Notas sobre Ela

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Chegar em casa depois de uma semana inteira de apresentações era sempre mais cansativo do que qualquer hora dançando na ponta dos pés diante de uma plateia crítica. O esforço de sorrir no palco parecia leve comparado ao que me esperava ao cruzar a porta da casa no fim da Charlwood Ct.

Era branca, de dois andares, com uma porta vermelha que parecia mais nova do que o resto. No centro da madeira, em letras douradas meio descascadas, uma frase dizia tudo e ao mesmo tempo deixava perguntas no ar: “Jesus é o dono desse lugar.” Nunca soube exatamente o que aquilo queria dizer na prática, principalmente quando se tratava dos meus pais.

— Cheguei! — gritei já no segundo degrau da escada, sem esperar resposta.

O silêncio ecoava nas paredes azuis, um tipo de silêncio que não era calmo, era o tipo que grita sem fazer som. Eu já estava meio acostumada, mas ainda doía.

Um ano se passou desde que comecei a viajar para as apresentações de dança. Um ano inteiro. E mesmo assim minha mãe ainda agia como se fosse só mais uma fase da adolescência, como se eu fosse largar tudo amanhã pra voltar a viver sob o teto da rotina perfeita dela.

— Ah, finalmente! Por que não avisou que ia chegar hoje? Você sabe que seu pai não gosta que fique andando por aí sozinha, não sabe? — A voz dela cortou o ar como faca. Alta, autoritária e com aquela pontinha de culpa disfarçada.

Meu pai estava no mesmo lugar de sempre, afundado no sofá com um livro nas mãos, fingindo que não ouvia. Era a maneira dele de manter a paz: silêncio e neutralidade. Eu entendia. Nos últimos tempos, brigas pequenas viravam tempestades.

A verdade é que meu temperamento puxava muito o dela. Por fora, eu era calma. Mas bastava abrir a boca para o furacão aparecer. E ela também era assim, só que com mais experiência. Eu, por outro lado, era mais parecida com o meu pai fisicamente — morena, alta demais pros meus dezessete, olhos grandes, cabelos grossos e escuros, difíceis até pra tinta vencer.

Ela era o oposto: loira, branquinha, e bonita. Daquelas belezas clássicas, sabe? Mesmo com 45, ainda dava pra enxergar a rainha do baile que tinha sido. O retrato dela da formatura ainda estava pendurado na sala, meio torto, como se o tempo tivesse inclinado tudo desde então. Hoje ela era dona de uma loja de roupas, mãe em tempo integral e, acima de tudo, uma observadora atenta de tudo o que fazíamos.

E quando eu digo "fazíamos", me refiro a nós três: Paulo, Caleb e eu.

Paulo é o mais velho. Tem vinte anos e mora em outro estado com o tio Fred, irmão do meu pai. Foi estudar música. E mesmo longe, minha mãe sempre dava um jeitinho de “orientar” a vida dele à distância. Vivia dizendo que ele precisava perseverar na vontade do Senhor. Mas, sinceramente, acho que ele, como eu, ainda estava tentando entender qual exatamente era essa vontade.

Caleb era o oposto. O caçula, com a alma já moldada pra tudo que os nossos pais esperavam de um bom filho cristão. Prestativo, educado, sabia a hora de falar, a hora de ouvir, e até a hora certa de pedir desculpas — mesmo quando a culpa não era dele.

Já Paulo e eu... bem, a gente tinha mais dificuldade com esse negócio de fé. Não que não acreditássemos em Deus, mas era como tentar andar com um sapato dois números menores. Apertava. Incomodava. Fazia a gente tropeçar.

Nossos pais cresceram dentro da igreja e, por consequência, nós também. Só que o mundo parecia muito mais complexo do que as respostas simples que eles nos davam. E eu, sinceramente, só queria ter o direito de descobrir as perguntas primeiro.

CORAÇÃO OBSTINADOOnde histórias criam vida. Descubra agora