Meu filho

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        A noite surgindo, Lúcifer alçou voo. Parecia bem mais simples e rápido do que a última vez, ou talvez não lembrasse mais como era ir para casa. Mesmo a contragosto, ele não recusaria o chamado do Pai, Chloe estava viva e Lúcifer sabia que ele teria que prestar contas disso. Um sádico ardiloso, era isso que Deus era. Dessa vez, Lúcifer estava resignado e preparado para encarar seu Pai: Deus mantendo Chloe viva, o que quer que ele quisesse de Lúcifer, seria feito.
Ao transpassar o espaço-tempo humano, Lúcifer se chocou com sua mãe, que ainda rondava num tipo de orbe celestial, Lúcifer viu a Deusa ao longe, mas ela indicou para que seguisse em frente, que fosse direto ao seu pai.

                Como a comunicação transcendia a fala, por pensamento, Lúcifer ouviu sua mãe instruir:

-Vá de cabeça erguida, filho! Ponha tudo o que tem a dizer para fora. Eu estou de partida, mas seu pai me prometeu que traria luz, por isso me rendi.

-Não estou pronto para encará-lo, mãe. – Lúcifer pensou.

-Está sim! Esse é o momento. – ela sorriu e se recolheu num tipo de bolha no espaço.

                Lúcifer, então, se direcionou à Cidade Prateada, em toda a sua magnitude. Ele temeu quando finalmente chegou aos portões, como iriam lhe tratar? Não que realmente se importasse... Lúcifer recolheu as asas e os pés tocaram o chão envidraçado. Ao tocar no solo, seus sapatos de couro italiano se desmancharam e viraram pó. Lúcifer ficou descalço enquanto sentia sua roupa humana se decompor de seu corpo.

-Ótimo, nada melhor do que rever a família nu. – ele respirou fundo quando os portões alados se abriram.

                Lúcifer andou algum tempo, sentindo-se deslocado naquele ambiente cristalino e perfeito demais. Ele se perguntava para onde deveria ir no meio daquela vastidão quando então Remiel apareceu, quase como se caçasse algo.

-Lúcifer?! – ela apontou a lança assustada. – O que faz aqui?! Senti seu cheiro de longe!

-Pergunte ao Pai, vim a seu chamado. – disse o homem de mau humor. – E abaixe isso, vai fazer o que? Furar a minha bunda nua? – Remiel abaixou a lança, mas ainda estava atônita.

-Cadê Amenadiel? – ela quis saber desconfiada

-Na Terra, vim sozinho.

-Achei que não pudesse mais entrar aqui. – ela murmurou desconfortável.

-Irmã, sei que não nos gostamos muito, mas por favor, assim como você, eu quero sair logo daqui. Me leve ao Pai!

-Certo. – ela murmurou contrariada. – Eu vou guia-lo ao trono. – ela abriu as asas e estendeu os braços para pegar Lúcifer, mas ele levantou a mão e se afastou.

-Por favor, irmã, eu a sigo. – ele abriu as asas brancas. Remiel deu um pulo para trás sobrevoando pasma.

-Suas asas!

-Surpresa, sim eu as tenho! – Lúcifer comentou ficando cada vez mais de mau humor. – Vamos. – ele alçou voo e seguiu Remiel pelo Céu, queria logo acabar com isso.

                Lúcifer ouviu um cântico ao longe, o som lembrava seu irmão Castiel.

-Aquele bobo continua cantando para os mortais?! – Lúcifer comentou. Remiel abriu um sorriso.

-Sim, os humanos no Paraíso gostam e você sabe como Castiel adora se gabar de sua voz.

-A menos quando eu estou por perto! – Lúcifer rebateu. Remiel gargalhou.

-Ele ficava bem frustrado mesmo! – Ela sorria, mas fechou a cara, não queria dar o braço a torcer, porém Lúcifer ficou satisfeito ao ver que a irmã ainda tinha o coração amolecido, mesmo com a cara carrancuda.

                Remiel subiu os ares, passando as órbitas. Lúcifer viu ao longe o Paraíso, onde tentou Eva a provar o fruto proibido, ou o temido desejo. Deus criou o homem e a mulher, mas Lúcifer não entendia porque tinham que ser inconsequentes e errantes. Foi dali que tudo começou.

-Irmão, chegamos! – Remiel murmurou, tirando o Diabo de seus devaneios e mostrou ao longe um tipo de monte.

                Lúcifer subiu ao monte e pousou no topo da planície e viu Remiel partir. Tudo estava quieto, pacífico demais ali em cima, seu Pai gostava do exílio, de observar.

Quando criança Lúcifer corria por entre aqueles vales, perto do Pai, ele gostava da sensação da liberdade que sentia ali em cima. Os outros irmãos nunca sentiam isso quando iam ali, mas Lúcifer sentia fortes rajadas de ventos ali no topo, ele abria os braços e fechava os olhos e era dominado pela sensação incrível de ser dono do mundo, era uma das melhores lembranças que guardava dali. O jovem Samael chegou a pensar que o Pai lhe presenteava com essa sensação, mas depois de muito tempo se convenceu de que era mero acaso, era mais fácil odiá-lo quando parecia que Deus sempre lhe dera as costas.

Entre as árvores, Lúcifer pisava a relva úmida e fria andando pelos vales que tanto eram familiares ainda. Quando a mata foi se dissipando a beira do abismo e via todo o horizonte, ele sentiu uma forte ventania lhe atingir, seu corpo se arrepiou com o ar úmido e intenso. Ao longe via a vasta criação angelical que era sua casa, ele sempre gostou da vista dali, era cruel seu Pai tê-lo trago para cá novamente. Sentindo um misto de muitos sentimentos, de quando era feliz, de quando estava ali entre ele e seus irmãos; como Deus pôde ter destruído sua família desse jeito? Como pôde ter virado as costas a seu filho? Enquanto se questionava, o Diabo viu numa árvore perto um tecido preso em seus galhos, ele a pegou e viu ser uma veste branca em costura dourada. Ele vestiu as calças, a camisa e prendeu o cinto para esconder a nudez do frio. O toque do tecido a pele foi estranho, era como se tivesse recarregado suas energias; sentia-se forte e ao mesmo tempo suave.

-O que quer de mim?! – gritou Lúcifer já não podendo mais conter as lágrimas. – Diga seu grande babaca criador de tudo! Apareça!! – gritava a todo pulmão. Sua voz carregada reverberou ecoando aos quatro ventos por todo o cosmo. – Deve estar achando graça de me ver assim, não é?! O filho caído de roupinha e asinhas como um fantoche para você brincar! -  Lúcifer gritava, o corpo trêmulo de raiva, incapaz de conter a fúria que sentia. Ele não conseguia conter as lágrimas, sentia-se humilhado, degradado e indigno de amor. Queria mais do que tudo ir embora, mas queria sentir o quanto não pertencia aquele lugar.

-Meu filho. – Lúcifer ouviu sua voz. Era forte, plácida e ubíqua. Ele se virou e viu há uns oito metros um homem atrás de si, entre as árvores.

Continua...

A Ascensão de Lúcifer (Depois do Adeus)Onde histórias criam vida. Descubra agora