Capítulo 22

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Cheguei atrasada para aula de biologia, lutando para acalmar meu coração. Eu estava bem até ver bandejas e alfinetes para dissecação.
Amy estava em nossa bancada, cortando uma cabeça de porco. Meu mundo tremeu e eu voltei para aquela noite, no velho parque, quando a cabeça de Nickolai foi arrancada de seu corpo.
Puxei meu cabelo para trás e mal consegui prende-lo na altura da nuca antes de sentir minha garganta apertar e de minhas mãos trancarem a porta do banheiro. Vomitei. Outra vez.
Tateei em busca do papel higiênico e rasguei um pedaço daquela folha áspera para limpar minha boca. Joguei-a no vaso antes de fechar meus olhos e apertar a descarga.
A porta do banheiro se abriu, e tentei recuperar o controle de meu estômago, que girava. Nada bom. Curvei meu corpo e deixei sair mais daquilo que havia em meu estômago na água que ali esperava.
- Jessie? - A voz de Amy me fez congelar, embora meu interior sacudisse revoltosamente. Apertei o botão da descarga e enfiei a mão na bolsa em busca de balas.
- Jessie! - ela batia na porta - O que está acontecendo?
Aquela era Amy: direto ao assunto... Nada de "Como você está?" quando ela sabia, pelo som e pelo cheiro, que eu estava longe de me sentir bem. Esperando que as balas funcionassem,  abri a porta e sai, arrastando minha bolsa atrás de mim.
- Aaah  - ela torceu o nariz e me olhou de cima a baixo - Seu cheiro está quase tão ruim quanto sua aparência.
Enfiei a mão no bolso, tentando achar minha pedra da preocupação. Toca-la não ajudava muito no combate à estômago revirado.
- Estou bem.
- Mentirosa.
Escolhi os ombros e caminhei na direção da pia.
- Você está grávida?
Levantei a cabeça e vislumbrei minha imagem no espelho. Nada boa.
- Não, a não ser que eu tenha sido escolhido para uma concepção imaculada. Demorou um pouco, mas ela entendeu.
- E então... - Amy pegou um pedaço de papel, molhou e estragou nas pontas do meu rabo de cavalo improvisado. - Por que você está vomitando as tropas na aula de biologia?
- Eu só... - Como eh poderia explicar sem entregar tudo? Ou fazê-la pensar que eu tinha perdido? - Deve haver algo errado comigo.
- Até parece. É a dissecação? Porcos são seu ponto fraco? Você pode optar por não participar e usar aquele programa no computador.
Tentei imaginar o processo em uma tela e corri novamente para o vaso sanitário. A ânsia me atingiu até eu começar a ter dor de cabeça. Para mim, mesmo na tela de um computador, a dissecação, o examinar lentamente a anatômia, lembrava morte. Lembrava meus pesadelos violentos, que se tornaram cada vez piores, em câmera lenta.
Amy ajoelhou-se ao meu lado, acariciando minhas costas.
- Tive de fazer isso por minha mãe algumas vezes - ela confessou - Ela não sabia beber. Você não está sofrendo da mesma coisa, está Jessie?
Neguei com a cabeça, lentamente, sem saber o que fazer com minha boca. Havia muitas palavras para explicar a situação. Mas nenhuma delas me parecia verossímil.
- Isso tem a ver com Pietr - afirmou Amy.
Isso eu podia contar, portando, assenti com a cabeça. Ai.
- Filho da mãe. Por que eles sempre sai tão babacas?
- Marvin parece legal - comentei.
Ela me soltou e arrumou seu suéter.
- É, ele parece bem legal, não é mesmo? - as sobrancelhas de Amy se uniram enquanto sua cabeça reunia as informações. - Certo. Pietr está namorando Sarah, mas não tem nada de novo nisso. Então, o que é que realmente está incomodando você? O que aconteceu com Pietr que você não me contou? - senti o enjoo novamente - O que aconteceu na noite em que você saiu escondida?
- Você sabe.
