Capítulo 23: Vida e Esperança

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Oito anos depois...

Eu abri os meus olhos e,  por um breve momento, esqueci-me de que era sexta-feira. Sentei-me apressada e peguei o meu celular. Eram quase 8 h! Teria que correr muito para chegar à clínica. Como pude esquecer-me de colocar o alarme? Olhei para o celular novamente e suspirei aliviada. Hoje é sexta-feira, Anne, sexta! Deite-me e, durante dez preciosos minutos, descansei os meus olhinhos. Espreguiçar-me sem pressa é algo tão bom! Tomei um banho delicioso e, após vestir-me com uma calça jeans e camiseta, abri a janela do quarto. Senti o vento frio. Semana passada, a minha estação favorita começou: o outono. Apesar de ainda gostar muito de sorvete de creme com cobertura de chocolate, amo a paisagem cinza. Quando eu era criança, preferia o verão porque podia chupar muito sorvete, mas, há alguns anos, aprendi a apreciar mais o outono e o inverno. Chocolate quente também é ótimo. Peguei uma blusa no guarda-roupa e sai de meu quarto.

— Bom dia, Anne, veja quem já está aqui para tomar o café da manhã conosco! — Disse minha mãe assim que me viu. Beijei a sua bochecha e pedi a bênção. — Deus a abençoe, minha filha. — Um par de olhinhos lindos estava atrás dela.

— Bom dia, noona! — Ele se aproximou e eu acariciei os seus cabelos. — Você não perde a mania! Perdi um tempão hoje para ajeitar os meus cabelos e você não tem o mínimo de consideração. — Ele reclamou e eu beijei a bochecha de meu amigo.

— Ai, que resmungão, nem parece que já tem 24 anos! — É sempre assim. Eu mexo nos cabelos de Hyuk e ele reclama. Neste momento, ele fez cara de bravo, mas durou pouco, sorriu em seguida. — Ah, agora sim!

— O café está pronto, que tal os dois pararem com isso? — Minha mãe foi para a cozinha e nós a seguimos. Desde que abriu a escola de música Vida e Esperança, Hyuk toma o café da manhã conosco às sextas-feiras. — Só falta a garrafa do café... Por que estão me seguindo?

— Porque falta o café! — Eu brinquei.

— Eu e o Hyuk já arrumamos a mesa... — minha mãe piscou para ele.

— Ei, o que foi isso? Vi a piscadinha, o que vocês estão aprontando?

— Não posso piscar para o meu filho coreano? — Minha mãe, às vezes o chama assim, mas nunca quando a mãe de Hyuk está por perto. Eu ri ao olhar para o meu amigo. Ele piscava sem parar para a minha mãe e ela o imitou.

— Vocês estão bem? — Eu fui à sala de jantar e tive uma surpresa. Meu pai estava acomodado em uma cadeira. — Pai? — Ele sorriu e levantou-se.

— Bom dia, minha doce Anne, surpresa! — Eu corri para os seus braços. Meu pai precisou viajar a trabalho há quase um mês. Era raro ele se ausentar, mas ocorreu um problema sério nas finanças da filial do Paraná e foi necessária a presença de meu pai. Inicialmente, seriam poucos dias, mas a viagem durou 25 dias! — Resolvi viajar à noite. Estava combinado de pegarmos o voo segunda-feira, mas consegui uma passagem de ônibus e o Hyuk buscou-me na rodoviária.

— Nem para me avisarem, né? — Olhei para os dois cúmplices que riam já acomodados à mesa. Hyuk já estava até com a xícara cheia de café.

— Surpresa! — responderam em uníssono. Eu fiz uma cara de brava, mas ela só durou um momento. Sorri para os dois, depois olhei para o meu pai e o abracei novamente.

Após muita comilança e conversa, eu e Hyuk nos despedimos de meus pais. Nosso destino? A Escola de Música Vida e Esperança.

Trabalho na clínica de segunda à quinta. Não sou mais uma recepcionista. Terminei a faculdade de psicologia e em seguida fiz pós em psicologia infantil. Agora eu sou a auxiliar da doutora Kely, a irmã gêmea do doutor Nicolas. Todas as sextas-feiras eu tenho um compromisso muito especial: trabalho voluntário na Escola de Música Vida e Esperança. Hyuk fez faculdade de música e abriu a tão sonhada escola há dois anos. O seu lindo projeto permite que crianças carentes tenham acesso a cursos que trazem vida e esperança.

Muita coisa aconteceu nesses últimos oito anos. Estudamos muito, comemos comida coreana e chupamos muito sorvete de creme com cobertura de chocolate! O restaurante da mãe de Hyuk é um grande sucesso. Ela conseguiu certa aproximação com alguns parentes, mas não com os pais. Eles ainda estão bem relutantes. Nunca pisaram no restaurante de Clarisse. Hyuk não tentou mais contato com os avós. Sei que ele ainda tem esperança, mesmo que evite falar no assunto. Gostaria muito de poder dizer que o relacionamento entre Hyuk e o pai mudou, mas isso não aconteceu, infelizmente. Durante a adolescência, o meu amigo ainda aceitou participar daqueles almoços porque eu fiz de tudo para acompanhá-lo. Quando eu não tinha condições, ele inventava uma desculpa qualquer para a mãe e faltava. Com o início da faculdade, Pai e filho se encontravam uma vez a cada dois ou três meses, e pouco a pouco os encontros foram se tornando cada vez mais raros. Hyuk se aproximou ainda mais de minha família. Como a administração do restaurante ocupava muito o tempo de sua mãe, a cada dia ele participava mais de nossas atividades em família. Jantares aos sábados, almoços aos domingos depois da escola bíblica e culto, pescaria com o meu pai... Hyuk até me auxiliava com os meus estudos! Ele era meu irmão mais novo. Ele é o meu irmão mais novo! É o meu dongsaeng  e eu sou a sua noona!

Apesar de não manter um bom relacionamento com o filho, o pai de Hyuk se envolve totalmente quando o assunto é garotas. O meu amigo se transformou em um atraente rapaz de 1,85 m de altura que, com o seu jeito meio tímido e seus lindos olhos, é um imã de garotas. O "general" acha que o que atrai mesmo é a conta bancária de seu filho. Quando parece que alguma se aproximou demais, logo surge algum funcionário do "general" para afastá-la através de ameaças. É uma situação muito delicada. Não que o meu amigo seja um mulherengo, longe disso, mas ele já tentou se relacionar e ficou muito decepcionado. Até para fazer amizades é muito complicado. Hyuk fica revoltado com a atitude de seu pai e sempre diz que ele não está preocupado com o filho, mas com o dinheiro! Isso é muito triste, mas eu acho que o "general" age assim para proteger o filho. Eu não desisti de ajudá-los. Tenho um fiozinho de esperança (e muita fé!) e isso também vale em relação aos avós. Eles perderam a infância e a adolescência de seu neto. O meu amigo agora é um jovem de 24 anos, não quero que os anos passem e que um dia, já com os cabelos grisalhos, ele tenha somente uma triste lembrança do dia em que não foi recebido pelos avós e eles enviaram alguém para dizer que não tinham um neto chamado Hyuk!

Anne e HyukOnde histórias criam vida. Descubra agora