porque tinha medo de dormir, tinha medo de sonhar com ele ou ter um pesadelo com qualquer fator do meu passado.
- Os calmantes que te dei não são tão fortes assim.- respondeu tirando os óculos. Sherron suspirou e entortou levemente a boca.- Se você quer que te ajude, tem que me contar tudo. Temos que nos comunicar.-advertiu.
- Eu... Tenho medo.-respondi em um suspiro.
- Medo de que?- voltou seu olhar para o tablet.
- Medo do passado. Medo de ter que continuar fugindo e ainda assim ele me encontrar.- respondi olhando pela janela.
Amisterdã estava fria hoje, o tempo fechado e o céu mais escuro que o normal. Enquanto eu caminhava rumo a Zeedjik para comprar meu almoço em algum restaurante de lá, observava o chão molhado pela chuva recente, recitando como um mantra a frase que Sherron me dizia "Não deixe a mente te dominar, domine a mente". Ela dizia que me ajudaria entender minha síndrome, mas não ajudava em nada.
Resolvi almoçar por lá mesmo e bebi uma dose de saque para descer os remédios. Olhei a hora no relógio, estava quase na hora das minhas aulas de defesa pessoal, ainda teria que me arrumar rápido, pois tinha que ir para o Red Light hoje. Eu trabalhava lá as quartas, não nas vitrines como as outras moças, mas em um lugar mais reservado, junto a outras meninas e com um chefe. Segunda, depois, sábado e domingo eu trabalhava em um lugar próximo do bairro onde eu moro, em Amsterdam Oost. Não tão próximo é claro, Amsterdam Oost era um bairro mais tradicional e eu não queria que meus vizinhos soubessem no que eu trabalho. Era uma casa enorme, que foi readaptada para nosso trabalho e fácil circulaçao. Mas o governo não sabia dessa, ela era ilegal, o único estabelecimento que o governo tinha conhecimento era o do Red Light.
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Síndrome de Estocolmo
Lãng mạnTalvez eu devesse ter continuado calada. Talvez seus olhos não tivessem me deixado tão fascinada. Talvez eu devesse ter ido para casa naquele fatídico dia. Talvez devesse acontecer muita coisa. Talvez não. ...