- Não. Não na primeira noite que você saiu escondida. Na noite do aniversário de Pietr. O que aconteceu entre vocês?
- Foi nessa noite que eu saí para ver Max?
- Ha! - bufou Amy.
- É nisso que Sarah acredita.
- E você vai me agradecer depois por eu conversar um tempão com ela para criar um motivo interessante que justificasse seu castigo.
- Eu nunca passaria uma noite inteira com Max.
- Bem, muitas garotas passariam... Ei! Não mude de assunto. O que aconteceu?
Meus olhos se fecharam em uma atitude de autodefesa, como se eu pudesse bloquear as palavras e as preocupações de Amy. No entanto, a escuridão por trás de minhas pálpebras me arrastou de volta para aquela noite e... Meu estômago fez um barulho e Amy rapidamente saiu do caminho.
- Alarme falso - desculpei-me. Com um grunhido, voltei para a pia. Certamente não havia mais nada em um estômago.
Amy enfiou a mão na bolsa e tirou um pequeno tubo de enxaguante bucal.
- Você não devia trazer isso para a escola - comentei - A direção proibiu o porte desses enxaguantes.
- Bem, Dick Tracy - ela me passou o tubo - Faça um favor e quebre essa regra. As balas não estão funcionando.
Abri o pequeno tubo e dei um gole, deixando o líquido escorrer por todos os cantos com sabor desagradável de minha boca.
- Vou perguntar pela última vez - falhou Amy - Está bem, é mentira. Vou perguntar até descobrir a verdade. O que aconteceu na noite do aniversário de Pietr?
Continuei bochechando o enxaguante bucal até sentir como se cada papila gustativa de minha língua tivesse sido esfoliada. Por onde alguém na minha posição começaria? Pela CIA, pela máfia russa ou pelos lobisomens? Cuspi o enxaguante e formei uma concha com a mão para pega e a água da torneira.
- Descobrimos muita coisa um do outro. Ele me surpreendeu.
Não com um buquê de flores, mas com presas. E com muito mais pelos espalhados pelo corpo do que um garoto comum.
Uma tia brotou entre duas sobrancelhas. As próximas palavras saíram da boca de Amy uma a uma, todas separadas:
- Ele. Feriu. Você?
- Não! Não. Caramba, Amy. Não. É só que nós somos realmente... Fundamentalmente tão diferentes.
Ele se transformou em uma coisa assustadora que se parece com um lobo e corre pela floresta erradicando a população de coelhos. Eu prefiro assistir a um programa de TV.
- As pessoas podem ser diferentes, até mesmo os namorados, e nenhuma das partes do casal acaba ajoelhada diante de um trono de porcelana ao enfiar um bisturi numa cabeça de porco.
Escolhi os ombros.
- Você já me disse antes que não segue minha lógica.
- Você ainda não me contou tudo.
Fingi tentar arrumar meu cabelo. O resultado só reforçou o que eu já sabia: As vezes, tentar arrumar uma coisa só a deixa pior.
- Ah, por Deus - disse ela. Pegando uma escova, soltou meus cabelos daquele rabo de cavalo improvisado - Peça ajuda, pelo menos uma vez. Pra variar.
Olhei para o espelho e deixei Amy fazer o melhor que podia.
- Então, o que lhe aconteceu na noite do aniversário de Pietr para deixá-la tão louca quando vê uma cabeça de animal?
Olhei para o espelho tentando me deparar com minha própria imagem enquanto a imagem da decapitação de Nickolai invadia minha mente, fresca como a noite na qual a testemunhei.
- Que diabos... - Amy me segurou pelos ombros, sustentando meu corpo enquanto minhas pernas tremiam e ameaçavam desmoronar.
- Desculpe - lutei para recuperar o equilíbrio, fazendo meu joelho traidor voltar ao seu lugar.
Alguém afastou Amy, segurando todo o meu peso antes de eu perceber que outra pessoa havia se juntado a nós.
- Catherine - suspirei. E desmaiei.





O segredo das sombras (CONCLUÍDO)Onde histórias criam vida. Descubra agora