Suicídio Social

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Clara

— Aí, quando o Vitor Manuel entrou no escritório e encontrou a Rosana Martínez nos braços do Hernández, eu fiquei da cor da sua saia, branca feito um papel. Agora tá tudo ferrado, pensei — disse a Katharina, minha BFF, contando o último capítulo de Corações Destroçados, a novela preferida dela, enquanto devorava um pacote gigante de pipoca doce.

A Kath é filha do Tio Caio, e nós duas somos grudadas, muito, muito grudadas, mais que gêmeas siamesas e goma de mascar de má qualidade quando gruda nos dentes. Ela é uma fofa, sabe, fofíssima mesmo. Hipermegablasterfofa e a melhor amiga que alguém poderia ter. O único defeito da minha amiga é ser viciada em novela mexicana. A Kath vive tão mergulhada nesses folhetins que esquece de viver a vida real.

— E aí, o que o Vitor Manuel fez? — perguntei, nós duas sentadas no banco de trás do carro da mamãe, a caminho do shopping.

— Não sei! O capítulo terminou bem aí, com a câmera focalizando os olhos esbugalhados do Vitor Manuel em cima do casal traidor! Mas a coisa vai ficar feia no próximo capítulo, amiga, porque deu tempo de ver uma veia saltando na têmpora direita dele.

— Eu não sabia disso — a voz da minha mãe se intrometeu na nossa conversa, antes que eu pudesse contar o quanto estava chocada. — Você sabia, Clarinha?

— De quê, mãe? — perguntei encontrando os olhos dela no retrovisor.

— Que o Cerrado não é considerado patrimônio nacional, como a Amazônia e o Pantanal...

— Eu não, mas o que tem isso?

— Nem eu — coincidiu a Kath.

— Isso prejudica a conservação da biodiversidade da região — disse meu irmão, com ares de CDF, sentado no banco do carona. — Se usasse os livros para algo além de equilibrar na cabeça e andar estirada feito um pé de eucalipto, você saberia.

— Hum, olha quem fala, até parece que você é algum rato de biblioteca. Aposto que leu isso no livro de geografia, na leitura silenciosa E OBRIGATÓRIA, E VALENDO PONTOS, da sua última aula. — Pelo espelho retrovisor, vi meu irmão corar. — Isso é uma injustiça, viu! Eu já li Crônicas de Nárnia inteirinho, aquilo é praticamente o Alcorão, e tenho uma lista gigantesca na minha meta de leitura deste ano. E tem mais, o livro do corrimão, o meu dicionário, é lido diariamente!

— Ah, isso é verdade — interveio mamãe. — Outro dia mesmo entrei no quarto e a Clarinha estava lendo Extraordinário. O vocabulário dela tá ficando chique demais.

Ainda olhando no retrovisor, vi meu irmãozinho querido revirar os olhos e mostrei a língua pra ele. Se o que Matheus Henrique queria era impressionar a mamãe, o tiro saiu pela tangente.

Depois disso, o poser do meu irmão fechou a boca e passou o resto do caminho fingindo demência. A mamãe ficou elogiando, para o vento e com ares de Cinderela, a beleza da paisagem toda tortinha do Cerrado, e a Kath voltou a encher meus ouvidos com os acontecimentos rocambolescos do último capítulo de Coração Valente.

Vários capítulos de Vitor Manuel e Rosana "Rainha Insuperável" Martínez depois, chegamos ao nosso destino. Entramos pelo corredor da principal loja de departamentos e seguimos shopping adentro.

— Ai, meninas, olhem isso. Esse vestido é perfeito para eu usar no casamento da líder do grupo de jovens da paróquia. — Mamãe parou em frente a uma vitrine, namorando um longo da cor do pescoço de um pavão macho. — Ah, vou dar uma olhadinha no preço... Se não estiver muito caro e puder dividir no cartão... Não vou demorar, meninas.

— Vou dar uma volta, mãe — resmungou Matheus, já impaciente. — Quando terminar, manda uma mensagem no meu celular.

— Tá bom. — Mamãe entrou na loja, mas eu e a Kath ficamos na porta.

Deu RuimOnde histórias criam vida. Descubra agora